quinta-feira, 14 de julho de 2011
2608) Perguntas ao futuro (14.7.2011)
O ser humano é provinciano por natureza. Sua província natal é a humanidade, é o oceano de idéias, emoções, sentimentos e valores que, bem ou mal, criam o ambiente mental em que ele consegue se sentir à vontade. Somos humanos, e tudo que é humano não apenas não nos é estranho, como é a única coisa que somos capazes de compreender sem que alguém precise bater em nossa cabeça com um rolo de amassar pastel. O que nos distingue uns dos outros é apenas o maior ou menor perímetro com que definimos esta humanidade, daí o fato de chamarmos de “provincianos” os moradores de cidade pequena que não conseguem entender os costumes da cidade grande, embora não digamos o mesmo dos habitantes de cidade grande que não entendem os costumes de cidade pequena. Por que? Porque esses conceitos são criados na cidade grande, para benefício e louvação dos seus.
Sempre me interessei por histórias de viagem no tempo, em que um sujeito de nossa época, mediante um prodígio qualquer, vai parar no futuro. Em narrativas assim, metade da minha curiosidade vai para esse mundo futuro imaginado, e metade vai para o protagonista: quem é ele, o que pensa, como vai se comportar, como vai reagir. É sintomático que, no momento em que o sujeito percebe que chegou ao futuro faça perguntas como “quem é o atual Presidente da República”, partindo do princípio, é claro, de que o sistema presidencialista vai ser mais duradouro do que as Pirâmides.
Um conto de Angélica Gorodischer, no livro La cámara oscura (2009), fala de um personagem que entra em contato com figuras do passado, e comenta: “François de la Rochefoucauld me levava a passear pelo bosque e me perguntava sobre o século 20 coisas com as quais eu não estava muito familiarizado. Não lhe interessavam nem os aviões nem os mísseis nem a televisão, mas queria saber como eram recebidos os escritores nos salões e se o terceiro filho de uma família nobre era militar ou podia escolher outra atividade; e eu não sabia nada sobre isso”. Sempre julgamos os outros mundos a partir dos critérios e das expectativas do nosso. Daí que um sintoma típico da ficção científica ingênua seja esse constante projeção do passado sobre o futuro. Alguém pega uma máquina do tempo, chega ao Brasil do ano 3500 e começa a perguntar pelas favelas, pelos escândalos parlamentares, pelos “reality shows” e pela Copa do Mundo de futebol.
Há mais de cem anos a FC descreve mundos alienígenas em que seres fisicamente monstruosos e incompreensíveis vivem sob regimes republicanos ou mantêm casamentos monogâmicos. Nossos extraterrestres são sempre feitos à nossa imagem e semelhança. Na maior parte da FC norte-americana os alienígenas têm uma cultura tão parecida com a dos americanos que os etíopes ou curdos pareceriam seres de outra galáxia. São poucos os escritores de FC capazes de descrever um mundo futuro ou extraterrestre capaz de nos produzir uma verdadeira sensação de estranheza, de “alienidade”.
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3 comentários:
Muito bacana esse post, como aliás é a maioria dos posts neste blog que é um dos meus favoritos. Embora seja fã de ficção científica, sempre pensei como é chato o fato de, na mioria das histórias, os problemas dos extraterrestres serem quase os mesmos dos terrestres. =/ E já estou indo em busca desse livro, La Cámara Oscura, mas acho que não tem em português, né? Um abraço e obrigada pelo blog. =]
Clara, esse livro provavelmente não foi traduzido aqui, como aliás o resto da obra da autora. Sçao contos, alguns fantásticos, outros não, todos muito bem escritos. E há um filme baseado na história principal, com esse mesmo título.
Concordo em gênero, número e grau, pois a maioria das histórias de ficção científica cria seres muitos parecidos conosco e que sempre falam inglês. Um dos poucos que fogem disso é o saudoso escritor Arthur C. Clarke. Quem leu os livros da série "Rama" vai se lembrar das ocotoaranhas imaginadas por ele, tão diferentes de nós e com uma forma de comunicação que utiizava cores no lugar de palavras.
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