quarta-feira, 31 de agosto de 2011

2649) O líder que deixa liderar (31.8.2011)



(Garrincha, Didi e Pelé)

O designer Bruce Mau criou The Incomplete Manifesto, um conjunto de instruções para enfrentar situações em que a criatividade emperra. O texto (está completo aqui: http://tinyurl.com/yamtgvd) tem 43 itens, e aqui vai mais um, comentado por mim.

“10) Todo mundo é líder. O crescimento é algo que acontece. Quando acontecer, deixe que brote. Aprenda a segui-lo quando ele fizer sentido. Permita que qualquer um possa liderar”.

Estas poucas linhas me lembram episódios em que a liderança de um trabalho foi momentaneamente assumida por um subordinado, e o líder natural do grupo, ao invés de sentir-se ofendido ou ameaçado por isso, teve a lucidez de dar um passo de lado e ceder essa liderança a quem tinha uma proposta melhor que a sua.

Na Copa do Mundo de 1958, o Brasil estreou vencendo a Áustria (3x0) e empatando com a Inglaterra (0x0). O time tinha na reserva o adolescente Pelé, com 17 anos, e o imprevisível Garrincha, com 24, considerado por alguns cartolas um irresponsável, porque jogava para se divertir. 

Na véspera do jogo com a Rússia, que decidiria nossa classificação, Feola foi procurado pelos jogadores mais experientes do time: Nilton Santos, Didi, Gilmar, etc. Os jogadores o convenceram de que com Pelé e Garrincha o time ficaria imbatível. 

Feola não usava terno Armani à beira do campo, não era truculento, não se achava o dono da verdade. Aceitou o conselho dos jogadores, “e o resto é História”.

Em 1980, a diretora Tizuka Yamasaki estava realizando seu primeiro filme, Gaijin – Os caminhos da liberdade, história da imigração japonesa no Brasil. O roteiro original (que contava em linhas gerais a vida da avó da diretora) terminava com a impossibilidade do casamento entre ela e um namorado brasileiro (como ocorreu na vida real). 

Perto do fim das filmagens, Tizuka foi abordada por atores e membros da equipe técnica. Eles queriam que o filme terminasse com o casamento da japonesa e do brasileiro. Tizuka argumentou que na vida real não fôra assim; eles contra-argumentaram que o filme era a favor da miscigenação e da união entre as duas culturas, e que neste caso a fidelidade à biografia de uma única pessoa era de importância menor. A diretora aceitou, mudou o fim do filme, e o filme ficou muito melhor.

Um amigo meu, engenheiro elétrico, estava coordenando a construção de um conjunto habitacional popular. A certa altura surgiu um problema com a distribuição das redes elétricas dos blocos. As soluções padrão, que ele e os outros tinham aprendido na faculdade, não se aplicavam ali. Um morador local, que era eletricista nas horas vagas, propôs uma solução pouco ortodoxa. Eles ficaram um tempão avaliando e resolveram tentar. 

Deu certo. “Era uma solução típica de quem não aprendeu as soluções mais óbvias”, disse ele. “Mas funcionou, e fim de papo. Nosso mérito foi apenas o de dizer: ‘Vamos tentar a solução do cara’, e esquecer que ele estava ali como mero ajudante.”







terça-feira, 30 de agosto de 2011

2648) "Boletim da Guerra no Recife" (30.8.2011)



Mauro Mota, cujo centenário de nascimento está sendo comemorado este ano (2011), tem muitos belos poemas. 

Um dos mais conhecidos e mais atuais dele é o “Boletim Sentimental da Guerra no Recife”, um longo poema no estilo do Romanceiro (redondilha maior, rimas toantes). 

O poema descreve e comenta (com ironia ferina, com carinho paternal, com melancolia) o destino das meninas recifenses que durante a II Guerra Mundial namoraram soldados norte-americanos aquartelados no Recife. 

Deixaram-se seduzir por promessas de ir morar na América do Norte, engravidaram, e no fim da Guerra ficaram a ver navios; e aviões. 

Um poema de meio século atrás mas que parece profetizar o turismo sexual de hoje: 

Éreis tão boas pequenas. 
Éreis pequenas tão boas! 
De várias nuanças morenas, 
ó filhas de Pernambuco, 
da Paraíba e Alagoas. 
Tínheis de quinze a vinte anos, 
tipos de colegiais, 
diante dos americanos, 
dos garbosos oficiais, 
do segundo time vasto 
dos fuzileiros navais 
prontos a entregar a vida 
para conseguir a paz, 
varrer da face do mundo 
regimes ditatoriais 
e democratizar todas 
as terras continentais 
a começar pelo sexo 
das meninas nacionais.

Um poema que bem poderia ser impresso em panfletos de papel barato e distribuído nos fins de semana nas praias de Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió... Onde quer que exista a convivência-de-risco entre a solidão pobre e a solidão rica, entre homens que só têm o dinheiro para oferecer e mulheres que só têm o corpo para dar. 

E como dizer às meninas que isso é um sonho, se todas conhecem a história da amiga da prima de uma vizinha, que saiu com um gringo cinquentão, apaixonaram-se, casaram, e ele montou para ela uma casa na Europa, tornou-se um marido carinhoso e um pai exemplar para o seu bebê? 

Basta que uma única pessoa tenha ganho essa Mega-Sena matrimonial (e quem pode negar que isso já aconteceu uma ou outra vez?) para que todas se julguem merecedoras do mesmo, e comecem a sonhar. 

Mesmo que o preâmbulo do sonho envolva estar de shortinho e bustiê, sentada na perna de um gringo num boteco da praia, fazendo-lhe carinhos promissores enquanto ele contempla palmo-em-cima seus atributos e faz comentários em língua estrangeira com os outros que bebem na mesma mesa.

Quando o gringo vai embora... Diz o poeta: 

Ingênuas meninas grávidas, 
o que é que fostes fazer? 
Apertai bem os vestidos 
pra família não saber. 
Que os indiscretos vizinhos 
vos percam também de vista. 
Saístes do pediatra 
para o ginecologista. 

Quando um exército invade um país, a posse sexual da população feminina local é um símbolo e uma confirmação desse triunfo. Mesmo que seja a invasão pacífica de um exército aquartelado numa nação amiga. 

Mesmo que seja a invasão pacífica do turismo, financiado pelos governos, estimulado pela propaganda, sacramentado pelo princípio básico do Capitalismo: “Tudo tem um preço. Faça seu preço, e alguém poderá pagar”.







domingo, 28 de agosto de 2011

2647) O insulto ao feiticeiro (28.8.2011)




(Samuel van Hoogstraten, Homem na Janela)

Argote de Molina é uma rua tortuosa que ziguezagueia em ângulos obtusos, conduzindo às proximidades da Torre da Giralda, em Sevilha. Há duzentos anos, quem passasse por ali sem muita pressa poderia avistar, ora agachado num portal, ora sentado à sombra de uma coluna, ora cambaleando sobre as pedras enlameadas, um homem encarquilhado de barbas brancas e sujas, amparado num ramo de árvore desbastado a faca. Seu nome era Agustín de Zayas, chamado de “Gustín” pelos peixeiros e padeiros que o alimentavam de esmolas.

Gustín foi soldado da guarda de Don León Lanure, fidalgo de Salamanca que para ali se transferiu a mando do rei. Diz-se que o encontro entre Gustín e o feiticeiro Zamora foi breve, à saída de uma taverna. Um esbarrão, uma troca de insultos, e Gustín, mais jovem, mais impetuoso, mandou que segurassem aquele homem gordinho e desajeitado e chicoteou-lhe o rosto várias vezes. O outro fugiu sangrando, balbuciando maldições. O taverneiro comentou, sombrio: “Não devia ter feito isso, senhor. Esse homem tem parte com as energias do Mal, e todos o temem”.

Gustín cuspiu na sarjeta o seu desprezo, mas desde então sua vida desandou. Surgiram feridas em seu corpo. Don León foi enforcado por conspirar contra o rei, e Gustín cumpriu dois anos de masmorra, onde as doenças e os maltratos o envelheceram vinte. A esposa o abandonou por um comcerciante rico e foi viver na França. Ao ser libertado, Gustín tornou-se mercenário a soldo de quem pagasse melhor; perdeu um olho e todos os dentes em combate. Passou a procurar Zamora por toda a Andaluzia. “Para quê?”, perguntavam-lhe. E ele: “Para chicoteá-lo até que desmanche seu feitiço”. Sua casa incendiou-se. Seu sono era incomodado por pesadelos, e rara era a noite em que não acordava gritando. Deixou de ser alistado nas tropas, porque dizia-se que dava azar.

