sábado, 9 de outubro de 2021

4752) Minhas canções: "Teofania" (9.10.2021)



Minha primeira parceria com Chico César surgiu depois de uma convivência de muitos anos. Quando comecei a fazer meus shows mambembes de voz e violão na Paraíba, Chico era um adolescente recém-chegado à capital, e andava com uns caras-mais-velhos que eram meus amigos. Entre eles, Pedro Osmar e Paulo Ró, cabeças do grupo Jaguaribe Carne, uma das melhores entre tantas e tantas coisas boas que a música paraibana já produziu.

Aqui, um álbum-síntese do trabalho do Jaguaribe Carne:

https://www.youtube.com/watch?v=uZS2l4KcKmA

Tocamos naquelas rodas de violão em que o instrumento passa de mão em mão e cada um mostra uma ou duas canções por vez, e que é uma das mais democráticas formas de convivência entre músicos. E o que me chamava a atenção em Chico nem era o violão ou as melodias, que já eram de erguer as sobrancelhas: eram as letras, que mostravam a familiaridade do guri escuro, magro, de cabelos curtíssimos, com o Tropicalismo e os poetas concretistas de São Paulo.

O tempo passa, o tempo voa, Chico sumiu como todo mundo some, e um dia Chico reapareceu como alguns reaparecem.  Encontrei com Lenine num show qualquer do Canecão e ele me disse estar chegando de São Paulo, onde tinha ido fazer uma participação no CD de estréia de Chico César, gravado ao vivo.

“Que bom,” falei, “tem músicas legais?” Ele disse “escuta só”, e cantarolou: “Himalaia, himeneu / este homem nu sou eu / olhos de contemplação. / Inca, maia, pigmeu / minha tribo me perdeu / quando entrei no templo da paixão”. E eu pensei: “Danou-se, é ele mesmo.”

O resto é de conhecimento público, e eu vi uma grande justiça poética no fato de Chico, o concretista de Catolé, ter fincado sua bandeira e decolado seu foguete justamente a partir de São Paulo, a cidade dos Campos e espaços.

Chico César, como letrista, tem uma consciência da materialidade da palavra que talvez só alguns charadistas tenham, e só afirmo isto porque minha formação é charadística. A maioria das pessoas vê uma palavra como vê uma pedra: uma coisa inteira, completa, sólida, indivisível. Quem tem formação de charadista (ou de concretista, cujo endereço é na mesma rua) vê a palavra como um Lego de sílabas, de letras encaixadas.

Se alguém me mostrasse o título “A Prosa Impúrpura de Caicó” e me perguntasse: “O que diabo é isso, e quem foi que fez?”, eu diria no ato, “Rapaz, é uma brincadeira com A Rosa Púrpura do Cairo, e quem fez provavelmente foi Chico César.”  Como dizia Ariano Suassuna: “Eu sou da tribo; conheço os caboclos.”

E aí Chico me manda uma melodia pedindo uma letra, e a essa altura, graças aos milagres da montagem cinematográfica, já estamos no ano de 2001, e eu saio viajando de avião com meu gravadorzinho de fita cassete rodando, o fio no ouvido, e a melodia tocando em loop até que eu decore e seja capaz de, sem ouvir a fita, ir montando meu Lego e encaixando cada sílaba da letra em cada nota da música.

Era tempo de guerra, era tempo sem sol. As Torres Gêmeas tinham sido pulverizadas em setembro pelos aviões sequestrados, a Amerika arregimentava sua logística para a invasão do Iraque, que aconteceria em março de 2003. A guerra era uma certeza, mas o que mais me remexia a ferida era o fato de estarmos voltando às guerras religiosas, às pelejas da Cruz contra o Crescente, ao mundo alucinatório do Deus dos Exércitos, do Deus do Povo Eleito (e não pode haver mais de um).

O 11 de setembro de 2001, cujos 20 anos foram recordados poucas semanas atrás, talvez seja a data em que começou de fato o século atual (como alguns historiadores dizem que o século 20 só começou de fato em 1914, com a I Guerra Mundial).

Remexendo nas minhas anotações desse tempo, encontrei o último poema que rascunhei antes dessa data, no dia 9 de setembro, e que diz:

Quem era

o homem mais rico da Pérsia

no tempo de Zaratustra?

 

Quem era o grande general da Itália

quando Dante escreveu a “Divina Comédia”?

 

Quem era o maior banqueiro americano

no ano em que Poe escreveu “O Corvo”?

