sábado, 13 de agosto de 2011

2633) Cinema e biografias (12.8.2011)



(Adrien Brody como Salvador Dali)

Quando vemos filmes que contam a história de pessoas famosas, com as quais temos certa familiaridade, avaliamos essas encenações biográficas de acordo com as nossas expectativas de como elas deveriam ser tratadas num filme. Dizemos que o filme tal não é fiel à imagem de Dylan Thomas, ou que o ator que interpretou Rodin não está à altura dele. Dizemos que o filme sobre Villa Lobos esteve mais próximo da realidade do que o filme sobre Beethoven; e assim por diante. Isto não ocorre apenas com o cinema, claro; na pintura também. Há muito tempo foi questionada a imagem de Tiradentes que os quadros históricos nos transmitiram: barbudo como Cristo, vestindo um roupão branco, etc. Dizem os historiadores que os prisioneiros naquela época tinham que cortar a barba e o cabelo, para evitar piolhos. A imagem de Tiradentes que herdamos é uma farsa para torná-lo parecido com Jesus Cristo. (Quanto à imagem de Cristo, isso aí já é outra história).

No recente Meia Noite em Paris, Woody Allen faz seu protagonista contracenar com uma porção de artistas e escritores, desde Picasso e Luís Buñuel até T. S. Eliot e Gertrude Stein. Vi interessantes discussões de críticos achando qualidades e defeitos em cada uma dessas recriações, sempre com base na imagem pública que guardamos daquelas pessoas. Personagens como estes podem ser discutidos, porque estão suficientemente próximos de nossa memória cultural, mesmo que não da memória pessoal de cada um. Creio que nunca vi nenhum documentário sobre Hemingway, mas existem muitos, e certamente ainda há pessoas vivas que o conheceram. Imagens do cinema e da TV podem nos dar pelo menos uma vaga idéia de como era ele. Mas o que de dizer de filmes sobre personagens de 200 ou 300 anos atrás? Que verossimilhança podemos exigir?

Comentando o filme, Woody Allen falou: “Daqui a cem anos, alguém vai fazer um filme sobre a Nova York da minha época, e digamos que eu não serei um dos personagens mais importantes, mas alguém periférico. Alguém vai entrar no Elaine’s e lá estarei eu, interpretado por algum canastrão, porque todos me veem como um canastrão, e ele estará usando óculos de grau, e será um sujeito recluso, ceio de pessimismo existencial, que sente calafrios diante da mera possibilidade de ir passear no campo – alguma imagem execravelmente exagerada do que as pessoas imaginam que eu sou. E isso será o meu inferno”.

Difícil saber se os homenageados de Midnight in Paris se divertiriam ou ficariam irritados diante do modo como foram tratados. Allen tem consciência de que cada um de nós é uma pessoa de verdade coberta de caricaturas de si própria que são resultado dos nossos contatos com diferentes pessoas. Personagens públicos sofrem a cristalização de um imagem que é reforçada constantemente até se tornar óbvia e obrigatória. A esta altura, é difícil convencer alguém de que Kafka não era deprimido, Karl Marx não era iracundo, D. João VI não era um bobalhão.

2 comentários:

Fraga disse...

E o Dali do do filme foi contaminado pela canastrice do Brody. Sobre tais máscaras, vale lembrar aquele encontro final em Vítimas de Uma Paixão, num bar, onde o Al Pacino indaga filosoficamente o John Goodman: O que vemos nas outras pessoas? Baita texto, como sempre. Abração aqui do sul.

Braulio Tavares disse...

Os críticos meteram o chanfalho no pobre do Brody, coitado, que fez até um esforço heróico, com dez linhas de texto repetitivo. Merecia cachê dobrado pela crueldade. Já o Hemingway é ótimo, a Zelda também, e o Picasso é convincentemente iracundo.