Soube que Zamora estava morando na Provença, e partiu para lá. Já vestia somente andrajos, e a única coisa de valor que conduzia era o punhal com que pretendia degolar o bruxo. Sem conseguir falar a língua local, acostumou-se a viver de esmolas, e retornou anos depois a Sevilha, onde viveu da caridade de seus ex-companheiros. Ao receber um prato de comida, murmurava: “Deus te pague agora, e te pagarei em dobro quando ficar bom”. Quando alguém o reconhecia e lhe dirigia a palavra, dizia: “Estou coberto por um feitiço, mas quando encontrar Zamora ele me pedirá perdão e voltarei a ser quem sou”. Os anos se passaram. Falou-se que Zamora morrera de febre numa viagem a Constantinopla, mas Gustín recusou-se a crer. Aprendeu a ler com os padres da Catedral. Em cada livro da Bíblia lia sua própria história e julgava ver recados enviados pelo bruxo. No fim, quando lhe dirigiam a palavra, dizia: “Estou à procura do bruxo Zamora, se ainda vive, para pedir-lhe perdão”. Talvez o perdão tivesse sido concedido, porque os cães já não disputavam sua refeição, e as moscas não perturbaram sua última noite de insônia.






sábado, 27 de agosto de 2011

2646) Um caso para Perry Mason (27.8.2011)



Para quem nunca ouviu falar, Perry Mason é o advogado-detetive criado por Erle Stanley Gardner ao longo de dezenas de romances policiais (82, para ser exato) que deveriam ser leitura de lazer obrigatória para todo advogado que se preze. Na adolescência, sonhei em me formar em Direito e fazer o que Mason fazia: dar um banho de esperteza no promotor, libertar o cliente (acusado de um crime) e de lambuja entregar à polícia o verdadeiro criminoso. Os romances de Gardner (cujos títulos sempre começam com “O Caso do...”) seguem uma fórmula precisa e obrigatória, com as variações mais inesperadas dependendo do cliente, do crime cometido e das complicações colaterais. Agora mesmo está me dando uma vontade enorme de reler “O Caso da Lata Vazia”, “... das Garras de Veludo”, “... da Morena Emprestada”, “... da Loura de Olho Roxo”, “... dos Peixinhos Dourados”, “... do Gorila Sorridente”...

Um dos aspectos mais fascinantes do crime é o fato de ele ser algo minuciosamente descrito, previsto e catalogado pela estrutura jurídica. E um tema eterno da literatura policial é um tipo especial de crime perfeito, o crime que todo mundo sabe que Fulano cometeu mas nada pode fazer, porque a lei não prevê aquele crime. Na Inglaterra, antes de 1548, um júri só considerava assassinatos que tivessem sido cometidos no condado de sua jurisdição. E houve casos de assassinos que feriam a vítima num condado e a transportavam para que morresse no condado vizinho; dessa maneira os dois elementos do assassinato (a agressão e o falecimento) ficavam dissociados e a lei “travava”.

Li uma vez no Mistério Magazine de Ellery Queen um conto (não lembro o autor, o título era algo como “Um Caso para a ONU”) em que um homem matava outro a tiros num voo EUA-Europa, e provava por a+b que não podia ser preso, porque ele era de uma nacionalidade, a vítima de outra, a companhia aérea de outra, e o crime fôra cometido sobre águas internacionais. No fim, a polícia o prendia por conspiração (ou coisa parecida), porque o planejamento do crime tinha sido feito em território norte-americano.

Surgiu agora um fato jurídico interessante nos EUA. O Parque Nacional de Yellowstone fica no Distrito de Wyoming, mas partes dele estão nos Estados vizinhos de Montana e Idaho. Se alguém cometer um crime nessa faixa, terá que ser submetido a júri popular e os jurados terão que ser convocados entre a população da região do Parque no Estado de Idaho, e essa população é zero. Um advogado esperto conseguiria anular todo o processo e libertar o criminoso. Quem chamou a atenção para isto foi Brian C. Kalt, professor de Direito em Michigan. Ele admite que seria possível, como no exemplo acima, alegar que o planejamento do crime havia sido feito noutra parte do país. (Uma discussão de todos os detalhes pode ser lida aqui: http://bit.ly/ppWJAG). Até agora, o único crime cometido dessa forma foi a morte de um alce, mas o sistema jurídico dos EUA está se mexendo antes que isto chegue aos ouvidos dos sucessores de Osama Bin Laden.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

2645) A poética da cadência (26.8.2011)



(Edward Thomas e Robert Frost)

Um artigo de Matthew Hollis em The Guardian comenta a amizade literária entre o norte-americano Robert Frost e o galês Edward Thomas, iniciada em 1912, quando Thomas, então um crítico literário influente em Londres, comentou com entusiasmo um livro (North of Boston) daquele poeta desconhecido, recém-chegado dos EUA. 

Os dois tornaram-se amigos e se corresponderam até a morte de Thomas na I Guerra Mundial, em 1917. Nunca li nada de Thomas (que depois da amizade com Frost tornou-se também poeta), mas esse livro tem dois dos poemas mais conhecidos de Frost: “The Road not Taken”, que fala das opções que temos de fazer constantemente ao longo da vida, e “Mending the wall”, em que dois vizinhos, meio cabreiros, trabalham juntos para refazer um muro de pedras que separa as duas propriedades. 

Frost é um desses poetas sem muitas firulas, com uma linguagem simples, concentrada, que pode ser apreciada por um leitor estrangeiro (a maioria dos poetas em inglês eu não entendo nem com dicionário no colo).

Um parágrafo de Hollis (que é autor também de uma biografia de Thomas, Now all roads lead to France, 2011) merece atenção por exprimir uma idéia de poesia que nem sempre é bem compreendida. Diz ele: 

“Para esses dois homens [Frost e Thomas], a máquina que move a poesia não é a rima nem sequer a forma, mas o ritmo, e o órgão pelo qual ela se comunica é o ouvido que escuta, mais do que o olho que lê. Para Thomas e Frost isso acarretava uma fidelidade mais à frase do que à contagem métrica, aos ritmos da fala mais do que às convenções poéticas; uma fidelidade àquilo que Frost chamava de ‘cadência’. Se você já ouviu pessoas conversando por trás de portas fechadas, raciocinava Frost, você já deve ter reparado que é possível entender o sentido geral de uma conversação mesmo quando as palavras propriamente ditas são indistintas. Isto é porque as entonações e as sentenças com que falamos estão carregadas de sentido, formando um ‘significado sonoro’. É sobre esse significado, desencadeado pelo ritmo da voz que fala, que a poesia se comunica de maneira mais profunda. Thomas escreveu certa vez: ‘Um homem não pode escrever melhor do que ele fala quando alguma coisa o emocionou profundamente’”.

Acho que tudo isto deve ser considerado a sério quando falamos que a poesia tem influência oral, da fala, etc. Muita gente pensa que isto indica apenas que a poesia deve ser sempre coloquial, informal, descontraída, parecida com o modo desconexo e descuidado como falamos. Não é bem isso.

A poesia deve se aproximar da fala em todos os registros da fala, em todas as maneiras com que somos capazes de imprimir à fala (entre outras coisas) gravidade, tensão, emotividade, arrebatamento. Como se tivéssemos um telefonema de quinze segundos para comunicar algo muito importante a alguém, mas em compensação pudéssemos preparar o que dizer nesses 15 segundos durante o tempo que fosse necessário.






quinta-feira, 25 de agosto de 2011

2644) O Cão de Mauro Mota (25.8.2011)



Os leitores de poesia estão comemorando os cem anos de nascimento do poeta pernambucano Mauro Mota, falecido em 1984. MM foi um desses muitos talentos literários que conseguem uma consagração razoável em sua própria terra, virando inclusive referência obrigatória para as gerações futuras, mas nunca conseguem se tornar poetas de aceitação nacional, e anos depois de seu falecimento começam a ser meio esquecidos, o que é uma grande injustiça. São muitos casos assim: o mineiro Dantas Motta (Elegias do País das Gerais), o goiano José Godoy Garcia (Araguaia Mansidão), o carioca Moacyr Félix (Um Poeta na Cidade e no Tempo), e outros que, quando os li, pareciam-me pertencer ao primeiro time da poesia brasileira (um time bem amplo, por suposto). E hoje parece que ninguém sabe quem foram.

Mauro Mota tem uma série de sonetos (no livro Elegias) inspirados, ao que se diz, pela morte da esposa ainda jovem. São de uma extrema delicadeza de observação e de sentimento. Lembram poemas semelhantes de Alphonsus de Guimaraens ou de Cruz e Souza, registro impressionista de emoções profundas que se exteriorizam em minúsculos aspectos físicos. Uma feição, um gesto, um pedaço de vestimenta, uma atitude, tudo cercado pela fragilidade do corpo e pela inevitabilidade da morte. Mota foi também um poeta de extrema visualidade, a visualidade que percebe pequenos detalhes e faz surpreendentes associações de idéias. Lembro seu poema sobre o guarda-chuva como uma “grande rosa negra” que desabrocha nos dias de chuva, ou o poema sobre a bengala como uma árvore que é arrancada de novo toda vez que toca no chão.

