sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

3410) A Lolita de Dorothy (31.1.2014)




Falei há pouco tempo aqui (http://bit.ly/1bzHeCW) sobre um suposto plágio que Dorothy Parker teria cometido sobre a Lolita de Nabokov. Diz-se que ela teve acesso ao manuscrito, antes do livro ser publicado, e publicou na revista The New Yorker seu conto “Lolita”, onde ela fala de uma mãe viúva, uma filha desajeitada e um bom partido que se oferece como possível maridão.  

Li o conto; mais do que um plágio (como plagiar em dez páginas um romance de trezentas?) é um desses furtos casuais que os escritores fazem tantas vezes. “Gostei desta situação, esqueçam o resto, vou usar somente isto.”

O conto (aqui, no Scribd: http://bit.ly/1elNtLc) é sobre uma mulher prestes a perder o prazo de validade, e sua filha canhestra e antissocial. Aparece na cidade um tal John Marble, desassossegando os corações. A cidade inteira cai aos seus pés. John Marble escolhe quem? A desajeitada, angulosa e tímida Lolita, para desespero das rivais e mortificação ainda maior de sua mãe, que também estava no páreo.  

Diferentemente de Nabokov (que fala de homens o tempo inteiro), Dorothy fala somente das mulheres, numa história onde o homem é mero adereço, mero “prop” de estúdio, um dummy, um dildo, um dublê, uma função proppiana.  O contrário da história de Nabokov, que é uma explosão de testosterona míope, uma história trágica da derrota recíproca de dois machos em luta, enquanto a ninfeta é mero catalisador, desencadeia as catástrofes e as atravessa incólume sem nem se dar conta delas.

Charlotte Haze, a mãe da Lolita nabokoviana, se lesse aquele livro (se fosse capaz de ler aquele livro) nem saberia que era um daqueles personagens. Quando muito ficaria surpresa com a coincidência de nomes próprios e de alguns fatos externos.  Mrs. Ewing, a mãe-viúva da Lolita de Dorothy, vê a filha sem graça ser pedida pelo homem-sensação e consegue, como tantas heroínas femininas, destilar sua revolta com o destino, ser mãe-modelo, casá-la com John Marbles e ficar olhando as nuvens.

A única imprudência de Dorothy Parker foi dar à sua garota o mesmo nome da garota que vira no original datilografado de Nabokov.  Custava nada ter chamado a menina de Peggy Sue?  Seria menos literária por isso?  O caso todo é típico dos pedidos de empréstimo que autores fazem a idéias alheias, tipos alheios, estilos alheios, temas alheios, situações alheias.  Todo mundo faz isso.  O desafio é mostrar que o elemento pedido emprestado rendeu muito melhor no nosso texto do que no alheio. Ou pelo menos não ficou a lhe dever.  Talvez ela tenha deixado o nome “Lolita” como derradeira pista do que aconteceu, porque sem esse nome talvez nenhum de nós percebesse.








quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

3409) Não vai doer (30.1.2014)




Não sei se a parteira disse isto quando me puxou pelos pés (pois rezam as crônicas de família que eu nasci com os pés à frente, e talvez se deva ao esforço final para extrair minha cabeça a curiosa conformação craniana que ainda hoje conservo, e que minha mãe descrevia como “o casco de um cavalo” em relevo, como se um alazão tivesse dado um coice de dentro para fora da minha moleira, ou, como disse meu pai, “ele tem um burro no lugar que seria do juízo”), mas como havia ela de não dizer isto, quando é a primeira coisa que se deve dizer aos filhos nossos e alheios? Não vai doer, não doerá nem agora nem nunca, pode ir em frente de olhos fechados e peito aberto. Abra as narinas, os pulmões, o ar não vai doer, a luz também não; isso que você acaba de sentir é uma lâmina de fogo. Aprenda a andar, a falar, a ouvir, porque nada disso vai doer.

Não ligue para os joelhos ralados, o tornozelo torcido, a unha levantada, a mão desmentida, o cotovelo esfolado, o olho roxo, o lábio partido, a pele escoriada. A infância é indolor, basta entender que ela é rápida, mesmo que dure uma eternidade e meia. Nada na infância dói, nada doeu, tá vendo só, um sopro e a dor passa, um sopro e a vida passa, basta soprar que tudo vai embora, tudo se acaba antes de doer, chega-se a um limbo onde não há o que doa, e cada pessoa terá que fazer essa escolha entre a dor e o nada, entre o tudo e o nada, entre o ser e o nada, entre o ser e o não-ser, entre a dor do prazer e o nada-haver.

Difícil equacionar essas generalizações para um menino olhando o primeiro patinete, a primeira bola Drible, a primeira hora-do-recreio em território inimigo. A primeira bebedeira em campo minado. A primeira moça, o terrível primeiro não, o não-menos-terrível primeiro sim, a primeira impersonação das paixões alheias no seu real. Não vai doer, bradam os estatutos do adolescentes e a Constituição de 1988. Não vai doer, diz, quando o vulto se inclina de instrumento em punho, a voz arfante do torturador. Não dói, dizem as promessas sorridentes da ciência que recebe chapa branca e tarja preta. Não vai doer no seu bolso, prometem as euforias da Bolsa. Não vai doer, você é de metal, diz o iceberg ao Titanic.

Não dói. A civilização tem seus distritos industriais fabricando anestesias, senão ninguém dormiria devido aos uivos. É preciso dizer que não dói, quando sabemos que vai doer mesmo que não doa. É como a árvore que desaba mas não soa, ninguém há para ver, ninguém para lhe escutar, e somente onde não há ninguém onde doer também não há – o que temer. É só querer acreditar, é só decidir, porque ou não-vai-doer ou não há.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

3408) Auerbach em Istambul (29.1.2014)



Mimesis de Eric Auerbach (a edição brasileira é da Perspectiva, São Paulo, tradução de George Bernard Sperber) é um clássico dos estudos literários. Sua leitura equivale a um curso de literatura completo.  

Foi escrito quando o autor, durante a II Guerra, estava refugiado em Istambul. Já o comentei aqui (http://bit.ly/L9LZwE); é uma leitura atenta e detalhada de textos clássicos (Montaigne, Shakespeare, Homero, a Bíblia, Virginia Woolf, etc.) onde Auerbach vai de frase em frase desmontando e revelando as intenções, as técnicas e os efeitos obtidos pelo autor, além do “espírito da época”, o caldo cultural em que cada um estava mergulhado.

Um artigo de Kaya Genç na L. A. Review of Books (http://bit.ly/1aAC5Qz) mostra que Auerbach teve acesso à biblioteca de um mosteiro, em Istambul, graças a uma carta de recomendação do Cardeal Angelo Roncalli, o futuro Papa João XXIII. E ela comenta que os artigos acadêmicos publicados em turco por Auerbach no pré-guerra precisam ser retraduzidos hoje, porque o turco dos anos 1930 é ilegível para a população moderna. (E a gente preocupado com o português!)

A façanha intelectual de Auerbach foi produzir uma obra erudita, de literatura comparada e análise textual minuciosa, num livro de 500 páginas sem notas de rodapé, sem bibliografia. Ele próprio admitiu, no Epílogo, que se tivesse podido pesquisar à vontade todas as referências necessárias, talvez nunca tivesse chegado a escrever o livro.

Vejo amigos e colegas arrancando os cabelos porque a bendita Tese ou a famosa Dissertação estão empancadas enquanto eles “releem Barthes completo”, ou sei lá quem.  Nada contra ler Barthes; mas a produção intelectual acadêmica é de um imenso defensivismo, auto-protecionismo. O autor está se calçando de argumentos alheios para se defender, preemptivamente, das críticas dos seus pares: “faltou isso, ignorou aquilo...”  E as notas avalizadoras estão para o texto como os volantes estão para um time de futebol.

