segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

1625) A aparente facilidade (28.5.2008)




Uma das pedras-de-toque para a gente reconhecer a Grande Arte no meio de inúmeras coisas mais ou menos boazinhas é que a Grande Arte, paradoxalmente, dá a impressão de ser uma coisa muito mais simples, que brota quase espontaneamente. 

Existe uma aparente facilidade no modo como o artista faz o que faz. Grande parte da beleza do resultado nasce da fluidez com que as coisas acontecem, quando se trata de uma das artes que ocorrem no Tempo, como o cinema ou a música. Tudo ocorre sem solavancos e sem rodeios, como se aquela fosse a única maneira possível das coisas terem acontecido, mesmo quando nos reservam surpresa e reviravoltas. Tudo parece inevitável, necessário, conseqüente. 

 No caso das artes estáticas, como a pintura e a escultura, temos a impressão de que aquela forma já brotou pronta e só fez crescer até ocupar por inteiro o espaço que lhe era destinado.

Dizem que Michelangelo teria dito, quando elogiaram alguma das suas esculturas: “É muito fácil. Eu pego um cubo de mármore, enxergo a figura lá dentro, e vou descascando o mármore até deixar somente a figura”. 

Um jornalista perguntou uma vez ao grande escritor mineiro Luiz Vilela, famoso pelos seus diálogos de espantosa naturalidade, se ele costumava deixar um gravador ligado embaixo da mesa do bar para captar a conversa das pessoas. Ele riu e disse: “Que nada, escrevo de memória. Mas parecer espontâneo dá um trabalho danado”.

Tenho essa sensação também quando estou vendo aqueles programas de futebol com “Os 10 Gols da Semana” ou “Os Gols Mais Bonitos do Ano”. Sei que, para algumas pessoas, considerar futebol uma Arte é uma heresia perigosa, mas só dizem isso porque não viram certas coisas que eu já vi. 

Ronaldo Fenômeno arrancando do meio de campo com a bola dominada, esquivando-se dos pontapés, evitando um carrinho, desvencilhando-se do zagueiro que tenta pendurar-se às suas costas, girando sobre si mesmo, dando uma quebra lateral de trajetória que o leva em diagonal para dentro da área, um penúltimo corte para a esquerda, um último corte para a direita, o chute preciso no derradeiro canto que o goleiro não alcança. Descrito assim, parece uma façanha. Visto, a gente vê como é simples.

A facilidade nasce de que? Do domínio da técnica (que só se adquire com muito estudo, muito treino, muita obsessão) e do impulso criativo, do excesso de energia propulsora que nasce muitas vezes da alegria e do prazer de estar criando. 

Vivo repisando nesta tecla, para alertar aqueles que acham que para criar Grande Arte basta emoção. Sem técnica não há Arte, nunca houve. E ao mesmo tempo não há nada mais distante da Grande Arte do que a pura técnica, a técnica que se exibe cansativamente a si própria, a técnica que soterra o espectador com uma lista de dificuldades penosamente superadas. 

Na Grande Arte, só vemos a aparente facilidade, como se cada artista tivesse um par de asas nos pés.





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