Meu poema preferido de MM é “O Cão”, que já na adolescência me impressionava pelo terror apocalíptico que era capaz de inspirar, o cão mítico que era o Cérbero da mitologia, o Cão dos Baskervilles que perseguiu Sherlock Holmes, o mastim infernal que farejava a trilha de Robert Johnson. Diz o poeta: “É um cão negro. É talvez o próprio Cão / assombrado e fazendo assombração. / Estraçalha o silêncio com seus uivos. / A espada ígnea do olhar na escuridão / separa a noite, abre um canal no escuro.” Um molosso infernal, místico, de dimensão ameaçadoramente noturna e subterrânea. Ele prossegue: “Cão da Constelação do Grande Cão, / tombado no quintal, espreita o pulo: / duendes, fantasmas de ladrão no muro.” Versos que me lembram aquele “soneto irritado” de Drummond: “Ninguém o lembrará: tiro no muro, / cão mijando no caos...”

O Cão de Mauro Mota é o cão da estrela Sirius da constelação do Cão Maior, um cão gigantesco que se ergue no céu e ocupa o espaço de horizonte a horizonte: “O latido ancestral liberta a fome / de tempo, e o cão, presa do faro, come / o medo e a treva. Agita-se, devora / sua ração de cor. Pois, louco e uivante, / lambe os pontos cardeais, morde o levante / e bebe o sangue matinal da aurora.” Um poema simbolista, surrealista, emblemático, alquímico? Não, sei, mas pra mim é poesia pura.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

2643) Meus gols de placa (24.8.2011)





(detalhe de foto de Gustavo Moura)

A convivência de uma vida inteira com o mundo do futebol (e a prática intensa de uma versão informal deste esporte, a famosa “pelada”, entre os 11 e os 16 anos) desenvolveu em mim o senso estético do jogo e o talento planejador. Sou autor de uma porção de gols de placa que nas horas vagas me deleito em repassar na memória. (Se bem que “memória” é um termo dúbio para designar algo que, mesmo tendo acontecido milhares de vezes, só aconteceu no meu modesto “teatro mental”).

Um dos meus favoritos é um gol em que estou na posição de centroavante, próximo à meia-lua da área e de costas para o gol. O zagueiro me acossa por trás, impedindo minha movimentação, e meu time vem em contra-ataque veloz. O armador lança a bola na minha direção. Quando ela chega aos meus pés, viro o corpo para a direita como se fosse rodear o zagueiro por aquele lado; e ao mesmo tempo desvio a bola para a esquerda, tirando-a do alcance dele. O zagueiro hesita, bloqueado por essa mensagem contraditória, sem saber se barra minha passagem por um lado ou se intercepta a bola pelo outro. É tudo que preciso para rodeá-lo por completo, apanhar a bola que o rodeou pelo lado oposto, romper de área adentro, e desviá-la do goleiro até o fundo das redes.

Gostaram? Tem mais. Tem um em que estou de frente para o gol, fora da área, e a bola vem quicando na minha direção. Quando o zagueiro fecha sobre mim, ao invés de tentar receber a bola com o pé eu a faço repicar novamente no chão, batendo e subindo; o corte dele passa direto, e quando a bola desce eu puxo para o lado limpando o lance e mando um petardo no ângulo, indefensável.

Outro dos que mais gosto é um em que estou dentro da pequena área, numa daquelas confusões pós-escanteio, de costas para o gol. O goleiro está às minhas costas, quase embaixo do travessão, e um atacante do meu time chuta rasteiro, na minha direção. Quando a bola vem chegando abro as pernas como que para deixá-la passar, mas no instante em que ela passa eu uso a face interna de um dos pés para dar um levíssimo toque, o bastante para 1) desviar a trajetória da bola, e 2) garantir que o nome que vai para a súmula é o meu.

Não multiplicarei exemplos. Hora de teorizar um pouco. Grande parte dos planos-para-o-futuro que a gente faz está no mesmo limbo espiritual destes meus gols, tão caprichados. Antes de chegar na primeira ponte a gente está ensaiando como atravessar a décima. Estou com uma porção de golaços prontinhos, e ninguém me chama para entrar em campo! Gols roteirizados, sextilhas decoradas, piadas prontas, trocadilhos relâmpago... de nada adianta atulhar a memória com essas coisas se não mergulharmos no “Agora Bora Ver” do jogo, da cantoria, da vida real enfim. Algo me sussurra que meus golzinhos platônicos nunca serão registrados por nenhum garoto do placar, assim como nunca proferirei diante de uma platéia meu discurso de aceitação do Prêmio Nobel, que modéstia à parte ficou uma beleza.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

2542) O atoleiro do realismo (23.8.2011)



Numa discussão recente no websaite Metafilter, a propósito de um filme de Luís Buñuel, alguns leitores se queixavam de que o filme não fazia sentido, era inexplicável, etc. (O filme era Simão do Deserto, e querer encontrar a explicação dele é como querer fotografar o assunto da Terceira Sinfonia de Beethoven). Um leitor sob o pseudônimo de Kozad deu a seguinte contribuição ao debate: 

“Tenho uma teoria a respeito. Já ministrei aulas de apreciação cinematográfica e percebi que as pessoas têm dificuldade de apreciar uma narrativa que não esteja de acordo com um tipo determinado de ‘realismo’. Meus alunos gostavam de Psicose de Hitchcock, por exemplo, mas tiveram problemas com quase todos os outros filmes, por causa de uma certa teatralidade na interpretação dos atores e um certo tipo de convenções emocionais usadas por Hitchcock. Eles não eram capazes de fazer vista grossa a isso. Estavam demasiado habituados a uma maneira de ver filmes que implica em buscar deficiências e erros no modo como a ‘realidade’ é apresentada, e assim nunca se permitem fruir descontraidamente o filme do jeito que ele é. A mesma coisa ocorre quando as pessoas veem filmes feitos antes de 1970”.

O cinema de hoje, com sua obsessiva evolução técnica, produziu uma espécie de hiperrealismo epidérmico, que condiciona o espectador a um tipo de estímulo puramente sensorial. Os filmes de ação de hoje têm som Dolby Stereo, imagem digital de fenomenal nitidez, cortes bruscos, decupagem sequencial em que tudo se encaixa a-b-c-d-e... 

Esta linguagem é uma conquista importantíssima, mas assumiu uma tal hegemonia que deixa o espectador atrofiado em outros aspectos. O espectador é perfeitamente capacitado para assistir e assimilar um filme dos X-Men ou do Homem Aranha, mas não consegue assistir um filme de... Não, amigos, não direi um filme de Luís Buñuel ou de Jean-Luc Godard, não chego a tanto. O espectador do Homem Aranha não consegue assistir um filme de Charles Chaplin.

A experiência cinematográfica ideal deveria ser a exposição do espectador a diferentes estilos, ao modo de narrar de diferentes épocas, diferentes países. Modos de enquadrar, de contar histórias, modos de compor o ritmo narrativo, que em cada cultura evolui de modo ligeiramente diverso. 

Deveríamos cultivar a “filmo-diversidade”, a proliferação saudável de mil maneiras de usar a câmara, o roteiro, a mesa de montagem (ou ilha de edição). 

Se eu vivesse num país onde só passassem filmes de Godard, sairia pela rua em passeata com um cartaz “Queremos Homem Aranha!”. Porque precisamos de olhares diferentes para compor o nosso olhar. 

Os estudantes citados acima não querem a experiência cinematográfica em si, querem comparar o que estão vendo com o que lhes ensinaram que é o jeito certo de fazer. Que coisa terrível fizemos com a arte cinematográfica! Estamos criando um mundo cujo público consiste em alguns bilhões de críticos acadêmicos.








domingo, 21 de agosto de 2011

2641) Contracapa de mouse (21.8.2011)



