O poeta Paulo Leminski criou o neologismo “inutensílio” para descrever coisas que não servem para nada, mas que, não obstante, têm algum significado para nós.
Um poema é um bom exemplo, mas os inutensílios mais interessantes são certos objetos materiais que parecem a um passo da utilidade mas por alguma razão estarão sempre aquém dela.
O rei dos inutensílios, para mim, é o francês Jacques Carelman, autor do livro Catálogo de Objetos Inviáveis, onde encontramos um martelo feito de vidro, um sacarrolhas em “Y” para extrair rolhas de duas garrafas ao mesmo tempo (não custa tentar!), um tabuleiro de xadrez esférico, um guarda-chuvas duplo em que o de cima evita que o de baixo se molhe, um aquário encimado por uma gaiola para guardar peixes-voadores...
A imaginação, o bom humor e a meticulosidade de Carelman podem ser conferidos em seu saite:
http://www.laboiteverte.fr/les-objets-introuvables-de-jacques-carelman/
Vi há pouco um objeto de feitura carelmânica que, se eu fosse rico, compraria para colocar na mesa de centro da minha sala: uma máquina-de-escrever modelo antigo, marca Underwood, totalmente tecida em feltro, tecla por tecla, martelinho por martelinho, em tamanho natural, tendo inclusive um rolo que pode ser girado e no qual pode ser inserida uma folha de papel.
Uma coisa linda – só falta escrever! A autora é uma tal de Blueblythe, do Canadá, e o inutensílio pode ser visto em: http://www.craftster.org/forum/index.php?topic=187574.msg1966645;topicseen#msg1966645.
A Underwood me lembrou de imediato um dos mais famosos objetos surrealistas, criado por Méret Oppenheim: uma xícara, pires e colherinha de chá, feitos inteiramente de pelo de animal.
Existe uma contradição tátil irresolvível entre a beleza do objeto e a impossibilidade (melhor dizendo: a impraticabilidade) de despejar líquido ali dentro.
Os objetos de Blueblythe e de Oppenheim se baseiam numa contradição simples entre o objeto original e a textura (o material) em que são reproduzidos, que os inviabiliza. No caso de Carelman, o próprio objeto é alterado para sugerir novas funções, cada qual mais inviável do que a outra.
Nada é mais Obra de Arte do que isso. Nem a Mona Lisa, nem a Nona Sinfonia, nem a Divina Comédia. Porque todas essas obras grandiosas nos dão a sensação de que podem definir o que é a Beleza, ou de nos transportar para o reino do Espírito, ou de nos revelar a Mente de Deus.
Elas nos iludem, porque a Arte não pode fazer isto. Nada pode. É apenas diante de uma xícara de pelo ou de uma máquina-de-escrever de feltro que sofremos o impacto brusco dessa contradição entre aparência e finalidade, que é a contradição de toda obra de arte e de toda criação humana.
Por isso essas obras são “objetos inquietantes”, como diziam os surrealistas. Vista num momento de angústia e de crise, uma máquina Underwood de feltro nos arrebata para o abismo da impossibilidade de sucesso da existência humana, e para a irrealidade do mundo e de nós mesmos.
2 comentários:
Ola Braulio, este texto é instigante e nos leva a belas e inquietantes questôes... Muito bom mestre! Parabéns pra vc e aquele abraço!
Fala Mauricio... Tou acompanhando seus posts no Facebook, tô ligado! Grande abraço!
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