Eu sempre digo (a eles e a mim): dê uma de Auerbach em Istambul. Não precisa fazer uma varredura (ainda mais agora, de Google em punho!) em tudo que se publicou sobre o tema. Escreva com o que você sabe, escreva com o que você é.  Melhor do que se proteger contra as críticas é entrar de idéias novas em punho e fazer os críticos recuarem, e são eles que ficarão na defensiva. Uma afirmação intelectual sem fundamento é condenável; pelos mesmos motivos é condenável o acúmulo indefinido de fundamentos sem a coragem de fazer afirmações.  Teorizar é afirmar. Se o que você acha que conhece é insuficiente para embasar suas afirmações, não seja acadêmico.  Venha ser ficcionista.







terça-feira, 28 de janeiro de 2014

3407) Lima Barreto: o Motim (28.1.2014)



“O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde estava cercado por um grande magote de populares, à frente do qual, se movia um bando multicor de moleques, espécie de poeira humana que os motins levantam alto e dão heroicidade.  Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu. Continuei a pé. Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e expectativa. Uma força de cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria em direção ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo partiu uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia muito da força e da fraqueza do populacho naquela ingênua arma. E por todo o caminho, este cenário se repetia.”

Não são as manifestações de 2013 no Rio e nas capitais; é o Rio de Janeiro, sim, mas o de um século atrás, o Rio da Revolta da Vacina de 1904, que Lima Barreto transformou na “Revolta do Calçado” no romance de 1909 Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Existe, na sucessão das gerações humanas, uma certa recorrência de padrões, uma certa semelhança de procedimentos, talvez porque só quando estamos envolvidos numa ação intensamente coletiva (um jogo de futebol, um show de rock, uma manifestação de rua) sejamos capazes de, sintonizados com a multidão, acessar uma memória coletiva que existe em todos e só emerge numa multidão de verdade.

“Da sacada do jornal,” diz Isaías Caminha, “eu pude ver os amotinados.” (Não, ele não fará menção à máscara de Guy Fawkes nem aos Black Blocs. Mas vejam que olho futurista o do escritor.)  “Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros, o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância.”

E ele explica: “O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes, não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.”  Em 1909 não havia redes sociais, celulares, TV ao vivo, Rádio AM.  A tecnologia está sendo absorvida pelo modo-de-ser da multidão, e não o contrário.


domingo, 26 de janeiro de 2014

3406) Ler por prazer (26.1.2014)



Eu geralmente leio por prazer, o prazer antecipado de quem compra um livro já prevendo que vai gostar (pelo autor, pelo tema, etc.). Quando essa expectativa não se confirma, largo o livro e pego outro. Se não estou gostando, não forço. Isto não se aplica, é claro, às leituras de trabalho. Se quero um conto de Fulano numa antologia minha, geralmente leio um livro inteiro dele, 15 ou 20 contos, para escolher o mais adequado. Nem todos são bons, mas meu interesse ali é conhecer melhor Fulano, “sentir a mão” dele como escritor, avaliar suas qualidades e suas limitações.

Jorge Luís Borges tem um texto famoso sobre o prazer de ler, repetido em numerosas coletâneas.  Diz ele: “Fui professor de literatura inglesa por vinte anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja o Paraíso Perdido – para mim não é maçante – ou o Quixote – que para mim também não é maçante. Mas, se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês.”

É engraçado, porque eu digo o contrário. Borges não falava no contexto brasileiro de hoje. Talvez seus alunos fossem obrigados a ler Sêneca e Ovídio no original, sem poder criticá-los.  Hoje, porém, a situação é outra. Os jovens são desestimulados ao esforço intelectual e empurrados para um entretenimento sem fim.  Deveria aparecer um Borges que lhes dissesse: “Galera, vocês estão fazendo poupança com dinheirinho de Banco Imobiliário. Quando precisarem, nada terão. Esse entretenimento passa sem deixar marcas, a não ser a resposta automática diante de clichês e de situações já conhecidas... E esse cansaço-prévio mental diante do novo, do diferente, do difícil.”

Não há resultado sem esforço, e a inteligência não brota espontaneamente, tem que ser cultivada pelo uso. Borges se preocupava com aqueles jovens argentinos que queriam, por exemplo, fazer teatro, mas seus professores os obrigavam a aprender grego para ler Ésquilo no original, senão não entenderiam o texto. Hoje, jovens montam Brecht ou Shakespeare sem os ler, leem adaptados para a linguagem moderna, uma diluição, uma versão resumida e mutilada “para ficar ao alcance de vocês”.  Fazem o teatro descer até o jovem, e com isso o jovem nunca subirá até o teatro. Sem esforço não há resultado. O prazer de ler não é uma adrenalina instantânea, é uma conquista, uma vitória pessoal de cada leitor sobre a própria insegurança e a própria preguiça.


sábado, 25 de janeiro de 2014

3405) Traduzindo Kafka (25.1.2014)



A nova tradução de A Metamorfose de Franz Kafka para o inglês já vem cercada daquelas discussões de minúcias que muitos leitores desdenham, mas quem traduz é capaz de passar ali a noite inteira. Isso se torna ainda mais interessante quando o original vem numa língua que a gente não conhece, como é o caso, pois Kafka, apesar de tcheco, escreveu sua obra literária em alemão.

A dificuldade tradutória já começa no título: Die Verwandlung, em alemão, não sugere uma mudança natural de estado como acontece com o termo inglês (e português) “metamorfose”. Não é algo espontâneo e/ou inevitável. É uma mudança inesperada.  A tradução de Susan Bernofsky é discutida nestes termos numa resenha de Rebecca Schuman na revista Slate (aqui: http://slate.me/1kqDJIq), onde a jornalista afirma que “Bernofsky chega tantalizantemente próxima de fazer o que nenhum tradutor conseguiu até hoje: obter uma tradução aproximada da 19a. palavra do texto, ‘Ungeziefer’.” 

O x do problema está nesse bendito Ungeziefer.  Kafka começa assim: “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt.” 

“Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto." 

Na tradução inglesa de David Wyllie, isto vira: “One morning, when Gregor Samsa woke from troubled dreams, he found himself transformed in his bed into a horrible vermin.”  

E a tradução de Bernofsky, agora, diz: “When Gregor Samsa woke one morning from troubled dreams, he found himself transformed right there in his bed into some sort of monstrous insect.”

Para a tradutora, a expressão “uma espécie de” (some sort of), ausente no original, sinaliza a falta de especificidade, proposital, de Kafka. Samsa não vira barata, como se diz por aí. Kafka não usou as palavras alemãs para inseto, percevejo, besouro ou barata (Insekt, Wanze, Käfer, Kakerlak).  “Ungeziefer” designa em Médio Alto Alemão, “criatura imprópria para sacrifício”, criatura impura, repulsiva, não-bem-vinda numa casa. Modernamente acabou sendo identificada com pragas domésticas, insetos de muitas pernas. É um termo não-específico, daí Bernofsky usar “uma espécie de”, que não aparece no original. (E que vem num contraste com o categórico “right there in his bed”, “bem ali na sua cama”).

Isto é apenas um exemplo de palavra em sua tradução popular e tradução literária.  No popular, “barata” é o bastante para dar uma idéia da história.  Para chegar, contudo, à fidelidade literária com o que disse o autor, é preciso às vezes subir a montanha dando voltas.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

3404) Ódromo (24.1.2014)






Pode-se contar a história de um idioma através das palavras que ele inventa quando precisa dizer algo pela primeira vez.  Isso vem desde a invenção da fala, então já estamos acostumados.  Uma coisa curiosa nesse processo são certos memes etimológicos, não sei se é este o termo, mas em todo caso – certas estruturas-de-formação-de-palavras-novas que se reiteram, se reproduzem.  Quando o Rio de Janeiro construiu a atual Passarela do Samba feita de concreto (substituindo as passarelas de armação desmontável que havia na Marquês de Sapucaí até o começo dos anos 1980), logo surgiu o nome “sambódromo”, dado (ao que parece) por Darcy Ribeiro. Não por semelhança ao hipódromo da Gávea, creio, mas porque na época o autódromo de Jacarepaguá vivia seus dias mais ruidosos.  (Também o nome da Praça da Apoteose, aliás, deve-se a um arroubo retórico de Darcy, numa de suas euforias criativas.)

