Nos meus tempos de cineclubista, quando nos deparávamos com um filme muito difícil, ou muito bom, dizíamos: “Eita, isso aí é filme pra se ver na moviola!” A moviola é a mesa de montagem para os filmes feitos em celulóide. Uma mesa cheia de engrenagens de tração para acelerar, retardar, ver de trás pra frente, imobilizar uma imagem, etc. Ver um filme na moviola significava ter o poder de examinar o filme em seus menores detalhes, do jeito que nos conviesse. Uma vez passei uma tarde inteira analisando uma cena curta de O Encouraçado Potemkin, em que um marinheiro, revoltado com a má qualidade da comida do navio, ergue um prato no ar e o espatifa contra a quina da mesa. Um primor de montagem, onze planos diferentes em menos de dez segundos. Mas só se percebe na moviola.
Na moviola, deixamos de ser o espectador passivo, que só faz receber e assimilar. Assumimos uma posição ativa, de quem encosta o filme na parede, vasculha seus bolsos, checa suas credenciais, pergunta suas intenções. Podemos entrar na intimidade do filme, reconstituir o pensamento criativo do diretor. Quando fazemos isto com um filme que julgávamos conhecer bem é que percebemos o quanto a primeira visão de um filme é superficial, quanta coisa deixamos de perceber, quanta coisa nos enganou. (Tenho uma admiração enorme pela falecida Pauline Kael, que escrevia críticas notáveis sem jamais rever o filme)
Quando inventaram o videocassete e agora o DVD, ficou muito mais fácil ver um filme assim. O DVD é nossa moviolazinha doméstica, que nos permite brincar com as imagens, analisar uma cena, dissecar um trecho de edição, acelerar ou retardar o fluxo para sentir melhor o ritmo daquele trecho. Mal termino de ver um filme já estou com vontade de voltar para o começo para vê-lo “como se deve”.
E aí percebo que a moviola, o VHS e o DVD não fazem mais do que proporcionar a nós, os escravos do tempo cinematográfico, daquele fluxo de imagens que nunca pára e que nos arrasta consigo, a experiência de imensa liberdade e de imenso poder que tem o leitor de um livro. Este, sim, determina ele próprio o tempo de duração e os vetores de direção de sua experiência estética. Vai para onde quer, pára quando lhe dá na telha, salta para adiante, volta, compara com algo que tinha visto atrás, relê a mesma passagem cinco ou dez vezes até extrair-lhe todo o sumo. O leitor é e sempre foi o dono do livro, capaz de desmontar o texto escrito com seus dedos e seus olhos. Só muito recentemente o espectador de cinema (do cinema doméstico, no caso, diante do DVD-player) passou a conhecer esse grau de autoridade, de autonomia, de poder. Como é bom poder ver e rever um filme de Welles ou de Truffaut com a mesma liberdade de movimentos com que lemos um poema longo de Jorge de Lima, um conto de Cortázar, um romance de Ellery Queen. Vê-lo em profundidade, conhecê-lo em raio-X, até a medula de seu esqueleto.
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