 

Quem era o Presidente da República

quando Augusto dos Anjos

escreveu os “Versos Íntimos”?

 

Quem é

o homem mais poderoso do mundo

hoje

quando o homem menos poderoso do mundo

acaba de nascer?

 

Era uma simples reflexão ociosa, sem alvo certo (e boa só por isto). Dois dias depois, no entanto, os conceitos de poder, nascimento e morte começaram a ser enviesados pela força gravitacional da primeira explosão de uma nova guerra, e uma guerra em nome de Deus.

O mundo está cheio de pessoas com fé num Deus que mata com esta mão e perdoa com aquela, como diz o soneto de Ruy Guerra na canção de Chico Buarque (“E se a sentença se anuncia bruta, / mais que depressa a mão, cega, executa, / porque senão... o coração perdoa!”).

O mistério dessa guerra reside todo no lado de lá, no lado do Deus bom e assassino, no lado dos mulás, dos talibãs. Porque do lado de cá eu não preciso de outra explicação senão o preço do petróleo, dos armamentos, das munições, do orçamento do Departamento de Defesa, e assim por diante. Religião também, só que no altar de outro Deus – o Deus Dinheiro, o Deus Número, o Deus Finança. O Deus sem ódio e sem paixões, cujos discos-rígidos gigantescos trabalham 24 horas por dia, refrigerados pelas “águas glaciais do cálculo egoísta”.

Daí surgiu esta letra, a partir de dezembro de 2001, rabiscada devagarinho em aviões, em pousadas, em aeroportos, e gravada por Chico no seu disco Respeitem Meus Cabelos, Brancos, de 2002.

 

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TEOFANIA

(Chico César / BT)

(em "Respeitem Meus Cabelos, Brancos", 2002)

 

Além do bem e do mal

com seu amor fatal

está o Ser que sabe quem sou.

No tempo que é um lugar

no espaço que é um passar

espreita-nos um olhar criador.

 

Muitos me dirão: que não!

Que nada é divino: nem o pão, o vinho, a cruz...

Outros rezarão: em vão!

Pois nada responde e tudo se esconde - em luz...

 

Deus do roseiral, do sertão,

do ramo de oliveira, e do punhal.

Deus dos temporais, dos tufões,

da dúvida, da vida e a morte vã.

 

Quanta solidão e eu não sei

se, homem só, suportarei.

Um sinal, um não,

e silencie, aqui e além, a dor...

 

Deus das catedrais, dos porões,

da Bíblia, do Alcorão, e da Torá.

Deus de Ariel e Caliban

da chuva de enxofre, do maná.

 

Quanta solidão e eu não sei

se, homem só, suportarei...

Um sinal, um não,

e silencie, aqui e além, a dor...


Além do bem e do mal...

 



quarta-feira, 6 de outubro de 2021

4751) O Conto de Circulação (6.10.2021)




O leitor cândido pensa que os gêneros literários são criados pela universidades e pelas revistas de literatura. Ele imagina uma espécie de Fantasia Normativa, na qual os críticos, depois de redigir os estatutos do que um gênero deve ser, distribuem cópias entre os escritores, para que estes passem a produzir as respectivas obras.
 
Não é bem assim. Os gêneros literários surgem como surgiram os mitos da Antiguidade. Pessoas criam histórias cuja impressão é tão grande que desencadeia uma série de imitações, variantes, distorções, versões corrompidas, prolongamentos, expansões da história original.
 
Nenhuma criação se dá a partir do zero. “Nothing comes from nothing”, já dizia uma canção da Noviça Rebelde. Mesmo a primeira narrativa, a narrativa fundadora de um gênero, está cravejada de elementos que já existiam, só não tinham sido agrupados daquela forma, com aquelas funções.
 
Um gênero é como uma roupa que a gente compra feita na loja de departamentos, e depois leva ao alfaiate para ajustá-la às nossas medidas, ao tintureiro para que lhe aplica a cor que nos agrada.
 
Toda esta lenga-lenga é para reafirmar (pela centésima vez) a minha opinião de que um gênero literário é um recorte de certas características que os autores e o público percebem, e que vão se cristalizando à força de imitações, repetições, variantes, adaptações, etc.
 