& escravas brancas negociadas no câmbio negro & aquilo ali é um caso claro de motor possante e parafusos frouxos & tem casos em que a culpa é toda da vítima, o criminoso foi mero instrumento & um urso polar e um pinguim se olhando com desconfiança e pasmo & ainda vamos ver esportistas radicais surfando em lava de vulcão & ah se a cabeça da gente tivesse um antivírus de bloquear besteira & ainda não sei por que é que homem usa guarda-chuva e mulher usa guarda-sol & lutar contra o Destino é confirmá-lo; não lutar, também & passar do canibalismo à escravocracia é também uma maneira de evoluir & belo como o encontro fortuito entre um paraquedas e uma guitarra elétrica em cima de uma ilha de edição & a Contracultura faz com a Cultura o que o uísque faz com o gelo & só durmo com colete salvavidas, nunca se sabe & aos quinze anos fui abduzido por um grupo de alienígenas iguaizinhas a Barbarella & as mulheres supersticiosas não dispensam um pinguim na geladeira, um gnomo no jardim e um marido no sofá & a Terra não passa de uma moeda que levou um piparote de Deus e virou esfera & o destino de todo ser complexo é evoluir até tornar-se um ponto geométrico & um livro impresso é túmulo e sobrevida, é lápide de si mesmo e trampolim de megapossibilidades & a primeira máscara foi a careta, a segunda o sorriso & um rio tentando empurrar o oceano para trás & uma tribo habitando uma piscina vazia & as represas nada mais são do que um cofre de guardar correntezas & quanto mais o princípio é principesco, mais grotesco é o final & troquei minha bolsa de estudos por uma mochila & já bebi tanto café na vida que depois de morrer ainda vou passar uns dez anos acordado & uma lâmpada com uma vela acesa dentro & as folhinhas do calendário estão passando rápidas como fotogramas & quando o Governo começa a usar isqueiro para acender fósforo tem alguma coisa errada & ele é violão mas pensa que é guitarra & idéias e emoções são analógicas, linguagem é digital & um mágico tão seguro de si que usava como assistente uma sexagenária gorda & a água se evapora, se condensa, chove, se evapora, lavando a si mesma & só existe o demais porque existe o limite & é possível saber algo sobre um texto eliminando todas as palavras e deixando apenas a pontuação & canção para ninar robôs & ando me sentindo tão fantasmagórico que ontem caí através da cama & se eu fosse contar tudo ia ser um livro mais grosso do que alto & o eclipse do relâmpago & é típico das civilizações que sua autodestruição coincida com seu melhor momento & um anão subindo nos ombros de um gigante e contando a ele o que há por trás do muro & seria tão bom se já vendessem os chapéus com um cérebro dentro & escrever é construir uma ponte enquanto se avança por ela & dentro da gente existe algo que é uma mistura de monstro, motor e bomba-relógio & seja bailarina e eu serei tablado &

sábado, 20 de agosto de 2011

2640) Repassando, compartilhando (20.8.2011)



O escritor Damon Knight tem um romance de ficção científica chamado A for Anything (em português seria “Q de Qualquer coisa”) onde ele explora uma situação curiosa. Num mundo futuro, inventa-se uma máquina capaz de reproduzir com perfeição qualquer coisa, tipo uma super-xerox universal. Se botar ali uma moeda e acionar a máquina, ela produz uma moeda igual. Se colocar um passarinho vivo, ela produz um clone exato do passarinho, também vivo. Esse invento causa mudanças imprevisíveis na civilização humana.

Algo parecido foi essa varinha de condão que a cultura digital nos presenteou: a possibilidade de com um único clique tirarmos uma cópia, ou 200 cópias, ou 2 mil cópias de um mesmo documento. Com que volúpia as pessoas recebem uma foto colorida, enternecedora, de uma galinha maternalmente amamentando seus pintinhos, e a reenviam para todos os 1.500 contatos de sua caixa de mensagens! Com que simplicidade de esforço elas criam mensagens em grupo entre 180 pessoas, de modo que cada comentário é clicado no “Responder a Todos” e segue instantaneamente para os 179 incautos, mesmo que o comentário seja apenas “kkkkkkkk”, ou “A-do-rei!” ou “Concordo!”! Como é rápido receber os clichês lenda-urbana de sempre (adolescente desaparecida, corrente de Santa Inocência, recado de Bill Gates, proposta de negociata bancária da viúva de um ex-ministro de Uganda, etc.) e seguir o conselho (já internalizado psiquicamente) de “repassar para todos”!

O Facebook adicionou, ao verbo “repassar”, o seu equivalente “Compartilhar”. Para poupar esforço, já que o processo não é tão simples quanto o da caixa de email, introduziu há pouco o sistema de digitação automática, em que a gente nem precisa escrever o nome completo de cada pessoa. Basta colocar “Bra...” e, presto! O Facebook completa o nome do futuro e indefeso recebedor. Isto desencadeou uma febre compartilhante. As pessoas se inebriam com a própria generosidade e compartilham tudo: videoclip de Lady Gaga, entrevista de deputado do DEM de Roraima, foto sensual de participante de A Fazenda, gol de placa em jogo da série C da Venezuela, lista dos “Cem Melhores Tiros de Revólver do Faroeste Italiano”... Gente que não compartilharia um misto quente com um sudanês faminto compartilha pixels e megabytes com a prodigalidade de recém-usuário do novo toque de Midas.

A Digitolândia é o parque de diversões dos indolentes, daqueles que, como dizia Drummond, “querem mudar o mundo, desde que para isto não seja preciso mover uma palha”. Vão um passo além, claro, e movem a palhazinha imponderável do cursor, que não é sequer uma varinha mágica, é mais leve ainda, um asterisco mágico que flutua no universo retangular do monitor, portulano do Novo Mundo onde tudo é de graça e sem esforço. Estou reclamando? De jeito nenhum. No instante em que em digitar o ponto final deste artigo, presto! Repassei, compartilhei com um bilhão de incautos do presente e do futuro.


sexta-feira, 19 de agosto de 2011

2639) Drummond: “Jardim da Praça da Liberdade” (19.8.2011)



Os poetas parnasianos viviam uma versão chapa-branca do Brasil, envoltos num ufanismo cuja melhor tradução é o famoso verso de Olavo Bilac, primor de patriotismo histérico: “Pátria, latejo em ti!”. A gente manga dessas coisas (eu, pelo menos) mas precisa reconhecer que são fases necessárias para a formação de um conceito de nação. A primeira coisa que o colonizador incute no juízo do colonizado é que aquilo ali não presta, é inferior, que não vale a pena defender aquelas matas atlânticas ou jazidas de diamantes; mas quando a maré política se inverte é preciso reverter essa lavagem cerebral. A literatura e os demais discursos verbais nos fornecem argumentos e justificativas para que a gente sinta tais e tais coisas. Hoje em dia, por exemplo, a defesa do meio ambiente é uma questão de tal importância que mesmo os argumentos idiotas em seu favor são males menores, pois ajudam muita gente a dar atenção ao problema. No tempo dos parnasianos, a República foi na verdade a verdadeira Independência, um abrir-os-olhos para a existência de um Brasil administrado pelos brasileiros. O ufanismo pomposo e grandiloquente de Bilac era melhor do que o complexo de viralata dos 400 anos anteriores.

O modernismo introduziu a ironia na poesia brasileira, a capacidade de ver-se com olho crítico mas sem complexo de inferioridade. Até então, nossos poetas viviam num internato católico; de 1922 em diante, foram soltos na rua e ganharam emprego de motoboys, com uma única instrução: “Te vira”. No livro Alguma Poesia, Drummond contempla o “Jardim da Praça da Liberdade”, aquela paisagem ao mesmo tempo parnasiana (pela superfície bucólica que tenta aparentar) e modernista, por ser um artificialismo que denuncia a si próprio (“Bonito demais. Sem humanidade. Literário demais.”). Ele ironiza o paisagismo ingênuo (“rosas geométricas”, “jardim tão pouco brasileiro”, “a terra não sofreu para dar essas flores”) e expõe o contraste entre a sugestão de natureza presente em qualquer jardim e o círculo de ferro do conservadorismo em perpétua sentinela (“jardineiros oficiais”, a “moldura das Secretarias compenetradas”, a “prefeitura vigilante”).

Para quem não conhece, a Praça da Liberdade fica diante do palácio do governo mineiro, cercada pelos prédios austeros da secretarias. Agora, tudo está sendo transferido para o novo Centro Administrativo, a meio caminho do aeroporto de Confins. Para mim, que morei e estudei ali ao lado, era o lugar de passeio de fim de tarde entre gramados e palmeiras, num oásis de natureza artificial cercado por um cinturão do Poder político (e, na época, da ditadura militar). As ironias de Drummond para com essa praça (que ele certamente amava tanto quanto eu) exprimem esse novo patriotismo cheio de auto-crítica. Um patriotismo século 20, mesmo que já no século 21 grande parte dos brasileiros ainda esteja encalhada no complexo de viralata ou no orgasmo perpétuo do ufanismo nacionalista.


2638) Os ricos são diferentes (18.8.2011)



A pesquisa foi publicada na revista Current Directions in Psychological Science, por Dacher Keltner e colaboradores. O objetivo era examinar pessoas de diferentes classes sociais na tomada de decisões baseadas em empatia, compaixão, altruísmo, solidariedade social, etc. A conclusão foi que os ricos têm uma experiência de vida que os induz a ter menos empatia, menos altruísmo, e a serem em geral mais preocupados consigo mesmos. Já os pobres mostram um comportamento mais impregnado de união social e compaixão. Eles interpretam melhor os sentimentos alheios, têm mais empatia e estão mais dispostos a dar algo a quem precisa.

Nos vídeos gravados pelos pesquisadores, as pessoas mais ricas geralmente mantêm uma atitude distraída, checando o tempo inteiro seus celulares, rabiscando num papel, evitando contato visual com o interlocutor, enquanto que as pessoas de menor poder aquisitivo encaram as outras de frente e fazem sinais mais frequentes com a cabeça indicando que estão entendendo o que lhes é dito.