Ódromo começou a significar “lugar adequado para tal coisa”.  Deve ter sido com o aumento das campanhas anti-fumo nos anos 1990 que cada escritório ou local de trabalho passou a ter um “fumódromo” onde os funcionários davam um tempo após cada cafezinho.  E Brasília inaugurou há algum tempo o Beijódromo, o Centro Cultural Darcy Ribeiro, o que mostra como um meme-palavra fica girando feito satélite em volta de um cara, até depois de morto.

Quando fizeram o camelódromo da Rua Uruguaiana sabiam que o fenômeno ia transbordar da Rua Uruguaiana, o que não imaginavam é que o nome fosse transbordar por cima de todo o Brasil.  Toda capital ou cidade de médio porte ou já tem um camelódromo, ou está construindo, ou ainda não sabe que precisa.

E foi aí que surgiu essa conotação guetorizante. Quando o pau quebrou e o fogo ardeu nas ruas do Rio ano passado, discutiu-se a sério a possibilidade de construção de um “manifestódromo” onde se poderiam realizar agitações daquele tipo.  Proposta prontamente avacalhada nas redes sociais.  E agora, devido ao impasse dos jovens paulistas que querem dar um “rolezinho” nos shopping centers, surge a proposta: “Vamos construir um rolezódromo!” 

Se a sugestão foi a sério ou por zoação, é irrelevante.  Ela me lembra a piada dos irmãos Marx, num filme em que procuram, desesperados, um documento. Groucho grita: “Procurem na casa ao lado!”. Alguém: “Mas não existe casa ao lado!”. Groucho: “Então mandem construir, e procurem nela!”.  No caso brasileiro, todo mundo percebe o paradoxo lógico de um lugar onde as pessoas são autorizadas a fazer coisas-sem-autorização.  É como uma gravura de Escher.   A questão não é o bizarro da idéia, é que existe gente capaz de pensar nisso a sério e de construir isso, se tiver a chance.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

3403) Os Refugiados do Tempo (23.1.2014)




O transmissor temporal o desintegrou e o recompôs dentro de poucos segundos. Ele não sentiu nada, talvez uma vertigem, uma sensação cega de estar caindo.  Veio uma queda de verdade, na verdade um cambaleio para o lado, como se o chão tivesse se inclinado. Apoiou-se na parede de metal da cabine. 

A porta se abriu. Um homem velho, num uniforme rasgado e sujo, gritou algo mandando-o sair. Ele cambaleou para fora. Era um galpão de tijolo, muito alto, larguíssimo, e ao longo da interminável parede enfileiravam-se cabines idênticas à que ele acabava de deixar.

Parou olhando. Teve tempo de perceber que de vez em quando uma das cabines se abria e um guarda apressava para fora uma pessoa tão desnorteada e cambaleante quanto ele. 

Outros homens, com uniformes diferentes, agora conduziam todos, aos empurrões, para uns veículos longos de metal, acorrentados em fila, grandes quase como galpões também, mas sobre rodas. Seguiram-se horas de sol, poeira, vento áspero, mas tudo aquilo ele absorvia em êxtase, numa excitação que o distraía dos solavancos, dos esbarrões daquela multidão apinhada. 

Um céu azul como lhe tinham prometido. Um sol amarelo e bravio como nunca imaginara existir.

Não falava as línguas dali, mas era forte e diligente, logo arranjou onde trabalhar, o que comer, como dormir. Achou um jeito de se comunicar. Quando perguntavam de onde vinha, mostrava os documentos da viagem e explicava que não lia ideogramas. 

Cruzava na rua com outros e não havia como não se distinguirem dos habitantes locais. Somente eles, os infiltrados, tinham aquela cara de fuinha, aquele olhar assustado, aquela agitação incessante de quem não pode pensar demais no que está fazendo, e ao mesmo tempo aquela maneira de ficar acariciando paredes, tocando em folhas de mato, acocorando-se diante das telinhas coloridas e ruidosas, com pena de dormir e parar de ver aquilo tudo.

A chuva martelava o teto corrugado do canteiro de obras e ele amava a chuva. Enrolava-se nos lençóis descorados, cheirava-os, feliz. Um dia teria um barraco só para si, conseguiria uma mulher. 

Claro que estava valendo a pena. Depois que os Tubos foram construídos e começou o êxodo, diziam os temerosos que se morria, que não se ia a lugar nenhum, que a propaganda de “Volte 100 Anos no Passado e Refaça Seu Futuro!” era para exterminar bilhões que disputavam a pouca água e a pouca comida em jogo. “Século 21... A Melhor Fronteira!”. 

Ele acendia no escuro a maquininha luminosa, olhava a própria foto, pensava, “sim, eu consegui, não estou morto, estou num mundo onde problemas pode ser resolvidos, onde tudo pelo menos é possível!”. E se deixava embalar pelo aguaceiro.




quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

3402) O mulato Isaías (22.1.2014)



Isaías é um rapaz da Baixada Fluminense, gosta de ler, tem boas notas, quer tentar a carreira no Rio.  Consegue uma carta de recomendação para um deputado e vem. Na pensão, torna-se amigo de jornalistas, comerciantes. O tal deputado não se interessa em ajudá-lo. Logo as economias que trouxe se evaporam. Começa a passar fome. E ao mesmo tempo frequenta, parasitariamente, as noitadas dos amigos que “têm boas colocações”. Acaba sendo admitido como servente na redação de um jornal chamado “O Globo”. E aí começa a vingança: sua narração na primeira pessoa destrói moralmente o jornal, os jornalistas, a imprensa carioca, a política brasileira.

Diz-se que Lima Barreto fez de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) uma provocação ao Correio da Manhã de Eduardo Bittencourt (O Globo, de Irineu Marinho, só viria a ser criado em 1925).  Típico das muitas atitudes murro-em-ponta-de-faca do autor, o livro, que desmascarava a imprensa carioca, foi ignorado pela imprensa carioca.  É um livro cruel pelo modo quase monocórdio como o jovem Isaías, servindo cafezinhos, enchendo tinteiros, fazendo mandados, ridiculariza a pompa e a fatuidade de jornalistas abonados, muitos dos quais leram menos e conhecem menos do que o mulatinho do café.

Isaías sobe profissionalmente – tendo que levar um recado urgente ao dono do jornal, ele o surpreende num bordel, e desse dia em diante o dono começa a tratá-lo bem, fazer-lhe agrados (certamente temendo uma chantagem), até promovê-lo a jornalista.  E Isaías, que sonhava em fazer carreira intelectual nas letras e tornar-se doutor, acaba se transformando numa daquelas cavalgaduras engravatas que tanto ridicularizou.

O jornalismo e a literatura do Brasil estão repletos de antas semi-alfabetizadas, que estão somente um degrau acima do embrutecimento mental dos seus leitores, mas criam um sistema de elogios mútuos que os mantém à tona.  Isaías percebe isso e não perdoa.  Torcemos pelo mulatinho de periferia, mas ele próprio não nos poupa seu ressentimento (a cada capítulo aumenta o seu lado “não confiável” como narrador), sua inveja, seu desprezo; e quando parece que vai escorregar no maniqueísmo, ele se transforma naqueles que despreza.  O fato de ter escapado dali (são recordações, redigidas muitos anos depois) lhe dá o equilíbrio necessário para evocar aquilo tudo e poder ver à distância seus erros tanto quanto os dos outros.

Isaías Caminha é um livro brasileiro sem esforço, e atual, com sua imprensa mantida às custas de propinas políticas, suas manifestações de rua, seus intelectuais da indústria do entretenimento, suas questões mal resolvidas de raça e de classe social.