John Clute, editor da Encyclopedia of Science Fiction, divulgou recentemente um novo verbete da Enciclopédia: o “Conto de Circulação” (“Tale of Circulation”). Ele o define assim (tradução minha):
 
Contos que reconstituem a circulação de um objeto desde a sua fabricação ou sua descoberta original, através de diferentes proprietários, em diferentes circunstâncias. (Nesses contos) produz-se em geral uma visão cumulativa da vida em regiões distintas do mundo, muitas vezes servindo como um mecanismo de Sátira; um tal tipo de conto normalmente se foca nos personagens e ambientes revelados pela narrativa, e não no objeto em trânsito. (...) Contos infantis, por outro lado, são mais propensos a se focar no objeto em si – tipicamente um pássaro ou um boneco – como protagonista, e a incorporar elementos das implicações picarescas do sub-gênero conhecido como Viagem Fantástica.
 

Curiosamente, quando comecei a ler esse verbete o primeiro exemplo que me veio à mente foi um filçme que não tem nada a ver com o fantástico, de que é também citado por Clute: O Rolls-Royce Amarelo (1964), de Anthony Asquith, com Shirley MacLaine.
 
É um filme em episódios em que o tal Rolls-Royce passa pela mão de vários donos, e em torno de cada um deles se constrói uma historinha divertida.
 
O verbete de John Clute menciona uma porção de exemplos na literatura em inglês, e pode ser visto aqui:
 
http://www.sf-encyclopedia.com/entry/tale_of_circulation
 
Na literatura fantástica, temos um tipo de “conto de circulação” que envolve o “objeto maldito”, muitas vezes um livro necronômico ou orbis-tertius, cuja passagem de mão em mão vai desestruturando a mente dos seus possuidores e, por tabela, o mundo à sua volta. Acho que qualquer leitor de literatura de horror pode evocar suas histórias preferidas sobre uma jóia, um espelho, uma pintura – objetos aparentemente anódinos mas que carregam consigo uma maldição, que trazem a desgraça aos seus possuidores.
 
O que caracterizaria essas histórias como “contos de circulação” seria o uso dessa estrutura de justaposição de episódios cronologicamente sucessivos, que é típica da Novela literária, mais do que do Romance.
 
Há muitos Contos de Circulação (incluindo romances, claro) na literatura brasileira? Creio que para caracterizar o gênero o objeto em questão deveria passar pelas mãos de pelo menos três proprietários, para caracterização essa idéia do “passar de mão em mão”. Um objeto que foi meramente presenteado por “A” a “B” não estaria propriamente indicando um percurso.
 
Lembro das “Idéias de Canário” de Machado de Assis (Páginas Recolhidas, 1899), em que um esperto canário falante passa de dono em dono e tem sua visão-do-mundo transformada de acordo com cada novo ambiente onde se instala.
 







domingo, 3 de outubro de 2021

4750) "Os Salteadores Mascarados" (3.10.2021)




No mundo da Arte (e, numa esfera mais milionária e plebéia, no mundo da cultura pop) existe um fenômeno curioso e recorrente em que o efeito precede a causa, e de certo modo acaba sendo a causa da causa.  
 
Por exemplo: alguém escreve uma resenha ou um ensaio crítico a respeito de um livro que não existe. O ensaio torna-se tão conhecido que cedo ou tarde alguém tem a idéia de escrever esse livro imaginário, e ele acaba sendo publicado. O efeito (a crítica) precedeu a causa (o livro), invertendo a ordem natural dos fatos.
 
Isso pode ser feito com diferentes propósitos. Pode ser um recurso ficcional, como a famosa “pegadinha” de Jorge Luís Borges, que introduziu num livro de ensaios críticos (Historia de la Eternidad, 1936) uma resenha de um livro chamado “A Aproximação a Almotásim”. O livro não existia, mas o resumo e os comentários de Borges eram (são ainda) tão interessantes que Adolfo Bioy Casares encomendou o livro a uma livraria de Londres.
 
Pode ser um recurso ficcional que ao longo do tempo vai ganhando mais peso, mais dimensões, até que sua existência torna-se uma obrigação. H. P. Lovecraft inventou em seus contos de terror o Necronomicon, uma espécie de “escritura sagrada do Mal”, de autoria de um árabe louco.
 
Claro que a legião de fãs lovecraftianos acabou produzindo diferentes versões desse obscuro grimório maligno.
 
Ou seja: alguém anuncia que uma obra qualquer existe, e depois alguém se apressa em trazer essa obra à existência.
 
Não foi outra coisa que fez o editor John W. Campbell, da revista Astounding Science Fiction nos idos dos anos 1950. Um leitor da revista mandou uma carta brincalhona afirmando ter recebido um exemplar da revista “vindo do futuro”, e listando os respectivos contos e autores. Campbell levou a brincadeira ao pé da letra e encomendou desses autores os contos com os mesmos títulos. A revista foi publicada, na data “prevista” na carta do leitor.
 
