quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

1409) As estrebarias de Augias (19.9.2007)





(André Breton)

Num dos Manifestos do Surrealismo, André Breton aconselhava aos poetas que escrevessem, escrevessem muito, escrevessem qualquer coisa, qualquer besteira, não importa o quê; escrevessem tudo que lhes viesse à cabeça, sem prejulgar, sem analisar, sem escolher. Para quê? “Para limpar as estrebarias de Augias”, dizia ele.

Breton achava que nossa mente está bloqueada pelo excesso de educação, de disciplina, de leitura de textos alheios. Quando começamos a escrever (a criar, no sentido mais amplo) estamos apenas repetindo o que já vimos, reciclando clichês, copiando lugares-comuns. É preciso jogar todo este lixo fora, escrever abundantemente, copiosamente, irresponsavelmente, para que um dia, quem sabe, a nossa própria voz comece a se fazer ouvir.

A metáfora usada por Breton diz respeito a um dos Doze Trabalhos de Hércules. O herói foi encarregado de limpar as estrebarias do Rei Augias, que tinha o maior rebanho de gado da Grécia, e cujos estábulos jamais tinham sido limpos. Havia ali décadas e décadas de cocô de gado acumulado, cristalizado, transformado numa crosta com metros de espessura, mais dura do que basalto vulcânico. E Hércules tinha que limpar aquilo tudo em apenas um dia.

Conta-se que este trabalho foi executado mas cancelado pelo Rei Euristeu (o tal rei que obrigou Hércules aos doze trabalhos). Por que? Porque ao que parece os trabalhos visavam testar a força e a coragem do herói, e neste Hércules usou a inteligência.

Quando ele chegou lá nos estábulos e viu o tamanho do problema, teve uma idéia brilhante. Em vez de pegar uma marreta e sair quebrando, ele andou alguns quilômetros e construiu com pedras uma represa, desviando o curso de dois rios próximos. Somados, os rios produziram uma enxurrada irresistível que passou por dentro dos estábulos, corroendo, minando, desagregando, esfarelando, desconjuntando toda aquela placa tectônica de cocô-de-rocha. Depois de um dia inteiro de enxurrada, os estábulos estavam mais limpos do que os salões do palácio de Euristeu.

Breton era um freudiano de primeira hora e sabia do que estava falando. As estrebarias são um símbolo de todo o dejeto mental que se acumula no nosso inconsciente, seja através das leituras, seja através dos nossos complexos, traumas e outros processos. A cabeça está suja por dentro. Há um acúmulo gigantesco de problemas não-resolvidos, de excreções que não foram jogadas fora e estão bloqueando o fluxo das emoções e das idéias. É preciso desviar para ali um fluxo irresistível de energia mental criadora – que para Breton era a “escrita automática” – para diluir, esfarelar e expulsar todos aqueles resíduos cristalizados.

O que faltou a Breton dizer, talvez, foi:

“Escreva – mas não publique. Isso aí é seu dever-de-casa terapêutico. Ainda não é literatura. Literatura é só depois que a água estiver correndo limpa, e sua voz pessoal puder se fazer ouvir. Não publique agora. Tem tempo.”






Um comentário:

heliojesuino disse...

Vc aborda com frequencia e sempre com muita propriedade esse binômio composto por disciplina x espontaneidade, alquimia infernal pra todos que atuam na área.
É o eterno embate entre dioniso e apolo, extensivo a todas as artes, agonia e êxtase de tantos desajustados, acorrentados a essa equação maluca, cuja solução, sempre pessoal e intransferível, é o mais prazeroso dos tormentos.

Quem é do ramo sabe.

Este recente artigo do José Castelo, 'A vertigem da liberdade', cujo endereço vai abaixo, põe o dedo na ferida aberta e adverte aos incautos:

Não há cicatrização ...


http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/