(Cox & Forkum)
Salman Rushdie, autor dos Versículos Satânicos, sabia do que estava falando quando afirmou: “Sem a liberdade de ofender alguém, não existe liberdade de expressão”. Ele se referia, gato-escaldadamente, à perseguição que sofreu durante anos por parte de muçulmanos radicais, por ter feito um personagem de seu livro dizer e pensar coisas desrespeitosas sobre o Profeta Maomé. O assunto volta aos jornais hoje devido aos protestos dos muçulmanos contra as charges publicadas em jornais da Dinamarca, onde Maomé é tratado com zombaria.
Não sei se o caro leitor já se deparou com um paradoxo científico que volta e meia aparece nas revistas. Coloca-se a seguinte questão: “Se criarmos um líquido que seja o Solvente Perfeito, ou seja, capaz de dissolver qualquer substância, e o colocarmos num Recipiente Invulnerável, que não pode ser afetado nem pelo ácido mais forte... o que acontece?” O problema não admite resposta, porque tem uma contradição interna. Estamos postulando a existência de duas coisas (Solvente Perfeito, Recipiente Invulnerável) que, por definição, se excluem mutuamente. No Universo em que exista uma delas, a outra, obviamente, não pode existir.
Algo de parecido se dá com dois valores abstratos de nossa sociedade: a Liberdade de Expressão e o Respeito Mútuo. O aumento excessivo de um deles será sempre uma ameaça de diminuição do outro (toquei no assunto em “Liberdade versus Segurança”, 17.12.2005). Onde exista total liberdade de expressão, não pode existir respeito; e onde o Respeito seja absoluto, a liberdade de expressão cai a zero. A convivência democrática exige jogo-de-cintura para alcançar um ponto intermediário, onde ambos os índices sejam satisfatórios.
Sou jornalista mas nunca me iludi com essa conversa de “a liberdade de expressão é intocável”. Bobagem. Por um lado, o que escrevemos ou falamos depende da aprovação de quem nos emprega e nos paga, e trabalhar dentro destes limites não é vergonhoso para ninguém. Por outro lado, nossa liberdade de expressão, até como simples cidadãos, é limitada pelo nosso bom-senso, nossa educação, nossa civilidade. Creio que nenhum de nós diz tudo que pensa em qualquer circunstância. Freqüentemente somos obrigados a engolir sapos porque custa menos engolir um sapo do que provocar uma briga generalizada num restaurante. Ninguém é totalmente livre para dizer o que pensa.
O caso dos cartunistas dinamarqueses me parece um caso típico de provocação deliberada. Vi na TV que o jornal onde saíram os cartuns é ligado a um partido político que combate a emigração estrangeira para a Dinamarca. O crescimento da direita xenófoba na Europa (vide fatos recentes na Holanda, França, etc.) favorece esse tipo de provocação, que não tem a menor semelhança com o episódio de Salman Rushdie, a não ser pelo objeto da ofensa (Maomé). Os cartuns dinamarqueses são instrumento do preconceito étnico, não da liberdade de imprensa.
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