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

3401) "A Química do Mal" (21.1.2014)



Está passando na TV aberta, desde esta semana, o seriado A Química do Mal (TV Record), que nada mais é do que o famoso Breaking Bad que no ano passado encerrou uma carreira vitoriosa de seis temporadas na TV norte-americana.  A conquista mais recente foi na entrega dos Globos de Ouro, em que ganhou o prêmio de melhor série dramática, e o ator principal, Bryan Cranston, o de melhor ator.

BB é uma excelente série de TV, e minha única preocupação é que seus fãs mais entusiasmados fazem um escarcéu tão grande (“A melhor série de TV de todos os tempos!”, etc.) que o pessoal começa a assistir esperando ver algo transcendental e se logo se decepciona.  Elogios entusiasmados trabalham contra, muito mais do que se pensa. Criam uma expectativa fantasiosa, que nunca se realiza.  A gente fica esperando algo que vai transformar nossa vida, alterar todos os nossos parâmetros de qualidade artística. Aí, vê uma série de TV muito boa... e sai dizendo: “Que série fraquinha!”.

Não costumo ver séries, de modo que minha avaliação não é comparativa, falo apenas do impacto pessoal.  É uma série policial, basicamente realista (com alguns momentos de grotesco e de bizarro, principalmente na primeira metade), cujo enredo é simples o bastante para manter uma história compacta, coesa, e ao mesmo tempo permite reviravoltas, pois a história completa da série acontece ao longo de uns três anos, acho, da vida dos personagens.  Existem transformações notáveis de personalidade, para melhor e para pior, os atores são bons, inclusive os eventuais.  Tem crime, droga, violência, mas é uma série de situações de suspense, e de longas e sofridas decisões morais, mais do que uma série de tiroteios.  Os tiroteios são poucos e cirúrgicos. Há muitos crimes cruéis, alguns deles menos por sadismo do que por incompetência do assassino.

O professor de química, todo nerd, todo bundão, de repente se transforma num cientista louco e logo depois num líder de gang.  Walter White é o médico e o monstro nessa história de descida aos infernos.  A ambientação em Albuquerque (Novo México) dá um perfil único à história e ainda fornece uma cidade pequena o bastante para certas coincidências não serem tão espantosas.  Nas duas primeiras temporadas a série usa uma imaginação selvagem e bizarra, quase de filme dos irmãos Coen ou de romance de Bolaño; depois vai se fechando em thriller policial e psicológico mais realista, tipo Dennis Lehane. Trama e diálogos geralmente são muito bons, não sei como vai ser a dublagem. O subtítulo A Química do Mal é desajeitado, mas é um preço a se pagar pela manutenção do nome original, para não haver dúvidas.


domingo, 19 de janeiro de 2014

3400) Tem livro que (19.1.2014)



Tem livro que eu tenho tanta vontade de ler que toda vez que eu vejo uma edição nova eu compro e boto na estante; aumenta as minhas chances de conseguir ler algum dia.  Tem livro que você compra no lançamento, pega o autógrafo do autor, mas quando começa a ler pensa que era melhor ter trazido para autografar um exemplar do livro que você mais gosta.  Tem livro que começa de um jeito mas a certa altura já virou uma história tão diferente que você imagina como pensaria no livro se tivesse desistido da leitura antes de presenciar daquela reviravolta.  Tem livro que você sabe que já leu: vê os riscos e as anotações feitos por sua própria mão, mas não recorda uma só daquelas frases que sublinhou. Tem livro que tem história legal, o projeto gráfico é legal, mas botaram o desafortunado do texto numa fonte que tanto tinha de elegante quanto de ilegível.

Tem livro “cult” que a gente espera trinta anos até ver um exemplar; compra, leva, e não lê, porque sem ter lido já sabe de cor.  Tem livro tão grosso que a gente começa a pensar: “Isso é um livro pra ler pelo resto da vida”, e o tamanho do volume nos dá uma ilusão de longevidade. Tem livro que cada vez que é relido pode ser cada vez mais subdividido em interpretações. Tem livro que você compra esbagaçado, retalhado, mutilado, e leva pra casa e cuida, você cuida daquele exemplar como cuidaria de um cachorro faminto e doente, se gostasse de cachorros.

Tem livro com ingredientes que a gente gosta, é de um autor que a gente aprecia, mas a gente nunca consegue passar da página dez. Tem livro que eu li pela primeira vez em edições defeituosas, com “cadernos” trocados, o que equivale a trocar os rolos de um filme de celulóide no cinema, e só li a história direito vinte anos depois.  Tem livro que é como uma música que a gente está ouvindo, livro que é como uma história que está acontecendo, que é como um jogo, um quebra-cabeças, tem livro que é como se fosse uma carta de uma pessoa desconhecida que conhece você bastante bem.

Tem livro famoso que você lê e não vê nada de mais, e tem livro que na página 3 você pensa, “está começando uma coisa que eu nunca vou esquecer”, e lê até o fim.  Tem livro besta que eu comprei e guardo só por causa da capa.  Tem livro que eu gosto tanto que planejei lê-lo em todas as línguas que consigo. Tem livro que não é importante, mas vive nas minhas prateleiras há décadas, sem ser consultado, talvez com a única função de ser aberto por acaso uma noite e revelar dentro de si um bilhete, um canhoto de ingresso, uma filipeta de show, um recorte de jornal, uma foto; como uma caixa enorme contendo um pequeno diamante.


sábado, 18 de janeiro de 2014

3399) Os Prisioneiros (18.1.2014)



(Ilustração: Mana Neyestani)

No começo do mês fui eleito o MC para os próximos trinta dias. O sorteio não me indicava há tempos, mas vida de agente penitenciário envolve não somente talento para Relações Públicas e Comunicação de Massas, requer também uma resignação filosófica diante do inevitável. Como estou sempre prevenido, joguei na mesa as idéias que tinha esboçado: um festival de música, a eleição para o refeitório (que vem sendo adiada desde o ano passado), um novo profeta messiânico (Neco Chumbinho, que venho preparando há meses com leituras e laboratórios), e, caso seja necessário um confronto de facções, decidi que o ideal seria um entrevero entre os NecroMobs e os Rasga, que andam meio enfarruscados um com o outro por causa de roubos de celulares.

Marcamos três eliminatórias e uma final para o festival de canções, e acertamos com as facções quem ganharia o quê.  No refeitório, sugerimos um rodízio entre as equipes candidatas, três dias de cardápio e execução para cada uma, com cédulas de avaliação distribuídas na saída e postas nas urnas. Neco Chumbinho foi liberado para percorrer as alas a qualquer horário, orando. Tudo isso deve dar uma sacudida no grupo, e dentro de dez dias o primeiro confronto armado estará maduro. No festival de canções teremos torcidas organizadas, faixas, enquetes; fóruns gastronômicos e nutricionistas na luta política pelo refeitório. Para meu orgulho, o Presídio há muito tempo não dava tantos sinais de vitalidade e espírito participativo.  Começamos a ver nos rostos a exaltação, o entusiasmo, o impulso de realizar coisas. “Você conseguiu chamá-los aos brios”, elogiou o Diretor, sempre cheio de retórica.