A verdade é que quando uma ficção ou uma reportagem inventam a existência de uma obra imaginária haverá sempre aquele leitor criativo capaz de se deter sobre essa idéia e tentar desenvolvê-la, na base do “se esse livro existisse mesmo, como seria?”.
 
Basta um título, uma sinopse, cotações de alguns trechos, descrição resumida de alguns personagens e episódios... Tudo serve a esse leitor criativo como um mote a ser glosado. Borges não foi o criador do subgênero “Livros Imaginários”, mas soube desenvolver tão bem suas implicações que esses argumentos passaram a ser qualificados como “borgianos”.
 
Em “Pierre Menard, autor do Quixote”, ele alude a um crítico literário cujo projeto fantasioso é escrever um livro idêntico ao Dom Quixote de Cervantes, baseando-se apenas na lembrança que guardava do livro original, lido há muitos anos. Essa sensação tentadora do “livro potencial” é a mesma que experimentamos ao ouvir a descrição sugestiva, surpreendente, estimulante, inspiradora, de uma obra que não existe.
 
Uma das pegadinhas mais interessantes da música popular é a que deu origem à banda imaginária “The Masked Marauders” (Os Salteadores Mascarados), cuja existência foi anunciada num número de 1969 da revista roqueira Rolling Stone, que na época tinha Greil Marcus como editor.
 
Marcus publicou, por curtição, uma nota anunciando o lançamento de uma super-banda que estaria gravando sob esse pseudônimo. A banda seria formada por Mick Jagger, Bob Dylan, e três dos Beatles, com exceção de Ringo Starr. Observe-se que nessa época todos esses artistas estavam num dos “picos” de sua produção e criatividade. Um disco juntando os cinco seria algo para bater vários recordes comerciais, mesmo que a qualidade artística não viesse a ser grande coisa.
 
Os artistas não poderiam aparecer com seus próprios nomes por motivos de contrato, mas poderiam (teoricamente) ser reconhecidos pela voz, pelo estilo de compor, de tocar, etc.
 
Houve uma discussão tão grande nos meios roqueiros da época que os autores do hoax decidiram levar a brincadeira adiante, e contrataram um grupo de músicos para compor e gravar as canções cujos títulos tinham sido anunciados na matéria.
 
Aqui, um artigo que resume a encrenca inteira:
 
https://www.snopes.com/fact-check/unmasked-marauders/
 
Super-bandas desse tipo eram uma possibilidade na época, sendo o exemplo mais famoso o grupo Crosby, Stills, Nash & Young, que juntou de forma inesquecível quatro pesos-pesados do folk-rock e produziu alguns dos melhores discos desse sub-gênero.
 
E alguns anos depois, Bob Dylan e George Harrison (dois dos alegados “Marauders”) uniram-se a Tom Petty, Roy Orbison e Jeff Lyne para formar, sob pseudônimo, a competente banda dos Travelling Wilburys, que lançou três álbuns. As canções eram um material bastante razoável – se levarmos em conta que para quem carregava nas costas o peso dos respectivos currículos aquilo não passava de uma quantaladeirice, uma curtição, sem a menor obrigação de ser sério, apenas o gosto de curtir por curtir.
 
Seria interessante se descobríssemos, em alguma obscura banda de componentes desconhecidos, a presença real de alguns nomes de peso da música pop, “testando a temperatura da água” e vendo se o público seria capaz de percebê-los sob aquele disfarce.
 
Em 2007, Joshua Bell, um violinista consagrado, foi tocar sem qualquer propaganda numa estação de metrô de Washington, vestido com simplicidade. Um maestro e amigo previu que no máximo cem pessoas parariam para escutá-lo. Pelo que registrou a imprensa, das 1.097 pessoas que passaram por ele somente 27 “pingaram” algum trocado na caixa do violino, e apenas 7 se detiveram durante algum tempo para escutá-lo.
 
E a famosona J. K. Rowling, a criadora de Harry Potter, a mulher que já vendeu 500 milhões de livros, tem também suas crises de auto-estima. Não foi por outro motivo que publicou um romance policial com o pseudônimo de Robert Galbraith. A tiragem inicial do romance, The Cuckoo’s Calling, foi de 1.500 cópias, das quais foram vendidas cerca de 500. Quando por fim foi revelado que era ela a autora, a coisa deslanchou e a editora mandou fazer mais 140 mil cópias, por via das dúvidas.
 
