quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

2427) Os monstros do colonialismo (15.12.2010)



(Marlon Brando interpretou no cinema tanto Moreau quanto Kurtz)

Ter lido num intervalo de alguns meses estes dois livros me mostrou o quanto são semelhantes em forma e substância, se bem que na maioria dos ensaios que consultei sobre cada um não vejo menção ao outro. Refiro-me a A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells (1896) e O Coração das Trevas de Joseph Conrad (1899). O livro de Wells é uma novela de ficção científica com ressonâncias alegóricas; o de Conrad é uma novela realista com ressonâncias góticas (no sentido do triunfo de forças malignas e incompreensíveis sobre as racionalizações da mente civilizada).

O livro de Wells é o relato de Prendick, um náufrago que vai parar numa ilha remota no Pacífico onde Moreau, expulso da comunidade científica pelas suas experiências cruéis, dedica-se a vivisseccionar animais para transformá-los em arremedos de seres humanos, produzindo assim um Homem Cão, um Homem Macaco, um Homem Leopardo, além de híbridos semi-humanos como a Hiena Suína e o Cavalo Rinoceronte. Todos eles têm uma consciência rudimentar equivalente à de um ser humano bronco, todos falam, todos andam eretos e são proibidos de comer carne. Para mantê-los sob controle, Moreau inventa uma Lei que eles repetem sem cessar, terminando o rosário de proibições com o refrão: “Então não somos Homens?”. Qualquer violação da Lei será punida com o retorno à Casa da Dor, o laboratório onde foram criados (as cirurgias que os transformam em semi-homens são feitas sem anestesia).

O livro de Conrad fala da viagem de Marlow, o narrador, em busca de Kurtz, administrador de um remoto entreposto comercial na África. Kurtz é elogiado por todos que o conhecem como sendo um homem notável, artista, intelectual, idealista, dedicado a civilizar os africanos. Quanto mais se aprofunda na floresta, ao longo de meses, Marlow vai se espantando com a desumanização absurda que os negros sofrem pela invasão branca; e quando encontra Kurtz percebe que este se transformou num contrabandista de marfim, assassino, e que participa com os negros de rituais abomináveis (que o livro não explica quais são, mas que horrorizam o narrador).

Moreau é morto pelos homens-animais; Kurtz morre de doença na viagem de volta, murmurando: “O horror, o horror”. Heart of Darkness é uma versão realista da alegoria mostrada em “A Ilha do Dr. Moreau”. O choque entre civilizados e primitivos, ao invés de civilizar estes últimos (ao invés de transformar “animais” em “homens”) gera um atrito espantosamente cruel que acaba por animalizar a todos. É da natureza do colonialismo usar um discurso missionário e civilizatório (“estamos aqui para transformá-los em criaturas superiores, iguais a nós”) e uma prática que acaba por desumanizar os próprios civilizados. No livro de Wells, Prendick foge da ilha e retorna a Londres, mas fica vendo os homens-animais em cada rosto com que cruza nas avenidas. São dois livros para se ler e se lembrar em conjunto, quase como se um fosse o espelho reverso do outro.

Um comentário:

Daniel Braga disse...

Excelente artigo. Te indico a leitura do conto A sua imagem, de Teresa P. Mira de Echeverría, que está gratuito no site da Monomito Editorial. Ele também fala de colonialismo e acho que vais gostar.