Não é fácil administrar um Presídio como este, com 1.200 detentos das mais variadas tendências. “Não pare e não pense”, é o meu lema, e todo o nosso esforço é para transformar isto aqui num redemoinho de atividade, de novidades, de coisas pelas quais vale a pena lutar, sorrir, chorar, vibrar, viver. Não há trancas nas portas, grades nas janelas; não há guaritas, muros ou portões. A partir da última calçada dos alojamentos estende-se um relvado aberto em todas as direções. A estrada fica a um quilômetro, a cidade a dez. Descobrimos depois de tantos anos que mais fácil do que impedi-los de fugir é impedi-los de desejar a fuga; de imaginar a necessidade de uma fuga.  Claro, dá um pouco mais de trabalho, mas eliminamos a necessidade de repressão, o desgaste eterno de vigiar e punir. Eles são felizes, e nós temos a tranquilidade do dever cumprido. O melhor cárcere é aquele de onde o prisioneiro não quer fugir, e para onde ele voltaria correndo, se fosse levado para longe.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

3398) "Mais um dia de vida - Angola 1975" (17.1.2014)



Pelas praças, ruas e avenidas da capital, principalmente as que convergem para o aeroporto ou para o cais, por entre as casas e edifícios de pedra, começa a surgir uma outra cidade de madeira, uma cidade de caixotes, de contêiners, de todo tipo de embalagem sólida onde os milhares de fugitivos possam embalar e amontoar seus televisores, seus sofás, candelabros, roupas de cama e mesa, porcelanas, flores artificiais. É uma cidade de madeira que brota em poucas semanas, e que vai fazer-se ao mar para sempre. Mais um dia de vida – Angola 1975 (Lisboa: Tinta da China, 2013, tradução de Ana Saldanha), de Ryszard Kapuscinski, é a reportagem dos últimos três meses da guerra civil em Angola, entre a evacuação catastrófica dos portugueses e dos angolanos brancos, e as batalhas finais entre os exércitos do MPLA, da FNLA e da UNITA, que lutavam pelo poder.

Kapuscinski, correspondente de guerra polonês, atuando em vários continentes, já foi acusado de falsear os fatos, mas não de escrever livros insípidos. Ele mostra a crueza da guerra com descrições cruas mas imperturbáveis, mesmo quando afirma que se perturbou quando aquilo aconteceu. Um repórter com estilo suficiente para transformar aquilo num thriller de campo de batalha e ao mesmo tempo no olho investigativo de um polonês sobre a sociedade, a mente e os valores dos angolanos, tanto brancos quanto negros.

Luanda é evacuada, as duas ofensivas convergem para a capital que o MPLA tenta manter sob seu domínio. FNLA ao norte e UNITA ao sul, com tropas sul-africanas, convergem para a capital, e Kapuscinski fica saltando pelo país de jipe, de avião, de comboio, tentando ver com os próprios olhos a situação no front Sul, e voltar a Luanda para transmiti-la por telex. E a cada passo a terrível gratuidade da morte, a morte aleatória, a morte por coincidência, a morte individual desnecessária a qualquer vitória coletiva.

Um cinema drive-in reexibe sem parar Emmanuelle, a única cópia que ficou em suas mãos. Sem água, sem luz, sem lixeiros nem bombeiros, a cidade arde e apodrece. Ele diz que “embora os dois mundos, o conforto e a pobreza, se encontrem a dois passos um do outro e ninguém esteja a guardar o bairro rico dos europeus, os negros das cubatas de adobe não tentaram mudar-se para lá. A idéia não lhes passou pela cabeça”. Depois, Kapuscinski, na estrada, pergunta a Diógenes, um líder, por que eles andavam em caminhões tão precários quando as cidades estavam cheias de veículos em bom estado, deixados pelos portugueses. O outro responde que esses veículos eram propriedade dos portugueses. Não poderiam tocá-los. E de fato não tocam. Guerreiam com o que têm.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

3397) "Click, Enter e Play" (16.1.2014)




“Minha primeira revista literária foi na Paraíba. Eram os anos 1950, mas chegavam muitos contos pelo correio. Criamos um concurso, prêmios, sorteios.  Por dois anos a revista se pagou, com venda e alguns anúncios. Um dia chegou um conto, 20 páginas bem datilografadas, papel meio caro, paramos tudo para examinar. Se fosse bom, ocuparia o espaço de dois contos padrão. Ficaríamos com um a mais em nossa reserva, que andava escassa.

“Li. Era meio americanizado demais. Rapaz entra na aeronáutica, vai para a guerra a contragosto, no final é morto por um desertor. Mas se passava no Brasil, era bem escrita, pedi a leitura ao saudoso Domiciano Eiras. Ele ligou no outro dia. Tinha gostado, achou as paisagens da ilha deserta o máximo, os piratas sensacionais, mas preferia que “no final ele e a imperatriz ficassem juntos”.  Eu tinha pressa, desliguei intrigado. Ilha?  Imperatriz?

“Misael Lemos foi o terceiro a ler, e disse que era uma história cavernosa e interplanetária, com monstros bizarros que em alguns momentos o tinham assustado de verdade. Perguntei sobre o título. Ele respondeu: “Parece uma indicação técnica, das peças do tempo de Shakeapeare. ‘Click’ é o sinal dado por um contrarregra, e depois o ator entra, e atua.” Era citado na história, que era toda ela uma espécie de encenação.

“Misael mandou o conto para o escritório de Formiga, editor-chefe. Falou que a gente tinha gostado, mas não sabia se tinha entendido direito.  Na noite seguinte, foi lá, e Formiga falou: “Ambientada no Sertão do Rio do Peixe seria uma ótima história de cangaço. Gostei das perseguições, das cavalgadas.” Pousaram o texto na mesa sem discuti-lo: detiveram-se na língua do título, que Formiga dizia ser em inglês, e Misael que o título tornava-se em português em virtude daquele “e”, e as outras três palavras sendo meros estrangeirismos não digeridos.

“A campainha tocou, chegou a pizza que haviam pedido, e após o repasto os dois limparam a mesa, ensacaram o lixo, fecharam a sala e foram tomar uma. Misael disse depois que pensava no conto como um paradoxo divertido e intrigante. Formiga, envolvido com o trabalho, só tentou procurar o datiloscrito dois dias depois. Remexeu a sala uma manhã inteira até lembrar. A pizza, o lixo. O conto, seu envelope com endereço e com o nome do autor, que nenhum de nós lembrava, estava, caso existisse ainda, a caminho de algum lixão sanitário com milhões de toneladas cúbicas.

“Mas isso era nos velhos tempos, de máquina de escrever, papel carbono, estêncil, mimeógrafo, carimbo, linotipo, composição em chumbo... Hoje, com a modernidade, e principalmente com a Internet, nada disso aconteceria.”


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

3396) Um som sem trovão (15.1.2014)




O filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor, recebeu um dilúvio de elogios ano passado, e, talvez por conta disso, veio em seguida uma segunda onda de opiniões desdenhosas, no tom de “não achei essas cocacola toda”. Eu li pouquíssimo sobre o filme antes de vê-lo agora. Só sabia que era sobre um grupo de personagens espalhados por uma rua do Recife. Os elogios mais vigorosos foram feitos, em email, por W. J. Solha, o coronel Francisco do filme, que me elogiou o trabalho e o produto final, mas sem pistas do enredo. Por que insisto neste ponto? Porque quando a gente lê muito sobre o filme deixa de ter a experiência pura do filme. Ao invés de receber o filme na totalidade de cada momento seu, a gente fica esperando a cena da briga, esperando a cena da trepada, a cena do monstro, a cena da batalha... Resultado: não leio mais. Vou pro filme zerado.

Há uma cena em que o Dr. Anco está conversando com seu sobrinho João; os dois trabalham como corretores de apartamentos. Anco diz que lhe aconteceu uma coisa extraordinária. “Rapaz, fui mostrar um apartamento a um casal, pois não é que a mulher era uma ex-namorada minha?! A gente namorou um tempo, anos atrás, e o sexo com ela era bom demais, a gente fazia de tudo... Ela agora tá casada, com dois filhos...”  Há uma pausa. João pergunta: “E depois?”. Ele: “Depois, nada. Foram embora. Tu achasse pouco?” João: “Não, não. É ótima a história.”. O filme tem esse perfil, e talvez isso tenha irritado muitos espectadores. Porque ele arma situações que em outros filmes redundariam na cena da briga, na cena da trepada, etc. E não de propósito não redunda em nada.