Aqui, o disco completo dos Masked Marauders:


quinta-feira, 30 de setembro de 2021

4749) Cinco lições para dirigir melhor (30.9.2021)



Dizem que a terceira idade é a época mais adequada para a gente passar adiante os próprios conhecimentos. Em primeiro lugar, porque a essa altura já acumulamos uma boa quantidade deles. Em segundo, porque vivemos cercados de gente que estão encarando pela primeira vez um problema com o qual a gente convive há décadas. Em terceiro, porque ao transferir conhecimentos vamos ficando mais leves; asas de anjo são frágeis, não conseguem elevar muito peso.
 
Resolvi, portanto, transferir alguns conhecimentos que adquiri, ao longo da vida, sobre a arte incompreendida de dirigir carro.
 
1) Escute o carro.
 
Um automóvel é um conjunto de partes físicas, feitas de ferro, alumínio, plástico, madeira, cobre, etc. Esses materiais são vítimas de desgaste permanente durante o uso. Um carro não é feito de pixels luminosos numa tela. Carro é um bicho analógico. Todo motorista diz a certa altura: “Tou ouvindo um clac-clac esquisito aqui do lado esquerdo, embaixo...”  Um carro não é virtual, ele é “de carne e osso”, como você.
 
Ouvir o carro é como encostar um estetoscópio e pedir: “Diga 33.”  Um carro é como um corpo, é cheio de ressonâncias; de vibrações; de atritos; da expansões e contrações controladas; de partes encaixadas que não podem ficar chacoalhando impunemente; de explosões de gases que soam de um jeito quando tudo está bem e de outro quando alguma coisa vai mal.
 
Lembre do filme Um homem... uma mulher... Um piloto de corrida está azarando uma mulher bonita (Anouk Aimée, linda). Ela lhe pergunta durante um jantar romântico: “Qual a coisa mais importante, ao pilotar?”  E ele: “O ruído do motor. Houve um cara que mandou instalar tubos de órgão no escapamento, para sentir melhor como o carro estava respondendo”.
 
Claude Lelouch, o diretor, não colocou isso de graça. O cara estava tentando seduzir a mulher, e isto era uma forma velada de dizer a ela: “Eu sou capaz de ouvir. Eu estou disposto a ouvir você, para saber se está tudo bem. Ouvir faz parte da minha vida. Eu gosto.”
 
Ouça o carro como se ele fosse uma pessoa, ou como se fosse seu gato, ou seu cachorro, um ser que não fala a linguagem humana, mas que tem sua maneira própria, seus barulhinhos próprios para dizer a você: “Ei, eu tou bem, tá tudo legal”, ou então, “Ai, tou com um problema”.
 
 
2) Como fazer baliza.
 
Muita gente tem dificuldade de fazer baliza para estacionar o carro, possivelmente, porque é uma combinação anti-intuitiva de movimentos, ou pelo menos é o contrário do próprio ato de dirigir. Quando dirigimos normalmente, nossa visão e nossos movimentos (mãos e pés) convergem todos para a frente; na baliza, estamos virados para trás e precisamos reconfigurar as reações imediatas, porque estamos fazendo ao contrário uma parte dos procedimentos.
 
A prática da baliza deve ser treinada num espaço aberto, um descampado, com alguns objetos (caixotes, latas de lixo, etc.) servindo de pontos de referência. O principal é se habituar à nova relação entre, p. ex., girar o volante para a direita e ver o carro fazer algo diferente (quando em ré) do que faz normalmente.
 
É preciso encontrar uma sincronia passável entre os giros do volante, o pisar nos pedais e a avaliação visual de distância e posição. Esta parte física tem que ser muito treinada antes do indivíduo se meter a estacionar a cobaia mecânica da Auto Escola no meio-fio de uma rua no mundo real. 
 
Já que são três sistemas simultâneos (mãos, pés, olhos) agindo de maneira contraintuitiva, é preciso ver em qual dos três está a principal dificuldade. Há pessoas que fazem bem o jogo de volante e pedais, mas tem péssimo golpe de vista para calcular distâncias e deslocamentos. Há outras que até percebem isso bem, mas na hora de debrear aceleram, ou vice-versa... Enfim: é um pouco como jogar malabares. Comece aos poucos. Você não pode começar logo com meia dúzia.
 
