sábado, 10 de julho de 2010

2253) A forma e o espírito (28.5.2010)




(www.imagesavant.com)

Me perguntam se é possível, para quem não é nordestino, escrever literatura de cordel, e o que era necessário para isso. Respondi que eram necessárias apenas duas coisas: domínio da forma e compreensão do espírito. Dominar a forma do cordel não é apenas conhecer as estrofes básicas e saber recitar sua descrição: “Uma sextilha tem seis linhas, cada uma com 7 sílabas, e a segunda, a quarta e a sexta rimam entre si”. É saber derramar o texto nessa fôrma como quem derrama água num copo, sem sobrar nem faltar uma gota. O que é compreender o espírito? É ter lido uma variedade e quantidade suficiente para ter o discurso do cordel como uma segunda natureza, sentir-se livre o bastante para criar o que lhe der na telha e saber que tudo que criar não irá produzir um curto-circuito de estranheza.

O que é necessário (digamos) para escrever um bom romance policial? A mesma coisa: domínio da forma e compreensão do espírito. Dominar a forma não é imitar o estilo de A,. B ou C, até porque o gênero tem um alfabeto inteiro de idiomas. É saber que existe uma mecânica básica (ou um conjunto de mecânicas) que postas em ação dão a um romance o direito de pertencer ao gênero. E o que é compreender seu espírito? É entender que esse gênero não cresceu por acaso nem por injunções do mercado, mas devido a uma troca permanente de estímulos entre os contadores dessas histórias e as pessoas que procuram nelas, sempre, as mesmas coisas e coisas diferentes.

O que é preciso para fazer um samba? Domínio da forma e compreensão do espírito. A forma envolve um feixe de raízes melódicas e rítmicas essenciais; podem ser primitivas, mas se o compositor é sofisticado demais, dodecafônico ou estocástico demais, não conseguirá dominá-las, pois o que domina já é tão rarefeito que as exclui. E compreender o espírito do samba é ter consciência das inúmeras camadas superpostas de samba que, a esta altura, constituem a história do gênero. Quem é sambista sabe que existem canções extremamente inteligentes e talentosas que são chamadas de sambas mas que não o são, e sambas medíocres que conseguem sê-lo.

Filme de ficção científica? Mesma coisa. Fazer um filme de FC não é contar uma história que envolva espaçonaves, alienígenas e efeitos especiais. O que basta é apenas isto: domínio da forma e compreensão do espírito. O filme de FC tem um repertório de situações, de pontos de partida dramatúrgicos e de tensões internas que vai muito além dos clichês que ele próprio acabou produzindo. São poucos os gêneros em que chega a tal ponto a interdependência entre domínio da forma e compreensão do espírito. Porque é preciso ter lido muita FC (e visto muitos filmes de FC) mas saber seu objeto não é a espaçonave mas a Viagem, não é o alienígena mas o Estranho, não é o robô mas o Duplo, não é o computador mas a Máquina, não é o monstro mas o Inconsciente, não é o mutante mas a ruptura de conceitos e a transcendência rumo a uma realidade mais complexa.





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