O filme é meio nelsonrodriguiano, no sentido Zona-Norte-do-Rio do termo. Ambiente e personagens pós-Nelson, como Bia, a mulher que transa com a máquina de lavar roupa, que fuma maconha soprando no aspirador de pó, que dá sonífero ao cachorro. Mas onde Nelson derivava para o expressionismo, o melodrama, o filme se retém, reduz a marcha, mantém tudo num plano meio “filme de apartamento”, neo-realista, sem grandes lances dramáticos. Fica no que Drummond descreveu em “Vida Menor”: “A vida: captada em sua forma irredutível, /  já sem ornato ou comentário melódico, (...) Não o morto nem o eterno nem o divino, / apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente / e solitário vivo. / Isso eu procuro”.  Um naturalismo urbano sem os raios-e-trovões de um Nelson, um Dalton Trevisan, um Rubem Fonseca. Os personagens estão no epicentro tranquilo de um furacão. São os 360o de som em volta que formam um tsunami ameaçador, fechando-se sobre eles, um terremoto que se aproxima, uma guerra a caminho cujos sintomas explodem de repente em cada esquina.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

3395) "Notícia de um sequestro" (14.1.2014)





Na série “Livros Meio Antigos Que Sempre Me Interessaram Mas Só Agora Estou Lendo” posso incluir com prazer este relato de Gabriel Garcia Márquez, de 1996, a época em que a violência na Colômbia atingia proporções quase de guerra civil. Márquez, por um lado, tem uma imaginação “Realismo Mágico”, capaz de infinitos desdobramentos e constantes surpresas.  Sua formação, no entanto, é jornalística, e quando se detém sobre fatos ele parece ser tão objetivo e atento ao detalhe quanto – digamos – um Fernando Morais ou Ruy Castro, dois dos nossos referenciais de história verdadeira contada com rigor de minúcias.

O livro acompanha o sequestro de uma dezena de jornalistas colombianos pela quadrilha de Pablo Escobar, o barão da cocaína que na época tentava pressionar o governo para evitar ser extraditado para os EUA, onde suas chances de escapar à justiça seriam nulas. Os jornalistas eram de famílias influentes (havia a filha de um ex-presidente da República), famosos em todo o país. Ficaram em diferentes cativeiros, vigiados 24 horas por adolescentes drogados e armados, e a narrativa acompanha tanto os reféns quanto as famílias que, do lado de fora, pressionam o governo e os sequestradores em busca de uma solução.

Márquez arma o livro como uma história de suspense. Para nós, não-colombianos, todos aqueles personagens são desconhecidos. Lá, já se sabe (é fato histórico) quem morreu e quem foi resgatado com vida; para um leitor distante, é uma história que está acontecendo pela primeira vez no instante da leitura. Imaginamos a qualquer instante um desfecho trágico para qualquer um daqueles personagens. Sabemos que tudo já aconteceu, mas nossa ignorância do resultado nos ajuda a ler os fatos como se qualquer final fosse possível.

É uma história com intriga política, suspense, violência, fazendo um corte de várias classes sociais (há um contraste patético entre o refinamento inútil dos sequestrados e a rusticidade dos “testas de ferro” dos cativeiros), contada por um narrador onisciente que não pode interferir no enredo: ele vê tudo, mas tudo imovel, porque já aconteceu. Se fosse literatura, seria interessante saber até que ponto seriam toleráveis certos infelizes acasos que ocorreram, e certos destinos trágicos que parecem escritos em implacáveis estrelas. Descontando a crueldade e a tragédia das mortes de fato acontecidas, o destino da maioria dos reféns é um anticlímax. Romancistas e roteiristas de cinema hesitam em encerrar um drama dessas proporções de maneira banal, com pessoas famintas, atarantadas, andando numa rua de periferia em busca de um táxi ou de um telefone.

domingo, 12 de janeiro de 2014

3394) "O Som ao Redor" (12.1.2014)



Gilberto Freyre, um dos mais dedicados investigadores da sociedade pernambucana, intitulou seu primeiro grande livro Casa Grande & Senzala, criando com isto, aliás, uma terminologia que se incorporou a nossa linguagem cotidiana (“O Brasil pode até acabar com a senzala, mas nunca vai se livrar da casa grande”, etc.). Voltando sua mira para o meio urbano, Freyre produziu outro dístico que equaciona em outros termos essa clivagem social: Sobrados e Mucambos. Eu diria que a cultura pernambucana (principalmente cinema, literatura, música) vem nos últimos tempos produzindo um terceiro corte que na falta de coisa melhor eu chamaria Cobertura Duplex & Moradia Popular.

O filme O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho faz esse corte transversal numa pequena área urbana do Recife. É um terreno vasto de patriarcas do açúcar que, como tudo o mais que foi deles, acabou fatiado, loteado aos pouquinhos. Um império vendendo a si mesmo pelas beiradas, como naquela fábula do náufrago que todo dia cortava um pedaço de si mesmo e o jogava aos tubarões, na esperança de que poupassem o principal. No filme, os tubarões quase não são vistos, mas as grades que os mantêm do lado de fora são onipresentes. Todo enquadramento do filme lembra uma palavras-cruzadas. É tanta grade que parece que estamos em Abreu e Lima, não num bairro nobre.

Nobre é o tratamento que esses fidalgos-de-berço dão aos serviçais, quando em condições normais de temperatura e pressão. Certos retratos da aristocracia rural inspirados em histórias de chicotes e feitores ignoram essa maneira tranquila, civil, até descontraída com que os ricos nordestinos (o filme mostra) costumam tratar seus empregados. Quem grita e esculhamba com eles, em geral, são os patrões de classe média.

No labirinto das ruas floresce o mercado-negro da segurança privada, uma guarda-pretoriana a que os combalidos aristocratas entregam seu destino, meio que fechando os olhos a todas as evidências. Jovens ricos vivem de pequenos furtos ou se engajam como pequenos mascates da explosão imobiliária. O velho patriarca (W. J. Solha, bíblico e jagunço) é afável e bonachão, mas, quando prevê uma ameaça a um parente seu, racha-se o verniz, e a escama do dragão reponta, fumega.

São pessoas sem futuro, cercadas em 360 graus de raio por sons inexplicáveis, ameaçadores, recorrentes, irritantes. Um bombardeio de algo que se aproxima, prestes a escalar as árvores e pular os muros das fortalezas. O filme mostra a insônia dessas pessoas, que têm a expressão destruída de quem só quer paz, mas não sabem como interromper a guerra que os enriqueceu e hoje os malassombra.


sábado, 11 de janeiro de 2014

3393) A moeda do tempo (11.1.2014)




(Ilustração: Edward Gorey)


De vez em quando a gente entra nas redes sociais e começa a fazer brincadeiras com os amigos: “Seis posts na última meia hora? Vai trabalhar, vagabundo!”. Há uma mistura de seriedade e de gracejo nisso, principalmente entre aqueles cujo trabalho exige que fiquem o dia inteiro sentados na frente do computador. Escritores, tradutores, jornalistas... Ou mesmo pessoas que têm outras ocupações, mas de tanto em tanto tempo sentam diante do monitor, checam o que os amigos andaram postando, comentam, compartilham, envolvem-se em debates, fazem piadas.

Nada impede que essa aparente falta de ocupação esteja sendo exercida nos intervalos de um trabalho duro, e da minha parte nada melhor para descansar de uma hora intensa de escrita ou de tradução do que 15 minutos num Twitter ou Facebook peruando as polêmicas alheias, ou conferindo um clip musical, uma notícia quente. A gente volta ao trabalho com a mente relaxada, pronto para mais uma hora de enfrentamento. (O único prejuízo é do corpo, que continua escravizado ao teclado e à cadeira giratória.)