 
3) Aprenda a se relacionar
 
Dirigir no trânsito é relacionar-se o tempo inteiro: com os outros carros; com pedestres; com motoqueiros e ciclistas; e assim por diante. Quando dirigimos na estrada, principalmente numa rodovia com pouco tráfego, é como se o carro fosse um instrumento musical fazendo um solo, onde depende só de si, tem liberdade e latitude para experimentar, e pode experimentar aquela breve euforia de um pássaro no espaço.
 
Na cidade, contudo, é diferente. Estamos cercados por todos os lados, tendo que vigiar os quatro pontos cardeais sem poder sequer piscar o olho. Tinha toda razão aquele professor que disse ao aluno: “Dirija como se todos os outros estivessem bêbados”. Ensinar direção nunca é o suficiente, ou seja, ensinar a relação do motorista com o carro não basta. Todo ensino de direção precisa ser o ensino da direção defensiva, das mil maneiras de evitar choque, colisões, arranhões, fechadas, etc.
 
Outra coisa: se você dirige automóvel, o que é o mais provável, não trate os motoqueiros do jeito que os motoristas de ônibus tratam você. Dê o bom exemplo.
 
 
4) Pratique muito
 
Se você perguntar a um motorista profissional quais são os tipos mais perigosos de motorista, ele provavelmente mais responder: os agressivos, os bêbados, e os motoristas de fim de semana.
 
Os dois primeiros são auto-explicativos, mas, e o terceiro? O motorista de fim de semana é aquele cara que comprou um carrinho mas durante a semana vai pro trabalho e volta usando o ônibus ou o metrô. No fim de semana ele pega o carro pra dar uma volta com a família, e aí começa o problema.
 
Muitos desses motoristas nunca chegam a se sentir completamente à vontade dirigindo. A falta de traquejo os deixa hesitantes, inseguros. É aquele cara que faz que vai mas não vai, e quando acaba indo deflagra um coro de buzinas e impropérios. É o que liga a sinaleira e se esquece, percorre quatro bairros e dezenas de quilômetros piscando sem perceber. É o que tem dificuldade para dirigir e ler placas ao mesmo tempo, e cada placa que aparece ele precisa reduzir a velocidade e soletrar os avisos em voz alta. É o que passa mal uma marcha, dá aquela “rasgada” de cortar o coração e fica meio minuto olhando para a alavanca de câmbio como se a culpa fosse dela (e esquece de olhar para a frente).
 
O mito de que as mulheres dirigem mal foi construído em cima de mulheres que dirigem pouco. Geralmente dirigem pouco porque o marido lhes repete o tempo inteiro que elas dirigem mal. E acabam dirigindo mal mesmo, por nervosismo e, mais uma vez, por falta de prática constante.
 
O motorista de fim de semana tem medo de ir muito depressa e causar algum desastre, e muitas vezes acaba por causá-los pelo simples fato de que numa rodovia de mão dupla insiste em avançar a 60 km por hora, retendo uma fila de veículos impacientes, até que alguém, desesperado para ultrapassá-lo, acaba fazendo uma besteira grande.
 
Um carro é um instrumento, e só funciona direito quando a gente adquire familiaridade com ele. Paul MacCartney dormia com a guitarra na cama, Pelé dormia com a bola, e mesmo que você não possa dormir com o carro, aproveite seu tempo acordado para ganhar mais e mais intimidade com ele.
 
 
5) Obedeça ao carro
 
Dirigir um carro não é comandá-lo como se ele fosse um mero agregado de matéria morta. É perceber que embora seja uma simples tonelada de ferro, plástico, etc., ele gera sua própria energia e depois de ligado comporta-se quase como um animal, meio burrinho mas voluntarioso.
 
Trate o carro como se fosse um cavalo. Entenda como funciona. Saiba para que servem aquelas engrizias e aqueles parangolés que tem embaixo do capô. Servem para alguma coisa, sim, não foram botados ali simplesmente para boquiabrir os incautos.
 
É espantosa a quantidade de gente, Brasil afora, que dirige o próprio carro sem fazer a menor idéia do que acontece no motor, nos eixos, nos pneus, no sistema elétrico, quando o carro está em movimento. Em geral a gente ironiza mulher que não sabe trocar um pneu; a maioria desses engraçadinhos não sabe trocar uma bateria nem desentupir um carburador.
 