Os pesquisadores consideram que a atual guerra política nos EUA, envolvendo impostos, teto de endividamento e as práticas atuais do mercado de capitais têm sua origem na “ideologia do interesse próprio” das classes mais ricas. Os ricos acham que o sucesso econômico, político e pessoal se deve a comportamentos individuais e a uma boa ética de trabalho. Pelo fato de não reconhecerem a importância de conexões familiares, dinheiro e melhor educação, eles tendem a desdenhar a ajuda do governo em seu sucesso e opõem-se vigorosamente a financiar esse governo com impostos. Para Mark Wilhelm, economista da Indiana University, a maioria das pessoas é capaz de responder com rapidez quanto pagou de impostos no ano passado, mas poucos seriam capazes de calcular o quanto se beneficiaram do governo – dirigindo em estradas federais, tomando remédios produzidos através de pesquisas financiadas pelo governo, ou usando invenções de pessoas que foram educadas em escolas públicas.

Os ricos tendem ao isolamento, consideram que todo seu sucesso se deve a si próprios, e que não faz sentido dividi-lo com mais alguém. Os ricos não são propriamente egoístas, são voluntariamente desatentos, e desse modo incapazes de fazer a ligação cognitiva entre necessidades e recursos. Enquanto isto, a distância entre os mais ricos e o resto da população continua a aumentar nos EUA, onde 80% da riqueza do país é controlada por cerca de 20% de sua população.

Os ricos são cruéis? Talvez nem tanto. Como qualquer um de nós que se julga em boa situação, eles acham que merecem tudo que têm, e talvez merecessem até um pouco mais. Seu índice de normalidade é o seu próprio nível de vida. Muitos deles até se dispõem a dar 1 milhão a uma instituição de caridade, desde que essa decisão seja sua, mas chiam e esperneiam se o governo os obrigar a doar mil dólares para gente por quem eles não se interessam nem um pouco.


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

2637) A história de Zé Francisco (17.8.2011)



Eu devia era checar com os descendentes de Zé Francisco os detalhes desta história, que para mim já se despregou da mera biografia e ascendeu ao reino das lendas. Vai ela aqui, e quem conheceu o “santo” que reconheça (ou não) o “milagre”. 

Zé Francisco morava em Alagoas, nos anos 1940, e quando começou a Grande Guerra houve um alvoroço total. O mundo pegava fogo; havia até mesmo europeus ou brasileiros filhos de europeus que embarcavam de volta para a Europa, para defender seus respectivos países. 

O Brasil, pelas manobras de Vargas, demorava a entrar no conflito. Acabou entrando; e Zé Francisco saiu de sua cidadezinha de Alagoas para vestir a farda e lutar no “front”.

Fusão para poucos anos depois. Campo de batalha numa floresta italiana. Uma tropa alemã está sitiada numa casa, no meio de um vale, e os brasileiros a cobrem de rajadas de metralhadora. Zé Francisco é um deles. Depois de um fogo mais cerrado, eles começam a perceber que a maioria dos alemães morreu, mas no andar de cima há pelo menos um sobrevivente, bem municiado, que continua a defender o posto. Zé Francisco pede aos amigos que o cubram, disparando contra as janelas de cima, enquanto ele sai das árvores e corre até a casa, para entrar pela porta e dar cabo do alemão.

Botam o plano em prática. A fuzilaria é intensa enquanto Zé Francisco corre, protegendo-se, até a porta da frente. 

O tiroteio para. Ele empurra a porta e entra. Vê corpos de alemães caídos por todo lado; e uma escada que sobe até um alçapão que dá acesso ao andar de cima. Zé Francisco se encaminha para ela, pé ante pé, vai subindo. 

Chegando lá no alto ele ergue o fuzil e, com a ponta da baioneta, começa a levantar a tampa do alçapão. Quando a levanta por completo, o que vê? Vê a boca enorme de uma metralhadora apontando para seu rosto, e, por trás dela, o rosto do alemão que empunha a metralhadora, pronto para disparar. E quando os seus olhos se cruzam, o alemão exclama, assustado: “Zé Francisco! O que é que você tá fazendo aqui, homem de Deus?!!!”.

Sei que a história não é exatamente assim, velhos, mas este é o segredo da literatura: usar a imaginação quando a memória nos falta, e usar a memória quando nos convém. Todos os grandes episódios da História são contados dessa maneira, desde a Grécia clássica e a Roma Antiga até a Revolução Francesa e o Descobrimento do Brasil. 

O alemão entrincheirado naquela casa morava em Alagoas e era um dos que tinham voltado à Pátria para vestir sua farda e defender seus ideais. Pelo que me lembro (daquela frase em diante a história perde nitidez e interesse, pela parte que me toca), o alemão foi preso e Zé Francisco foi avalista de sua sobrevivência durante as semanas seguintes, de modo que tudo acabou bem para todos os envolvidos. 

Mas a mera possibilidade de um encontro como esse nos faz exclamar como Riobaldo Tatarana: “Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande.”






terça-feira, 16 de agosto de 2011

2636) Baseado em (16.8.2011)




Este artigo, vou logo avisando, se refere à adaptação de romances para o cinema, TV, teatro, e outras formas de encenação. A expressão “baseado em” costuma ser mal compreendida por muita gente. Ao pé da letra, o livro original seria apenas uma base, um fundamento para a criação de uma obra diferente. Na prática, porém, esta expressão, que me parece correta, acaba se confundindo com outra maneira de dizer, esta sim muito perigosa. É quando falamos: “O livro tal vai ser filmado”. Dizer isto sugere, implicitamente, que o livro vai ser filmado tal qual é, que todos os detalhes que existem no livro vão ser transpostos para o filme, tintim por tintim, e naquela mesma ordem. E não é o caso.

Dizem que no começo do século 20 os diretores distribuíam dezenas de exemplares de um romance entre os atores e os técnicos, e no primeiro dia de filmagem começavam a filmar o que acontecia no Capítulo 1. Logo logo esse sistema de trabalho mostrou que não funcionava. Uma história que se passava em diferentes cenários forçava a equipe a se deslocar todo dia de um lugar para o outro; um cenário que só aparecia no começo e no fim da história tinha que receber manutenção durante semanas ou meses. Logo as pessoas concordaram que era mais simples filmar num cenário tudo que acontecia ali, depois passar para outro, e no final recortar todas essas cenas e colocá-las na ordem certa. Isso é o beabá da produção de cinema.

Um dos raros filmes contemporâneos feito à maneira antiga foi, pelo que me contaram, Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho, cuja equipe se enfurnou durante meses numa fazenda, todo mundo com um exemplar do livro, e todos os dias atores e técnicos liam, discutiam, ensaiavam, filmavam. Não houve roteiro; não foi necessário. E mesmo assim a interferência autoral do diretor é imensa, e não sei se se pode dizer que o filme foi “transposto” para a tela, embora o próprio escritor, Raduan Nassar, tenha elogiado o resultado final.

Bem, se o autor elogiou provavelmente é por ter a compreensão de que um filme é outra obra que se inspira na mesma idéia que o autor tinha do livro antes de começar a escrevê-lo ou durante o ato da escrita. Quando a gente se senta para escrever pode ou não ter uma idéia geral da história; mas para simplificar digamos que existe na mente do escritor uma idéia platônica, perfeita, ideal, do livro a ser escrito; e que o texto que ele publica é uma tentativa de dizer aquilo em palavras. O cineasta, ao ler o livro, julga perceber, através daquelas páginas impressas, qual era o livro platônico, o livro perfeito, que o escritor tinha em mente; e é esse livro (não o livro efetivamente escrito e publicado) que ele procura traduzir em imagens. Daí a liberdade que ele tem ao adaptar, porque não precisa se prender à letra e sim ao espírito da obra. Ele não filma o que foi escrito, filma aquilo que ele imagina que o escritor tinha em mente quando estava escrevendo.


domingo, 14 de agosto de 2011

2635) A Vida e os Tempos de Ribs Callahan (14.8.2011)




Cap. 1 – De como “Ribs” Callahan passou em 1º. lugar nos testes para Piloto Hiperespacial e tornou-se o primeiro terrestre desta confraria, onde só existiam alienígenas de variadas raças.

Cap. 2 – De como o Conselho dos Yonkings, uma raça invejosa dos humanos, reuniu-se em segredo e decidiu sabotar da melhor maneira possível a carreira de Callahan.

Cap. 3 – De como o primeiro voo Hiper Espacial de Callahan terminou com um espantoso acidente que vitimou toda a tripulação, menos ele, que, desconfiando da sabotagem, deu um jeito de embarcar como piloto um primo parecidíssimo com ele, mas que não sabia pilotar.

Cap. 4 – Das variadas reações que a revelação desse atentado produziu dentro do Conselho dos Yonkings, e que resultaram na queda de algumas cabeças e meia dúzia de tentáculos.