Estou perdendo meu tempo? Não acho. Perdia muito mais quando tinha TV na sala e no quarto e, sob o pretexto de “descansar a coluna”, me deitava às 3 da tarde nas almofadas, ligava a Máquina de Fazer Doido, e só emergia dali quando começava a novela das 8, porque afinal tudo tem um limite. Cinco anos atrás eu via uma média de 5 a 6 horas de televisão por dia; hoje em geral vejo quatro por semana (um jogo na quarta, outro no domingo, e olhe lá.)

O poeta Carl Sandburg disse: “O tempo é a moeda que você tem para negociar sua vida. É a única, e só você pode dizer como ela vai ser gasta. Tenha cuidado, não deixe que as outras pessoas a acabem gastando, em vez de você”. Chega um momento na vida em que eu olho minhas estantes repletas de tesouros inestimáveis e sei que não vou poder ler aquilo tudo. Eu seria capaz de escrever um livro sobre cada livro que tenho na minha biblioteca; mas não vai dar tempo. Gastei, gastei demais minha moeda, e se alguém vier me censurar minhas noitadas de botequim e violão eu direi que ao contrário, aquilo foi tempo bem investido e bem recompensado. O desperdício, amigo, é o programa de auditório que você fica olhando sem ver, só porque a TV está ligada; o filme bobo que você já viu, ou que está achando chato mas vê mesmo assim; o talk-show com gente cheia de caras e bocas e sem nada para dizer; o pseudo-noticiário de fatos cuja verdadeira versão você acabou de ler num blog confiável. O tempo não é um recurso renovável. Pior do que isto, é uma conta bancária de onde a gente retira um dia por dia, sem nem saber quanto falta para zerar o saldo.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

3392) Festa de Rei (10.1.2014)



No fim de semana passado, fiz uma coisa que só acontece raramente na vida da gente: realizar um sonho de quarenta anos, e ainda ganhar para isso!  O “ainda ganhar” se deve ao fato de que viajei a trabalho, como parte da equipe do documentário Bom dia, poeta, que incluía Alexandre Alencar (direção), Amaro Filho e Cláudia Moraes (produção), Ivanildo Marques e Chapola Silva (fotografia e som). Eu fui como roteirista e entrevistador, além de poeta nas horas vagas.

O sonho de 40 anos foi conhecer São José do Egito, que o pessoal chama (com certa discrepância geográfica) “a Meca da poesia popular nordestina”. Sem a grandiosidade da Kaaba ou das Pirâmides, São José é uma cidade de 30 mil habitantes que respira poesia como Florença respira artes plásticas ou Nova Orleans respira jazz. Está na essência, na medula daquele povo; está no seu jeito de ser, de falar, de pensar, de interpretar o mundo e de estabelecer seus laços recíprocos de amizade e admiração. No mundo da poesia popular, chamamos de poeta (“bom dia, poeta!”) as pessoas de quem gostamos, que admiramos, que desejamos honrar e tratar bem. Nem todos são poetas, é claro, mas um bom leitor de poesia é mais importante do que duzentos poetas ruins.

A Festa de Rei era a comemoração dos 99 anos de nascimento de Lourival Batista, “Louro” (1915-1992), e um ensaio para a festa do seu centenário no ano que vem. Louro, com quem convivi entre 1975 e 1980, formou, com seus irmãos Otacílio e Dimas, a trinca dos irmãos Batista Patriota, três rochedos imbatíveis contra os quais oceanos inteiros de versos alheios se espatifaram inutilmente. Cada um com suas características; o forte de Louro era o trocadilho, a construção sinuosa e impecável de glosas que entraram para a História, o espírito escarninho e mordaz (principalmente nos desafios com seu grande amigo Pinto do Monteiro), e a alma de poeta, sem vaidade, sem egoísmos. Criou uma família enorme, cheia de artistas, muitos dos quais se revezaram no palco armado em homenagem ao mestre nos dias 4, 5 e 6 deste janeiro.

São José é símbolo de uma região, o Vale do Pajeú, numa área onde Pernambuco e Paraíba se penetram mutuamente, como o símbolo do Yin-Yang, e que engloba Tabira, Itapetim, Teixeira, Tuparetama, Sertânia, Afogados da Ingazeira, Água Branca, Carnaíba, Flores... A Serra do Teixeira e o Rio Pajeú são dois vetores essenciais dessa cultura da sextilha, do cordel, do mote e da glosa; e do repente, do flash instantâneo de percepção que cria uma piada, um trocadilho...  Ninguém entenderá a poesia nordestina sem mergulhar nessa cultura gigantesca e quase invisível. É a ponta de um iceberg, e é maior que o Everest.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

3391) A Biblioteca Perdida (9.1.2014)




(by André Govia)

A cidade de Gesternburg é conhecida por sua catedral gótica, pela exuberância de suas floriculturas, pelos seus restaurantes (para os que apreciam a comida alemã) e pela Biblioteca Wolffring, uma das maiores coleções de obras ocultistas e místicas da Europa. Gesternburg é um porto fluvial, e o ápice de sua vida cultural foi entre os séculos 16 e 17, quando seu clima ameno e a facilidade de transporte fez muitos nobres do império austro-húngaro construir ali seus castelos de verão. A decadência das casas nobres fez com que as maiores absorvessem as menores, e o que aconteceu com os brasões se refletiu nas bibliotecas. Por volta de 1887, o Conde de Wolffring havia comprado todas as bibliotecas do vale.

A morte do Conde em 1914 coincidiu com o deflagrar da I Guerra Mundial. A cidade, miraculosamente, não sofreu nenhuma invasão, mas padeceu com o racionamento de comida. E foi aí que entrou na história o novo Conde, filho único do patriarca. Estrôina, beberrão, indolente, o jovem Conde começou a dilapidar a fortuna do pai, que morrera sem um centavo nos cofres. Como achava que mobília e pratarias tinham maior valor, começou a desfazer-se dos livros. Os fornecedores de pão, carne, vinhos, leite, vitualhas, passaram a ser pagos não com moedas, mas com pesados volumes de Eliphas Levi, de Swedenborg, de Fulcanelli... Os perplexos mercadores passavam esses livros adiante por qualquer preço. A cidade inteira tinha uma vaga idéia de que o Conde possuía volumes preciosos, e durante alguns anos livros passaram de mãos em mãos num complicado sistema espontâneo de escambo, onde contavam pontos o tamanho do volume, o número de páginas, as ilustrações ou iluminuras que exibia, a encadernação.

Desse modo, ao longo de dez ou quinze anos as estantes do castelo de Wolffring foram esvaziadas, enquanto pela cidade inteira espalhavam-se tesouros bibliográficos obscuros ou interditos. Pesquisadores do mundo inteiro costumam hoje hospedar-se em Gesternburg por longos períodos para consultar a Biblioteca Perdida. Para isso, tornam-se amigos de padeiros, encanadores, taxistas, camponeses, manicures, em cujas casas sempre é possível encontrar cofres de madeira bem cuidados onde se guardam exemplares da moeda local: a correspondência de Papus, primeiras edições de Blavatsky e de Valentin Andreae, manuscritos inéditos de Jacob Boehme e de Jan van Ruysbroeck. É possível consultá-los e até fotografá-los, se se recorrer aos serviços profissionais da pessoa sob cuja custódia estão. Este é um fato que tem contribuído para aumentar o fluxo do turismo cultural em Gesternburg neste último meio século. Quanto ao castelo do Conde, foi comido por um incêndio.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

3390) Arcaísmos idiomáticos (8.1.2014)



Algumas palavras entram em desuso na linguagem comum, vão deixando de ser usadas, as pessoas vão se esquecendo delas; às vezes ficam tão mortas e ressequidas que caem até do dicionário. Ocorrem, no entanto, que algumas delas sejam preservadas em frases feitas, em modos de dizer que as utilizam e que acabam sendo as únicas vezes em que elas são chamadas à ativa.