Sinta o peso do carro em movimento como se fosse o do seu próprio corpo. Deixe o carro se projetar. Ele pesa uma tonelada, e a maneira de deixá-lo mais leve é colocá-lo em movimento. Há motoristas que têm medo de dar liberdade ao carro, mesmo numa rodovia desimpedida e sem curvas. Em vez de acelerá-lo, em vez de passar uma segunda, uma terceira, e deixar que o carro respire sozinho, ficam dando pequenas pisadas no acelerador jogando o carro em pulinhos sucessivos para a frente, como se ele estivesse com soluços. Não faça isso. Sinta quando o peso do carro se projeta por conta própria, e fique apenas administrando.
 
O carro é seu corpo, na pista de asfalto. Você é o cérebro do carro. Dê ao seu carro um cérebro inteligente.





 
 







segunda-feira, 27 de setembro de 2021

4748) A onipotência do pensamento (27.9.2021)



Freud classificou várias formas de manifestação do Uncanny em nossos pensamentos. O “uncanny” é o estranho, o sinistro, o sobrenatural; aquilo que nos perturba e nos inquieta, que parece inacreditável e ao mesmo tempo esquisitamente familiar.
 
No ensaio famoso Das Unheimlich (1919) ele cita um dos seus exemplos disso:
 
Tomemos o estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A condição sob a qual se origina, aqui, a sensação de estranheza, é inequívoca. Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos de pensamento, mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação.
 
(Obras de Freud, Edição Standard, Ed. Imago, vol. XVII, pág. 264, trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza)
 
A realização de desejos, na narrativa fantástica, vem muitas vezes ligada ao tema do objeto mágico, de que a “lâmpada de Aladim” é a imagem mais conhecida, das Mil e Uma Noites. Tanto a narrativa oral quanto a literatura escrita estão cheias de objetos equivalentes, que vão desde anéis mágicos até a “Pata do Macaco” de W. W. Jacobs, desde as invocações da magia ritual até o “Duende na Garrafa” de R. L. Stevenson.
 
Como esse tipo de narrativa tende a se repetir, os autores buscam variantes mais afastadas. Uma delas é a onipotência involuntária. Ao invés de formular com intensidade um desejo, um indivíduo vê-se na situação de estar manipulando inadvertidamente algum tipo de poder cósmico, que envolve às vezes o desejo de causar a morte a outras pessoas – e quando isso de fato acontece, ele se horroriza, mas não pode fazer mais nada a respeito.
 
Stephen King tem um conto, “Obituário”, em que um escritor descobre ser capaz de matar outras pessoas meramente escrevendo os seus obituários – que acabam se tornando textos proféticos.
 
No conto clássico de William F. Harvey, “August Heat”, um homem que produz lápides para um cemitério se distrai criando uma lápide fictícia, com o nome de um homem, uma data de nascimento e de morte (a da morte naquele mesmo dia); e em seguida encontra um homem com aquele nome, que nasceu naquele ano e que, portanto, está aparentemente destinado a morrer naquele dia.
 
Diz Freud:
 
Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho; é como se estivéssemos raciocinando mais ou menos assim: “Então, afinal de contas, é verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo de sua morte!”.

(idem)
 
Mais interessante do que o “mero desejo realizado” é a descoberta repentina de um super-poder perigoso. O indivíduo, por uma razão qualquer, vê-se capaz de fazer com que algo aconteça, inclusive a morte de uma pessoa.
 
 
Eu Enterro os Vivos (“I Bury the Living”, 1958), de Albert Band, é um curioso filme fantástico que pode ser visto no YouTube (com legendas em português) sobre o administrador de um cemitério que em certo momento se descobre possuidor de um poder estranho. A história original do filme é um trabalho de juventude de Louis Garfinkle, que depois seria o autor do argumento original de filmes como A Gang dos Dobermans (1972) e O Franco Atirador (1978).


Na parede de seu escritório, no próprio campo-santo, ele tem um enorme painel com as sepulturas marcadas e numeradas em suas alamedas. Todas têm o nome do proprietário. Os vivos estão marcados com alfinetes brancos, os mortos com alfinetes pretos. Ele descobre que causou involuntariamente a morte de algumas pessoas ao colocar alfinetes pretos nos respectivos jazigos.
 
Richard Boone, o famoso coadjuvante barbudão que fazia guerreiros medievais (O Senhor da Guerra) ou pistoleiros do Oeste (Meu Ódio Será Tua Herança) faz aqui o papel de Robert Kraft, o atormentado sujeito tocado pelo poder do Uncanny. 

