sexta-feira, 26 de março de 2010

1827) Borges-Johnson, Bioy-Boswell (16.1.2009)



Virou clichê afirmar que a Vida de Samuel Johnson, de Thomas Boswell (1791) é uma das melhores biografias já escritas. O Dr. Johnson (1709-1784) foi um homem de letras muito atuante na Inglaterra de seu tempo, e o compilador do Dictionary of English Language (1755), uma obra monumental, de rara inteligência e erudição. Bastaria este dicionário e a biografia escrita por Boswell para tornar Johnson um nome obrigatório nas letras britânicas. Boswell o conheceu aos 22 anos de idade, quando Johnson já tinha 54, mas anotou minuciosamente todos os seus encontros ao longo dos 21 anos em que conviveram, até a morte do doutor.

Não há como não ver nessa amizade, e na obra resultante, o modelo para um dos livros mais impressionantes e menos comentados dos últimos anos: Borges, extrato dos diários que Adolfo Bioy Casares manteve de sua convivência com Jorge Luís Borges entre 1947 e 1989. O padrão é muito semelhante: o escritor mais jovem mantém anotações precisas de tudo que foi conversado entre os dois durante uma vida inteira lado a lado. Já comentei aqui (“Borges de Bioy Casares”,17.10.2007) este prodigioso livro de 1.600 páginas (em um ano e três meses cheguei à página 875; tenho medo que um dia acabe).

Na página 646, Borges comenta com Bioy: “Diz a Enciclopédia Britânica que a biografia de Johnson não é o livro mais lido do mundo porque é um todo contínuo, não dividido em capítulos. Quando entramos de fato nele não conseguimos mais sair, mas entrar ali é difícil. Será que Johnson sabia que Boswell estava escrevendo uma biografia sua? Creio que sim. Isto explicaria a inatividade de Johnson em seus últimos anos. Não escrevia, não apenas por indolência, mas pela certeza de que nada do que dizia iria se perder. Teria ele curiosidade em ver o que Boswell estava produzindo, de saber como o livro o retratava? Talvez não. Em todo caso, não acho que Johnson tivesse corrigido nada. Dar-se o trabalho de corrigir uma obra assim não se parece muito a Johnson (por sua preguiça, pela generosidade de sua alma, por indiferença)”.

Enquanto Borges faz estes comentários, Bioy se pergunta o mesmo: “Eu me perguntava, enquanto isto, se ele suspeitava da existência deste livro; se teria curiosidade de lê-lo; se o corrigiria; se a circunstância de que ultimamente escrevia tão pouco não se devia não só à deficiência da visão e à preguiça, mas também ao conhecimento deste livro”. Saber-se biografado pelo seu melhor amigo, principal parceiro e confidente de todas as horas parece de bom tamanho para qualquer escritor. Só não sei é se Borges perceberia o quanto o retrato (aparentemente sincero e veraz) de Bioy o humaniza, mostrando-o com defeitos, limitações e preconceitos que sua obra não revela. E principalmente se se daria conta do quanto o livro é um retrato devastador, acachapante, da intelectualidade argentina daquela época. Biografado e biógrafo não deixam pedra sobre pedra.

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