Vi no saite MentalFloss um útil artigo da linguista Arika Okrent sobre palavras assim na língua inglesa. O verbo “to wend”, que significa “ir”, sumiu; ficou apenas na expressão “to wend my/your/his way”, que significa “seguir caminho”. Ela explica que “to go” e “to wend” eram sinônimos de uso corrente, mas o segundo sumiu, deixando de si apenas o particípio passado, “went”, que transformou “to go” num esquisito verbo irregular.  Outro caso curioso é a palavra “fro”, que eu só conhecia da expressão “to and fro”, que significa “de um lado para o outro, pra lá e pra cá”. Diz ela que é uma pronúncia arcaica de “from”, o que, agora sim, dá sentido à frase, sugerindo a ida e a vinda.

Temos expressões parecidas em português. Um exemplo que me vem à memória é a frase “não vale um tostão, não vale um tostão furado”. Quanto é o valor monetário de um tostão? Não sei, porque quando nasci ele já estava obsoleto. Sobreviveu colado à frase. Algo parecido se deu com “comer uma arroba de sal com Fulano” (=conviver bem de perto com Fulano, pois sal come-se aos pouquinhos); arroba como medida de peso já foi pro espaço, mas a palavra acabou tendo uma ressurreição paralela, ligada ao símbolo “@”, tão útil hoje em dia.

Não sei se a palavra “alvíssaras” ainda subsiste fora da expressão “pedir as alvíssaras”, que se atribui a quem é o primeiro a dar uma notícia.  “Fulano ontem de noite chegou aqui em casa pedindo as alvíssaras, porque a irmã dele vai ter neném.”   Vem do antigo costume português, preservado nos cantos da “Nau Catarineta”: “Alvíssaras meu capitão / Meu capitão general! /  Já vejo terras de Espanha / areias de Portugal!”.

Não são apenas palavras que subsistem assim, mas idéias. Muitos jovens hoje usam a expressão “cair a ficha” sem saber que ela se deve aos orelhões, os telefones públicos onde a ficha caía quando havia conexão, alguém atendia do outro lado. (Em inglês há expressão paralela: “the coin dropped”, “a moeda caiu”).

Tem a expressão “dar às de vila diogo”, que significa “fugir,  passar sebo nas canelas, bater em retirada”. O tal Vila Diogo, que não sei quem seja, foi preservado na frase, mas vejam só o que é a língua, somente macróbios de óculos fundo-de-garrafa como eu recordam a expressão. Neste caso parece que afundou foi tudo.


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

3389) "Invasores de Marte" (7.1.2014)



Revi no YouTube este filme de William Cameron Menzies, que é de 1953 mas devo ter visto por volta de 57 ou 58. Um garoto vê de madrugada um disco-voador aterrissando numa colina próxima de sua casa. No dia seguinte o pai dele, que é alegre e carinhoso, vai ver o que aconteceu e volta transformado num homem sombrio, violento e insensível. Logo o garoto percebe um ponto vermelho, como um pequeno rubi, cravado na nuca do pai. Pouco a pouco, as pessoas em volta (a mãe, os vizinhos) passam pela mesma transformação, e segue-se a previsível peregrinação paranóica do garoto por uma cidadezinha indiferente, até achar um casal de cientistas que acreditam nele. No final, eram alienígenas que estavam implantando controles mentais nas pessoas para sabotar uma base de foguetes das vizinhanças, onde o pai do menino trabalhava.

Foi um filme que me marcou na infância. Adquiri o mau hábito de olhar a nuca das pessoas, porque quando o vi eu tinha mais ou menos a idade do garoto. Neste saite (http://bit.ly/1dSh3cj) vi uma boa análise do filme, que é melhor ser lida logo após assisti-lo, senão fica difícil de entender, pois vai muito aos detalhes concretos. O crítico, Glenn Erickson, examina com habilidade o teor de pesadelo do filme, mostrando como tudo ali funciona na mente do garoto (o final deixa meio em dúvida se foi tudo um sonho ou não).

A imagem mais forte do filme, para mim, é a da colina por trás da qual se esconde a nave, acompanhada por uma cerca tortuosa e caligaresca. Diz-se que o filme iria ser feito em 3D, e Menzies concebeu a trilha que sobe a colina num jogo de perspectiva em que o trecho parece ter uns dez metros de extensão mas tem o dobro, de modo que uma pessoa quando a percorre parece levar mais tempo e diminuir de tamanho mais do que seria normal. O uso dos espaços (portas com 3 metros de altura!) e as pessoas que desaparecem afundando na areia (como em outro clássico, The Mole People, 1956) são mais impressionantes do que os efeitos especiais dos “monstros marcianos”, dos quais apenas uma imagem tornou-se famosa, a cabeça com tentáculos verdes dentro de uma espécie de aquário.

É um dos bons filmes da FC paranóica da Guerra Fria, usando com habilidade o clichê do “garoto que é o único a saber a verdade mas ninguém lhe dá ouvidos”. Como era de praxe na época, cabe ao exército americano enfrentar os invasores com tanques e granadas. A parte científica é risível – em 1953, o cinema estava no nível científico das revistas de pulp fiction de 1920, se tanto. Mas o tom kafkeano serviu de modelo para filmes posteriores como Invasion of the Body Snatchers de Don Siegel (1956).


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

3388) Melodrama de ação (5.1.2014)



Melodrama de ação é toda narrativa baseada na aventura com ação física intensa, variada, exibicionistamente descrita. Por ação física entenda-se brigas individuais e batalhas coletivas, perseguições, fugas, travessia de lugares perigosos, condução de veículos em situações desfavoráveis, enfrentamentos com feras ou com flagelos da natureza... 

Ninguém captura isto tão bem quanto o cinema, e querer que não haja filmes de ação é bobagem de intelectuais desocupados. (O que, aliás, é um oxímoro. Todo verdadeiro intelectual tem sempre o que fazer, ao invés de ficar implicando com bobagens.)

O termo melodrama designava um tipo de teatro musicado (“melo” = música) que ficou associado a histórias implausíveis, com perigos exagerados, sentimentalismo, personagens “de papelão”, histórias cheias de improbabilidades, coincidências, fatalismos, sem preocupação de verossimilhança, e pretendendo apenas produzir sensações fortes, dar sustos, criar suspense... 

Uma boa sátira ao melodrama é o conto “A chinela turca” de Machado de Assis.

O melodrama tradicional é do tempo do romance folhetim (que redundou nas telenovelas e nas séries de TV, com sua estrutura de finais em suspenso) e do teatro de Grand Guignol, com sua violência gráfica, explícita, hoje transposta para filmes B de terror, “gory”, “slash”. 

Eu diria que o melodrama de ação mais importante de hoje é o filme de super heróis, e que os efeitos especiais cumprem uma função parecida com a que a música orquestral cumpria naquele teatro de 150 anos atrás.

O filme de super heróis é um melodrama onde tudo está subordinado à ação: roteiro, interpretação, direção. Movimentação incessante, destruição reiterada de objetos e cenários, e um plot que se limita a, mediante situações psicológicas extremas (vinganças, ódios, crueldades, ambições desmedidas, presença de vilões megalomaníacos) justificar ações extremas onde a violência está sempre pronta para explodir. 

Algumas características do gênero: 

1) o herói Doppelganger (homem pacato x justiceiro, duas pessoas que são uma só); 

2) uma galeria de vilões com traços inconfundíveis, grotescos; 

3) ação hipérbólica (não basta que dois personagens briguem, a briga precisa destruir um quarteirão inteiro); 

4) soluções mágicas para impasses dramatúrgicos (enredos tipo “com-um-puxão-Jack-partiu-as-cordas-que-o-aprisionavam”, segundo Peter Nicholls); 

5) cenas de 2ª. unidade obrigatórias (o estúdio exige cenas específicas para ocupar técnicos e laboratórios caríssimos); 

6) emoções grandiloquentes e vulcânicas engastadas num tecido de irrelevância, onde a platéia imatura possa aconchegar-se à idéia de que “é tudo brincadeirinha”.