Dois dias depois do show dos Rolling Stones no Rio, vi pela TV a transmissão do show do U-2 em São Paulo. São duas gerações sucessivas do rock, se considerarmos que quando o U-2 lançou seu primeiro álbum em 1980 os Stones já deviam estar na terceira hemodiálise. Musicalmente, vê-se a que estrato geológico cada banda pertence. Os Stones fazem um rock básico, quadrado, mesmo assimilando aqui-acolá influências do soul, da música latina, do gospel. No fundo, contudo, é a formatação harmônica, melódica e rítmica do blues rural, da música country eletrificada, do rhythm-and-blues urbano.
O U-2 é outra coisa. Para descobrir a presença dos elementos acima nas canções do U-2 é preciso raspar sua superfície sonora com o mesmo cuidado com que um arqueólogo raspa a areia de uma ossada. O U-2 ouviu os Stones ao mesmo tempo em que ouvia o heavy-metal britânico, as enormes massas sonoras do rock progressivo, e depois a inesgotável paleta de timbres e texturas da música eletrônica em todas as suas subdivisões. Embora a banda também seja conhecida por suas posições políticas, por seu livre trânsito (ou pelo menos de Bono) entre chefes de Estado, e por uma permanente ligação com suas origens irlandesas, o que mais a caracteriza não é o conteúdo, e sim a sonoridade.
Num show do U-2 todo mundo enxerga Bono, mas, assim como num show dos Stones todo mundo só vê Mick Jagger e eu não tiro os olhos de Keith Richards, quando o U-2 está na tela o centro geométrico de tudo aquilo, pra mim, está na guitarra de The Edge. Não vi muitos guitarristas capazes de tirar tão sons diferentes ao longo de uma mesma canção, sem interferir com o cantor, e sem parecer estar se matando de trabalhar. The Edge faz arpejos (se se pode arpejar com palheta) minuciosos, percussões abafadas nos bordões, “lapadas” violentas quando é preciso, mas seu ataque mais característico são as rápidas e fortes palhetadas, subindo e descendo, que, com a super-amplificação e as distorções, criam uma massa de harmônicos que brotam de toda a extensão do espectro sonoro. A voz de Bono surge cercada pelo que parece uma orquestra de guitarras em círculo à sua volta.
Essa sonoridade é a assinatura da banda, fazendo-nos fechar os olhos e pensar que não são quatro caras, são o dobro. Bono é um bom letrista, embora nada excepcional, tem uma voz extensa, presença carismática; o baixo e a bateria são de uma solidez rara. No show de São Paulo vimos uma tela de 12 mil pixels pixels gigantescos (vide “Os 360 graus do rock”, 20.11.2005) que revela a fascinação high-tech da banda. No show, Bono usa um lenço com a palavra “CoeXisT” (reproduzida em português no telão), onde o C é o crescente muçulmano, o X a estrela-de-Davi judaica e o T a cruz cristã. A mensagem de coexistência pacífica pode servir também para a coexistência musical entre o punk rock das origens da banda, a sofisticação do progressivo, o peso do heavy-metal, o infinito menu da eletrônica.
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