Cap. 5 – De como o Comitê Galáctico interveio e transferiu Callahan (para evitar um conflito armado com a Federação Terrestre) para o sistema de Pyark-14, com dezoito sóis e centenas de planetas e de asteróides, na esperança de que nessa gincana suicida Callahan “fosse pro espaço”.

Cap. 6 – De como Callahan celebrizou-se pela sua imprudência, navegando à velocidade da luz naquela corrida de obstáculos e em poucos anos promoveu uma reviravolta econômica no sistema de Pyark, que até então estava maduro para tornar-se o mais poderoso da Galáxia e não sabia.

Cap. 7 – De como o Conselho dos Pyark nomeou Callahan General-em-Chefe para a invasão do Sistema de Vega, e Callahan mais uma vez mandou um primo, porque estava de viagem para Thyugoin, um planeta tropical, famoso pela vegetação abundante e pelas belas nativas.

Cap. 8 – De como a invasão, sob o comando do primo, foi um sucesso militar em todos os aspectos, tornando os Pyark a nova força a ser respeitada na Galáxia, enquanto o planeta Thyugoin era vítima de um atentado misterioso que matou Callahan e todos os hóspedes do “resort” que o abrigava.

Cap. 9 – De como o primo de Callahan aproveitou este fato e promoveu uma investigação rigorosa e defenestração em massa no Comitê Galáctico, provando que eram mais uma vez os Yonkings que estavam por trás do complô (para vingar-se de Callahan, claro), fazendo com que os Yonkings fossem defenestrados do Conselho, perdendo as 43 cadeiras que ocupavam, as quais foram preenchidas pelos Pyark, que com isto saltaram de 11 para 54 e adquiriram maioria dos votos.

Cap. 10 – De como o primo de Callahan aproveitou para fazer uma aliança com os terrestres (aliados históricos dos Pyark, para quem tinham transferido a tecnologia secreta do voo mais rápido que a luz), e findo este processo, arrancou a barba falsa e revelou ser o próprio “Ribs” Callahan, que armara aquilo tudo prevendo a manobra dos Yonkings, e, entregando à Liga Terrestre a presidência do Comitê Galáctico, encerrou sua carreira de piloto e refugiou-se num “resort” tropical, de vegetação abundante e cheio de belas nativas, nos arredores de Canoa Quebrada.

sábado, 13 de agosto de 2011

2634) No asilo de lunáticos (13.8.2011)



“Ora, claro, é sempre um prazer receber a imprensa. Quem é que não gosta de ver seu trabalho divulgado junto ao grande público, a fim de que este se aperceba do nosso esforço diário, das dificuldades que enfrentamos, das vitórias científicas que conseguimos? Por aqui, faz favor... Este corredor vai dar no pátio, se bem que a esta hora deve estar quase vazio. É a nossa hora da sesta. Ah, veja bem, aquele rapaz gordo sentado à sombra do cajueiro. Vê como está coberto de tatuagens? Quando chegou aqui tinha a pele lisa como a minha ou a sua. É um mistério o modo como essas tatuagens aparecem. Ele passa horas a explicá-las nos menores detalhes. Surgem tatuagens cabalísticas num dia, meteorológicas no outro... Ontem, exibiu um zodíaco babilônico; hoje, vi-o mostrando e comentando as capas dos discos que pretende gravar, à razão de um em cada século; amanhã, sabe-se lá o que surgirá em sua epiderme.

“Veja as duas senhoras idosas que se aproximam, a mais magra amparado a mais idosa. São Dona Vanilda e Dona Charlotte. Dona Vanilda é uma dona de casa inculta, deprimida, nascida e criada no sertão; Dona Charlotte é filha de franceses ricos e se criou no Rio de Janeiro. O mais interessante é que essas pessoas não existem. São personalidades intercambiáveis; as duas mulheres ficaram amigas, e quando uma delas amanhece como Charlotte a outra automaticamente se torna Vanilda, e vice-versa. Suas identidades reais (a que está nos documentos) elas já esqueceram totalmente. Nós também.

“Nenhum desses casos, é claro, é tão estranho quanto o de Catavento, aquele negrinho magro que está nos galhos daquela árvore. Ele fala uma língua desconhecida desde que chegou aqui, vítima de uma crise catatônica. Serve de intérprete para a maioria dos outros pacientes, porque não importa o que lhe peçamos para dizer ele diz na tal língua e as pessoas obedecem, atendem, mesmo quando não nos ouviram dizer a Catavento o que queremos que elas façam! Sim, já fizemos horas e mais horas de gravações, trouxemos linguistas... Nada. A língua é uma algaravia, palavras que nunca se repetem; mas os doidos a compreendem.

“Doidos é um modo de dizer, não é mesmo? Aquele rapaz de bigode, por exemplo, tem consciência de que é doido. Produz delírios o tempo inteiro, basta dirigir-lhe a palavra. De mais a mais, é bem comportado, higiênico, obedece aos enfermeiros... Mas todo dia de manhã conta de si mesmo uma história diferente, e não parece ter memória do que lhe aconteceu no passado remoto ou recente. É como se todo dia ele fosse obrigado a inventar uma doidice nova, inventar para si mesmo um motivo, uma explicação para o fato de estar internado aqui. É um bom rapaz, mas muito tenso, muito nervoso, e na verdade tenho muita pena dele, porque deve ser muito desgastante, para um doido, não conseguir lembrar qual era sua doidice na véspera e ter que inventar todo dia uma doidice nova para poder justificar sua existência no mundo.”

2633) Cinema e biografias (12.8.2011)



(Adrien Brody como Salvador Dali)

Quando vemos filmes que contam a história de pessoas famosas, com as quais temos certa familiaridade, avaliamos essas encenações biográficas de acordo com as nossas expectativas de como elas deveriam ser tratadas num filme. Dizemos que o filme tal não é fiel à imagem de Dylan Thomas, ou que o ator que interpretou Rodin não está à altura dele. Dizemos que o filme sobre Villa Lobos esteve mais próximo da realidade do que o filme sobre Beethoven; e assim por diante. Isto não ocorre apenas com o cinema, claro; na pintura também. Há muito tempo foi questionada a imagem de Tiradentes que os quadros históricos nos transmitiram: barbudo como Cristo, vestindo um roupão branco, etc. Dizem os historiadores que os prisioneiros naquela época tinham que cortar a barba e o cabelo, para evitar piolhos. A imagem de Tiradentes que herdamos é uma farsa para torná-lo parecido com Jesus Cristo. (Quanto à imagem de Cristo, isso aí já é outra história).

No recente Meia Noite em Paris, Woody Allen faz seu protagonista contracenar com uma porção de artistas e escritores, desde Picasso e Luís Buñuel até T. S. Eliot e Gertrude Stein. Vi interessantes discussões de críticos achando qualidades e defeitos em cada uma dessas recriações, sempre com base na imagem pública que guardamos daquelas pessoas. Personagens como estes podem ser discutidos, porque estão suficientemente próximos de nossa memória cultural, mesmo que não da memória pessoal de cada um. Creio que nunca vi nenhum documentário sobre Hemingway, mas existem muitos, e certamente ainda há pessoas vivas que o conheceram. Imagens do cinema e da TV podem nos dar pelo menos uma vaga idéia de como era ele. Mas o que de dizer de filmes sobre personagens de 200 ou 300 anos atrás? Que verossimilhança podemos exigir?

Comentando o filme, Woody Allen falou: “Daqui a cem anos, alguém vai fazer um filme sobre a Nova York da minha época, e digamos que eu não serei um dos personagens mais importantes, mas alguém periférico. Alguém vai entrar no Elaine’s e lá estarei eu, interpretado por algum canastrão, porque todos me veem como um canastrão, e ele estará usando óculos de grau, e será um sujeito recluso, ceio de pessimismo existencial, que sente calafrios diante da mera possibilidade de ir passear no campo – alguma imagem execravelmente exagerada do que as pessoas imaginam que eu sou. E isso será o meu inferno”.

Difícil saber se os homenageados de Midnight in Paris se divertiriam ou ficariam irritados diante do modo como foram tratados. Allen tem consciência de que cada um de nós é uma pessoa de verdade coberta de caricaturas de si própria que são resultado dos nossos contatos com diferentes pessoas. Personagens públicos sofrem a cristalização de um imagem que é reforçada constantemente até se tornar óbvia e obrigatória. A esta altura, é difícil convencer alguém de que Kafka não era deprimido, Karl Marx não era iracundo, D. João VI não era um bobalhão.

2632) O jeito certo de falar errado (11.8.2011)




Minha irmã Clotilde já teve que enfrentar muitas polêmicas porque usava às vezes o termo nordestino “apois”, em vez de “pois”. Pode ser vício de linguagem, mas também é resíduo afetivo de uma infância falada num idioma bárbaro que fascinaria Camões e o Padre Vieira, longe de escandalizá-los. Mas como os dois lusitanos estão “em pó desfeitos e do pó alçados”, as pessoas se escandalizavam. Algumas diziam: “Mas você, uma doutora, uma intelectual, falando assim...”, enquanto outros certamente murmuravam à socapa: “Só pode ser mesmo da Paraíba...”

