sábado, 10 de outubro de 2009

1294) “A Encomenda do Bicho Medonho” (6.5.2007)




(uma das obras de Seu David)

Dois filmes paraibanos foram exibidos no recente festival Cine-PE: Cabaceiras de Ana Bárbara Ramos, e o vídeo A Encomenda do Bicho Medonho de André da Costa Pinto. Este último documenta o trabalho do artesão David Ferreira, de Barra de São Miguel. 

Seu David é um barbeiro de 94 anos que nas horas vagas, as quais são muitas (imagine o que é ser barbeiro em Barra de São Miguel) emprega seu tempo esculpindo toras de madeira, criando umas intrincadas engrenagens que só vendo para crer. O leitor já deve ter visto, em lojas de artesanato, aquelas correntes com elos de madeira, elos que não têm emendas, porque foram esculpidos daquele jeito, uns por dentro dos outros, “deixando tudo encangado”.

Diz Seu David que a partir de certa época na vida começou a ter sonhos com um bicho que lhe mandava esculpir essas coisas; ao acordar, passou a obedecer à voz ouvida em sonho. Uma de suas filhas contradiz o pai, num depoimento: “Se ele diz que a voz manda ele fazer umas coisas tão bonitas assim, então não é bicho nenhum, deve ser é um anjo!”. 

Seu David faz caixas ocas, esculpidas de fora para dentro, com correntes desse tipo em seu interior, um troço tão complicado de descrever que é mais simples vocês pegarem um ônibus e irem até Barra de São Miguel para dar uma olhada.

Não duvido de que o trabalho de Seu David seja conhecido por Ariano Suassuna, e tenha servido de inspiração para um episódio do folhetim (publicado entre 1976 e 1977) As Infâncias de Quaderna

Ali, no Folheto “O Ladrão de Madeira”, o protagonista Quaderna, então um menino de dez anos, encontra um de seus irmãos bastardos que vivem soltos na fazenda de seu tio. Matias rouba madeira para esculpir umas formas fantásticas, e confessa a Quaderna que vivia tendo pesadelos em que sonhava com criaturas terríveis. O cantador João Melchíades, que vivia na fazenda, o aconselhou a esculpir esses monstros na madeira, porque assim conseguiria de certa forma domesticá-los, livrar-se de sua ameaça. E Matias diz: 

“Fiz, e livrei-me de novo do pesadelo; mas daí em diante fiquei assim: depois de fazer cada figura, tinha uns dias de folga e de descanso no juízo, mas aí aparecia outra visagem e eu começava a ter outro sonho que só me largava quando eu obedecia à voz de Deus.”

Um cientista diria que o Bicho Medonho que nos faz essas encomendas é o nosso Inconsciente freudiano ou junguiano, aquele tumulto indizível de impulsos atávicos que durante o sonho nosso cérebro reprocessa em termos visuais e auditivos. 

Como dizia Jorge Luís Borges, não é que a gente sonhe com um tigre e sinta medo; a gente sente medo, e o sonho produz um tigre para servir de explicação. Mas de onde vem o medo? De onde vêm os pedidos do Bicho Medonho? Vem, como diria Augusto, “de incógnitas criptas misteriosas” que trazemos em nossa mente. E que alguns privilegiados como Seu David conseguem traduzir num tipo de Arte que não tem (e não precisa ter) explicação.






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