Morreu Zilka Salaberry, a Dona Benta do “Sítio do Picapau Amarelo”. Para mim é o caso típico da atriz de um papel só, embora eu saiba muito bem que Dona Zilka teve uma carreira longa e variada. Paciência. Anos e mais anos interpretando a matriarca do Sítio fixaram sua imagem de maneira indelével na minha (acredito que na de nós todos) memória afetiva.
Cresci devorando os livros infantis de Monteiro Lobato. Alguns deles, como Historia do Mundo para as Crianças, Emília no país da gramática, Serões de Dona Benta ou O Picapau Amarelo, não li menos de cem vezes. Por que? Acho que porque eu era meio burrinho e acabava me esquecendo, porque a releitura sempre me deu tanto prazer quanto a leitura inicial.
Nunca me dei bem com a literatura adulta de Lobato, que mesmo assim tem alguns contos bons. Mas o linguajar era pomposo, o que nos mostra que as crianças de 1930 eram mais contemporâneas nossas do que os adultos. Lobato e Malba Tahan formataram minha cabeça e a de mais de uma geração. Graças a eles dois, dezenas de milhões de brasileiros como eu escaparam da burrice. Um país que tem dois escritores como estes não pode dar errado.
Voltando a Dona Benta, é admirável que Lobato tenha escolhido uma avó, e não um avô, como o símbolo da sabedoria. Talvez eu tenha me deixado contaminar com facilidade porque sou de uma família onde as mulheres idosas sempre foram chegadas tanto aos livros quanto às lições de sapiência, ao saber “só de experiências feito”. Minha mãe, minha avó Clotilde, minha tia Adiza, foram algumas das principais Donas Bentas que supervisionaram meu crescimento e a formação do meu caráter. Isto me tornou um adepto de certas formas de matriarcado, porque sendo homem eu entendia muito bem os rompantes de autoritarismo e de rispidez dos homens, sabia de sua falibilidade como líderes. As mulheres, mais compassivas, mais serenas, tinham uma autoridade que se baseava menos no individualismo e mais numa rede interligada de responsabilidades.
É notável que Monteiro Lobato, num livro como A Reforma da Natureza, faça com que ao final da II Guerra Mundial os líderes da Europa, engalfinhando-se em contradições e disputas, resolvam convocar Dona Benta e Tia Nastácia para servir como “árbitras” das questões internacionais. Dona Benta, muito bem informada sobre política, aceita imediatamente e parte para a Europa. Aos oito anos de idade eu achava isto uma coisa meio surrealista, e ao mesmo tempo extremamente lógica. Afinal, Hitler, Mussolini e o Rei Carol da Romênia tinham comprovado sua incompetência para gerir o mundo, e nada mais natural do que convocar para conserta-lo as pessoas cujo sistema de administração tinha produzido uma comunidade organizada e pacífica.
Dona Benta é o símbolo de uma autoridade baseada na experiência e na credibilidade, mas disposta a acreditar no novo, no imprevisto e no improvável – haja vista a disposição com que ela se deixa arrastar nas aventuras das crianças, seja visitando a Grécia antiga, seja indo parar na Terra do Faz de Conta.
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