O “apois” é uma forma aparentemente errada, mas que só se realiza plenamente como linguagem expressiva se usada assim, ostentando o resíduo bárbaro (no caso o prefixo “A”). Talvez seja uma exigência rítmica do discurso, pois essas duas sílabas lhe dão mais base, mais equilíbrio. Tanto o “pois” como o “apois” são uma maneira tácita de mostrar que a frase do interlocutor foi registrada, mas não necessariamente que a gente concorda com ela. “—Eu ouvi dizer que você vai viajar na 5ª. feira. – Apois. Vou, sim, mas na verdade é na sexta.”

Essa expressão (que poderia ser vagamente substituída por “OK”, “certo”, “pois é”, algum tipo de concordância sem compromisso) equivale sintaticamente ao famoso “intão” dos paulistanos, tão incrustado no discurso dos nossos amigos de lá que vai acabar virando um sinal de pontuação como o travessão e as aspas. “—Precisamos conversar sobre aquele projeto! – Intão. Aparece amanhã lá no meu escritório.” De certo modo parece um expletivo, aquelas partículas que ajudam a enfatizar o discurso mas que a rigor poderia ser extirpadas sem perda do sentido. Mais ou menos como o “pois é”, que só é necessário quando vem sozinho, mas quando precede uma frase poderia ficar de fora sem que ninguém percebesse sua ausência.

Falei que o “apois” cumpre a mesma função sintática do “intão”, mas cumpre também a mesma função melódica. Toda frase tem melodia, não é mesmo? Uma pergunta como “Não é mesmo?” só se impõe como pergunta, na voz falada, por causa da inflexão melódica que lhe damos, e que na linguagem escrita indicamos pelo sinal “?”. Uma pergunta tem sempre a mesma melodia básica, daí ser difícil (experimentem!) fazer uma letra de música cheia de perguntas. Por quê? Porque a melodiazinha implícita da frase perguntante costuma se chocar com a melodia que tentamos imprimir à canção.

Um outro aspecto. Repararam que grafei “intão”, e não “então”? Apois. Porque é assim que os paulistanos (nem todos, claro) falam, assim como os paraibanos (nem todos, claro) falam “apois”. A Norma Culta ensina como grafar em linguagem denotativa essas duas palavras. Mas se quisermos usar linguagem conotativa, expressiva, afetiva, literária, dizer “intão” e dizer “apois” traz uma carga de contexto social que veste de verdade humana a nudez da palavra “em estado de dicionário”. Intão?

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

2631) Quando acabar o maluco sou eu (10.8.2011)



Sou maluco? Tudo bem, então sou maluco. 

Maluco porque quando tinha 12 anos improvisei uma bicicleta com duas rodas traseiras porque eu caía muito e na vizinhança mangavam de mim. Concluí que precisava de mais estabilidade, correto? Não ficou cem por cento, eu não tinha ideia de como é difícil cortar e soldar metal, usei material de segunda mão, continuei caindo e mangaram mais ainda. Dizem que sou maluco.

Na verdade já diziam antes, inclusive os professores. A professora de Português me botou de castigo porque eu disse que só quem liga para a diferença entre preposição e conjunção é professor de Português. Me perguntou o que eu queria ser na vida. Eu disse: “Tudo, menos professor de Português”. 

Não que o professor de Matemática escapasse. Passei um fim de semana debruçado na mesa, aos 14 anos, com uma descoberta que fiz. Vocês já repararam que a diferença entre os quadrados dos números naturais sucessivos são os números ímpares sucessivos? Vejam os quadrados: 1, 4, 9, 16, 25, 36, 49... Confere? Veja as diferenças entre eles: 3, 5, 7, 9, 11, 13... Confere? 

Mostrei àquela anta de óculos, ele leu minhas folhas de anotações e rasgou, dizendo: “Zero. Você é maluco. Eu não mandei fazer isto, mandei praticar raiz quadrada”.

Não vou fazer uma lista completa, não sou maluco. Namoradas? Eu perdoo porque sou um cara romântico e de bom gosto, só me apaixono por mulher linda. 

Perdoei Norminha quando ela me deixou dizendo que estava cansada de tentar técnicas telepáticas, estava começando a pensar coisas que não eram da cabeça dela, e nunca mais falou comigo. (Não precisa. Há onze anos leio o pensamento dela e me divirto de montão.) 

Perdoei Selma quando me trocou por Vélber da Recebedoria, porque eu desenhei pra ela um vestido (nem existia velcro naquele tempo!) que bastava um puxão na direção certa pra sair todinho de uma vez. Disse que eu era maluco e que se tinha jeito pra figurinista é porque eu devia ser gay. 

Perdoei Dulce que não queria dormir na cama que eu construí (dizia: “isso nunca foi cama nem aqui nem na China”), Laura porque tudo bem, aquele remédio que matou o bassê dela era uma dosagem experimental (reduzi desde então). E a todas eu dizia: “Sou maluco é por você, vem cá, deixa de ser linda”.

E assim caminha a humanidade. Agora estou com 37 anos e continuam me chamando de maluco. 

Porque pendurei o celular (que eu vivia esquecendo) num cordão ao pescoço. 

Porque tatuei no lado de dentro do braço que sou alérgico a AAS. 

Porque descobri um jeito de pintar a óleo e manipular as cores no microondas. 

Porque peguei um software combinatório, entrei no banco de dados e criei um sistema de justapor temas e estilos para criar histórias. 

Porque estou escrevendo quatro autobiografias diferentes e verdadeiras, uma página por dia. Ora que diabo, a vida tem mais soluções do que problemas, a prova disso é que vocês vivem se queixando e eu sou o único homem verdadeiramente feliz.







2630) A palavra Zumbi (9.8.2011)



Cresci numa época em que filmes de zumbi eram raros, não estavam na moda como hoje. É interessante que não havia “livro de zumbi”, pelo menos que eu me lembre; era um gênero exclusivamente cinematográfico, e a imagem que me ficou mais bem gravada foi a de um filme B que vi nos anos 1960, Invasores Invisíveis, em que alienígenas davam um jeito de entrar no corpo de pessoas mortas e sair vagando por aí, com manchas escuras no rosto e os braços estendidos horizontalmente.

Logo depois surgiram as notícias sobre um show de MPB fazendo sucesso no Rio de Janeiro, chamado Arena conta Zumbi. Viciado em ver as coisas sob o prisma do “trash movie”, durante muito tempo imaginei que o título era “Arena contra Zumbi”. Não era. Contava a história de Zumbi dos Palmares, o líder negro dos escravos foragidos, cujo quilombo virou símbolo da resistência negra, e na época virou também símbolo da resistência de intelectuais, artistas e estudantes contra o golpe militar de 1964.

É claro que a coincidência de nomes me chamou a atenção, mas a essa altura eu já sabia que os “zumbis” eram produzidos artificialmente através do vudu, uma espécie de magia negra do Haiti, que enfeitiçava as pessoas e as transformava em mortos-vivos. Uma consulta ao Online Etimology Dictionary (www.etymonline.com) diz que a palavra é registrada desde 1871, com origem na África ocidental (do kikongo “zumbi”, fetiche, e do quimbundo “nzambi”, deus); originalmente era o nome de um deus-serpente e depois virou sinônimo de “cadáver reanimado” no culto vudu. Também pode vir da palavra do idioma crioulo da Louisiana que significa “fantasma, espectro”, vinda do espanhol “sombra”. O sentido “pessoa bronca, estúpida, apática” é registrado desde 1936.

O mais interessante disso tudo é que a mesma palavra significa “morto vivo” em dois contextos e duas culturas totalmente diversas. Na cultura branca, significa alguém que morreu e deveria permanecer morto, mas que foi artificialmente obrigado a se comportar como se estivesse vivo, embora esteja em decomposição. Na cultura negra (no sentido específico de Zumbi dos Palmares), significa alguém que foi declarado morto mas que para seus seguidores permanece vivo e atuante, um morto que se recusa a morrer. Note-se que após a morte de Zumbi sua cabeça foi fincada numa estaca e exposta em praça pública (tal como ocorreu com Tiradentes) para “atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal”, segundo carta do governador de Pernambuco ao Rei.

O morto sempre vivo, o morto que se recusa a morrer, é um mito de cultos sagrados e profanos. Jesus Cristo é também um morto que emerge vivo da tumba. Heróis dos mais diversos feitios (Padre Cícero, Lampião, Elvis Presley) são tidos como ainda vivos pelos seus seguidores. O zumbi do cinema de terror é um Zumbi sem Palmares, sem propósito, sem projeto, sem ideal. É o que somos quando queremos simplesmente viver, sem nada mais além disso.


2629) High tech, low life (7.8.2011)



Esta é uma das palavras-de-ordem do movimento cyberpunk que surgiu nos anos 1980 na ficção científica dos EUA. Ao pé da letra, significa algo como “alta tecnologia nas mãos de gente de baixa classe social”, sendo que nessa “baixa classe social” está implícita uma dose considerável de marginalidade, transgressão, violação das leis. 

