quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

2799) Quando meu tempo (22.2.2012)




Quando meu tempo se esgotar, sentirei minhas veias se esvaziando da banda-larga biológica que as percorre; sentirei as cores do mundo sumindo, a granulação da vista aumentando, até que todas as imagens à minha frente se pulverizarão como um redemoinho de pixels negros numa página branca, e acontecerá com minha memória o quer acontece quando uma carta escrita com pequenos montes de pó de café é levada de camelo através de Saaras e simuns.

Surgirá na ponte levadiça do meu Castelo uma carroça de fibra-de-vidro puxada por quatro pares de robôs andrajosos, enferrujados, resfolegantes, e o cocheiro será um orangotango com implantes cibernéticos no lobo frontal. Ao lado deste, estará um produtor executivo vestindo terno preto, camisa chumbo e gravata preta, com um contrato na mão, uma folha de papel onde os termos finais foram redigidos com pó de café e trazidos à minha porta através da guerra da tomada do meu Castelo.

Eu estarei sozinho para me defender, mas de arma em punho, e ironicamente a última arma que escolhi para me defender é o multicontrole remoto de onde consigo acessar quatro palácios de governo, seis divisões motorizadas, noventa e duas bibliotecas digitais, o celular privado de dezoito chefes de Estado e os de suas dezoito primeiras damas, as 500 webcams dispostos em 360 graus em torno do Castelo. Penso com ironia que esta super-arma só mereceria este nome se trouxesse embutida uma minibomba atômica que pudesse pelo menos volatilizar toda a matéria em cem metros de raio, dispersando seus átomos como se fossem grãos de café.

Sem desfraldar bandeiras, sem partir grilhões, sem botar muralhas abaixo com trombetas e rajadas, meu tempo se esgotará. Sem frases altissonantes, sem webcams mundo afora, sem incensos e mantras, sem dó nem piedade, meu tempo se esgotará. Se esgotará espremendo-se a si mesmo para que haja significado em cada átomo, em cada átimo, em cada gotinha de suor e em cada gotinha de tinta que minha caneta pingar no papel ou meu dedo gravar em pixel na tela eletrônica.

Quando meu tempo se esgotar estarei ainda com meu corpo neste mundo real, onde ele poderá ser submetido às humilhações messiânicas da Medicina que prolonga agonias; mas a minha mente, envolvida no vórtice-turbilhão com que desaparecerá em si mesma, será capaz de saber e de distinguir, será capaz de entender e de imaginar. Meu tempo terá se esgotado, minha matéria estará se desagregando aos vendavais furiosos da entropia, mas a mente é mais do que a matéria que lhe deu vida. A mente sobreviverá ao corpo, orgulhosa e brilhante; por um milionésimo de segundo, mas sobreviverá ao corpo, quando meu tempo se esgotar.