“Como?!” exclamará o leitor. “Será possível que exista um gênero musical como este?” Claro que existe, amigo. Qualquer letrista sabe que nele cabem sub-gêneros importantes da MPB, como a música de “dor de corno” ou “dor de cotovelo”, a música “de fossa”, e assim por diante.
Pode até não parecer, em tempos frívolos e álacres como os de hoje, regados a cerveja gratuita e publicidade efervescente; mas houve um tempo em que os grandes sucessos de nossa música eram nesse tom, cheio de olheiras empapuçadas, cheirando a cigarro, uísque, fim-de-noite.
O historiador Rui Castro defende a tese de que uma das boas coisas da Bossa Nova foi acabar com o reinado da música deprê que dominava a MPB nos anos 1950. Quem não se lembra de Maysa, com aqueles enormes olhos gateados, plenos de angústia existencialista, entoando: “Meu mundo caiu, e me fez ficar assim...” ou “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor”?
Era uma década maníaco-depressiva. De dia, as pessoas tostavam ao sol de Copacabana a epiderme disponibilizada pelo advento do biquíni; de noite, enchiam-se uísque e conhaque, e fumavam furiosamente até que o nascer do sol fechasse o piano-bar.
Sim, a canção de depressão é parte vital de nossa cultura.
Compositoras como Dolores Duran e Suely Costa cantaram como ninguém a terrível beleza e a terrível lucidez da solidão. Cantoras como Waleska e Márcia deram suas vozes ao primeiro sentimento que brota num ser humano: o de saber que é somente um.
Não se pense, contudo, que só as mulheres passam por isto. Tito Madi compôs o irretocável hino da fossa: “A noite está tão fria... chove lá fora!” que Milton Nascimento, um PhD em solidão, transformou numa tomografia computadorizada da própria alma no disco “Milagre dos Peixes ao Vivo”.
Adelino Moreira aconselhava, com a voz de Nelson Gonçalves: “Faça como eu, acostume-se à derrota; pois a vitória não pertence ao infeliz”; e o inimitável Silvinho já rasgou o peito por sobre a pátria, gritando: “Esta noite, eu queria que o mundo acabasse, e para o inferno o Senhor me mandasse, para pagar todos pecados meus!”
Outros compositores eram mais comedidos; basta pensar na enorme delicadeza e sobriedade de Edu Lobo & Torquato Neto: “Adeus, vou pra não voltar... E onde quer que eu vá, sei que vou sozinho...”
O gênero não é exclusivamente brasileiro; qualquer admirador do “blues” sabe que este não tem outro tema senão o abismo da depressão, principalmente para quem “wakes up in the morning” com a sensação quaderniana de que o mundo é um Cárcere e que nós todos somos Párias Degredados cumprindo uma obscura Sentença.
John Lennon produziu neste espírito a obra-prima “Yer Blues”: “I am lonely, wanna die, if I ain’t dead already, girl you know the reason why...” A canção de depressão é aquele ponto em que a alma do artista toca com o pé no fundo do poço e toma impulso de volta, na obstinada esperança de ver de novo a luz do dia, e de voltar a respirar.
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