Essa frase é simétrica à própria palavra “cyberpunk”, e lhe serve como uma espécie de glosa ou diluição explicativa. 

“Cyber” significa tudo que se refere à cibernética, à informática, à eletrônica, à tecnologia digital; e “punk” se refere a tudo que exprime uma atitude agressiva, e violenta contra isso que os jovens chamam O Sistema (até que amadurecem e percebem que o Sistema é maior do que eles imaginavam, e os inclui, mas isso é outra história).

O movimento punk no rock foi isso: guitarras elétricas nas mãos de quem não sabia tocar, microfone na mão de quem não sabia cantar. 

O punk rock foi a reação ao sucesso autocomplacente do rock e pop internacional, com seus artistas multimilionários desfilando em limusines e comprando um castelo para fazer uma orgia de fim de semana. 

Os punks de origem, rapazes e moças das periferias operárias, cuspiam com desprezo em cima disso. Toda a vida cuspiram, desde a Idade Média. Mas na década de 1970 começaram a cuspir com alta tecnologia em punho.

“High tech, low life” parece uma promessa utópica e otimista redigida a quatro mãos por Charles Fourier e Arthur C. Clarke. 

É como se vislumbrássemos no horizonte um futuro em que todo mundo fosse rico por igual, e políticos e operários, industriais e camponeses, ministros de Estado e tecelãs, não apenas ganhassem exatamente o mesmo, mas tivessem em mãos, para seu trabalho e seu lazer, “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”, como diz Caetano Veloso. 

Será que isso resultaria num Éden ultracientífico, em que os pobres disporiam das mesmas tecnologias que os ricos, mas, sutilmente, os privilégios se manteriam intactos? De certa forma, estamos indo nessa direção – hoje em dia a madame liga pro celular da diarista e avisa: “Clementina, não precisa vir amanhã, vamos viajar”.

O que ocorre no mundo real, entretanto, é que no momento em que a alta tecnologia começa a se espalhar pela baixa classe social adquire o irritante hábito de servir aos interesses dos usuários, e não dos criadores! (Perguntem aos executivos da Polygram, Ariola, EMI-Odeon, Columbia Records, etc.) 

A baixa classe social tem seus próprios planos sobre como usar as tecnologias. A literatura cyberpunk é o primeiro passo de uma literatura futura (acordem-me daqui a 50 anos, por favor!) em que a produção cultural das elites se diluirá (sem desaparecer) no tsunami quantitativo da produção cultural dos “low life”, para o melhor ou para o pior. 

Da baixa classe surgirá a Grande Arte. Não se assustem – nós mesmos já somos isto. Não somos de maneira alguma o que a Renascença e o Iluminismo sonharam.





sexta-feira, 5 de agosto de 2011

2628) Amy Winehouse (6.8.2011)



Janis Joplin preferia viver dez anos a mil km por hora do que mil anos a 10 km. A forma da frase muda, mas o espírito é esse, e tem sido glosado e parafraseado ao longo dos anos. Como todo adolescente daquela época tive uma paixonitezinha por ela, que era lindinha, rosada, charmosa, tinha um sorrisozinho de desmontar qualquer um, e cantava como quem tem três metros de altura e mil anos de idade. Somente quando li a biografia póstuma “Enterrada Viva” me toquei do quanto ela sofria, o quanto se achava gorda e feia, o quanto era autodestrutiva. E a frase dela que me ficou foi: “Ser cantora é passar duas horas fazendo sexo com 30 mil pessoas e depois ir dormir sozinha”.

Amy Winehouse foi a mais recente baixa nesse exército de mulheres que trazem um buraco negro na alma, sugando toda sua energia. A única maneira de não serem destruídas por ele é através da produção de um “surplus” de energia através da voz. Durante os minutos em que Amy Winehouse canta, autodestruição e autocriação se equilibram. Fora do palco, sua vida é uma tragédia de más escolhas, de fragilidade patética e de forças sem direção. Cantava bem, num inglês engrolado do qual continuo sem entender uma só palavra, a não ser aquele mantra de quem se afoga, “no, no, no”. Andei lendo alguns depoimentos sobre ela (jornalistas, fãs, etc.) e vi gente dizendo: “Faltou um cara que lhe desse segurança emocional...” ou algo assim.

O imenso charme das mulheres autodestrutivas! Elas mobilizam o Bom Samaritano que existe em todos nós, e também o Super Herói (“ninguém conseguiu, mas eu conseguirei!”). Vi dias atrás o filme “Destinos Ligados” de Rodrigo Garcia, onde aparecem duas autodestrutivas exemplares, interpretadas por Annette Bening (travada, neurótica, deprimida) e Naomi Watts (ressentida, promíscua, sem afetividade). Dois homens (fortes, estáveis, maduros), se apaixonam por elas. Por que?

São mulheres cujo charme é viverem a um fio de cabelo do suicídio, sabendo disso, e não ligando. O ser humano normal sabe que não aguentaria 24 horas nesse regime, e ela aguenta 365 dias por ano. O homem a vê caminhando na corda bamba, sem rede de proteção, com a tranquilidade dos bêbados. Nesse momento ninguém a supera em encanto e transcendência; ele seria capaz de dar a vida para que ela não caísse. Quando consegue fazer com que ela desça, tome um banho e engula um Engov, ela começa a ficar banal, previsível, igual a qualquer outra. O encanto das autodestrutivas é inseparável da autodestruição. É o seu momento carruagem, e salvá-la é transformá-la numa abóbora que usa avental de plástico e bobes no cabelo.

Claro que a mulher precisa ter algum charme para compensar tanto trabalho. Pode ser beleza física, pode ser carisma, pode ser caráter, pode ser uma voz de quem canta bem, pode ser mil coisas; mas por dentro de todo seu sofrimento suicida tem que haver alguma coisa de precioso que, aos olhos do homem que a observa à distância, valha a pena salvar.

2627) O relógio do gladiador (5.8.2011)



O relógio no pulso do gladiador romano, ou do cowboy, ou do cortesão do século 18, é apenas um exemplo pitoresco, entre muitos, do que chamamos “erro de continuidade”. Na verdade, os erros de continuidade se referem a outros erros, bem específicos, que têm a ver com a continuidade das informações apresentadas na tela. Os personagens que participam de uma cena precisam manter a mesma aparência, mesmo que os planos que compõem a cena tenham sido filmados, como muitas vezes acontece, com dias ou semanas de intervalo. Quando ocorre um erro desses, vemos dois personagens conversando numa mesa de bar e a cada vez que a câmara muda de ângulo os copos estão em posição diferente, mais cheios, mais vazios, ou o cabelo que estava penteado está revolto, ou vice-versa, ou o ator que estava de camisa azul-escura está de camisa preta.

O relógio no braço no gladiador, portanto, não é uma falha na continuidade de exibição de um detalhe legítimo, mas a presença indesejada de um elemento que não pertence à cena e entrou ali por descuido. Perguntaram a Akira Kurosawa por que motivo as cenas da batalha num dos seus filmes eram mostradas à distância com a câmara parada, sem aqueles movimentos panorâmicos que os diretores tanto apreciam. Ele disse que a única locação disponível para a batalha tinha de um lado os arranha-céus de uma cidade próxima e do outro um poço de petróleo: a câmara foi colocada na única posição possível entre essas duas coisas que não poderiam aparecer, já que o filme se passava na Idade Média.

Muito bem. Corte rápido para 2011, estou dando um entrevista à TV, na sala da minha casa. O cara vem com um microfonezinho de lapela, enfia por entre os botões da minha camisa, prende na gola com fita isolante preta. A camisa é clara. Ele pergunta se eu não tenho uma camisa preta. Pergunto por que. Ele diz que com a camisa preta seria melhor, pois o microfone não apareceria. Pergunto: Por que motivo o microfone não pode aparecer? Todo mundo não sabe que usamos microfones numa gravação? O entrevistador vem em socorro dele, e diz que o microfone não pode aparecer, porque fica feio, fica estranho, e “microfone aparecendo é como o relógio no braço do gladiador”.

Isso é uma amostra de como certos preceitos técnicos surgem cobertos de razão mas, ao passarem adiante de geração em geração, sem uma explicação devida, acabam se transformando num dogma que todo mundo aceita sem fazer a pergunta chave: “Por que motivo temos que fazer sempre assim?”. As pessoas têm um trabalho danado para esconder desnecessariamente um microfone de lapela que só é visível se o espectador estiver procurando por ele. Há um microfone que não pode aparecer: é aquele “girafa” que fica pendendo do alto sobre os atores, em filme de ficção, e que às vezes é pêgo pela câmara em pleno monólogo de Hamlet. Filme de ficção não pode mostrar o microfone, mas o pessoal parte disso para proibir que ele apareça numa mera entrevista.