O mais interessante é que se fosse um filme “B” comum o dono desse poder começaria a praticar atentados, matando seus desafetos. No caso de Kraft, ele percebe, horrorizado, o que está acontecendo. Conta aos amigos. Três amigos riem na cara dele, e propõem um teste: ele colocará alfinetes pretos nos nomes dos três, para ver o que acontece. (Não vou contar o que acontece.)
 
O superpoder é mais interessante na mão de um Relutante do que nas mãos de um Entusiasmado. O Entusiasmado irá inevitavelmente realizar seus desejos mais óbvios, que são os enredos mais óbvios ao alcance da imaginação curta dos roteiristas. O Relutante produz uma tensão entre sua tentativa de lidar com algo descomunal que não compreende e não sabe manejar direito.
 

Mais importante do que isto, o Relutante, na sua insistência em provar que está errado, que “coisas como aquela são impossíveis de acontecer”, acaba produzindo o efeito uncanny do desejo ao contrário. Tentando mostrar que aquilo é impossível, ele faz com que o fato se repita.

É um pouco como aquele personagem de Tom Stoppard em Rosencrantz and Guildenstern are Dead, que começa a jogar uma moeda para o alto e a moeda começa repetidamente a dar cara, cara, cara, cara, cara... Ele se desespera com aquela improbabilidade e, decidido a provar que aquilo vai parar de acontecer mais cedo ou mais tarde, faz com que continue acontecendo. 

 


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

4747) A linguagem da ficção científica (24.9.2021)



Samuel R. Delany descreve a ficção científica como um gênero literário onde as frases podem (e devem) ser lidas ao pé da letra.
 
Na literatura mainstream, quando um personagem diz: “Meu mundo foi destruído”, o leitor entende que a vida do cara se desestruturou por completo, perdeu o referencial; que as suas certezas desmoronaram, ele ficou sem parâmetros, etc. etc. Na FC, o leitor entende que um planeta explodiu, que sua população foi dizimada por bombas atômicas, etc. etc.
 
Isto é, aliás, um dos problemas de quando se dá um livro da FC para um tradutor que não tem familiaridade com o gênero. O tradutor está acostumado a ler frases como “meu mundo foi destruído” num sentido metafórico, e muitas vezes tem dificuldade em aceitar que o autor está querendo dizer aquilo literalmente.
 
Lembro uma conversa por telefone que tive com o saudoso José Sanz, tradutor e militante da ficção científica. Ele esbravejava (era o jeito dele) contra a tradução que fizeram de um livro de Philip K. Dick, em que um personagem vivia duas realidades paralelas, e o tradutor deu uma aconchambrada no texto, para que o texto “fizesse sentido” e tudo aquilo acontecesse no mesmo mundo – o que na história, é claro, não fazia o menor sentido.
 
Delany cita com deleite o exemplo clássico de uma história de Robert Heinlein, que dizia a certa altura: “The door dilated”. A porta se dilatou. Muitos filmes e contos de FC nos acostumaram com a idéia de portas que são aberturas (redondas, quadradas, etc.) na parede, que aumentam ou diminuem de tamanho, como o diafragma de uma máquina fotográfica.

 
Outro exemplo: em inglês existe o verbo “two-time” que significa ser infiel, trair a esposa ou o marido. “She was two-timing her husband.” O escritor inglês Bob Shaw tirou desse modo de falar coloquial uma história de FC, simplesmente levando ao pé da letra a expressão. The Two Timers (1968) é um romance em que um homem mata a esposa, que o estava traindo. Mas logo em seguida aparece um “duplo” seu, vindo de um universo paralelo, que tenta evitar o crime.
 
Certamente Bob Shaw leu a expressão “dois-tempos” num texto qualquer, ergueu os olhos da página e pensou: “Arrá!  Adultério... Crime... Tempos paralelos...”
 
É possível extrair idéias de FC simplesmente levando ao pé da letra expressões que todo mundo usa num sentido metafórico.



Os críticos inventaram a expressão “Space Opera” para designar as histórias de guerras e aventuras interplanetárias, no estilo de “Star Wars”. A ninguém ocorreu levar esse rótulo ao pé da letra, até que Jack Vance publicasse Space Opera (1965), a história de uma enorme espaçonave que viaja por entre os planetas, levando consigo uma companhia itinerante de ópera, com todos os seus barítonos e contraltos, seus cenários, sua orquestra...
 
Quando um texto de FC diz que apareceu na porta um homem de duas cabeças, não está se referindo a alguém com dupla personalidade. É um homem com duas cabeças físicas, com dois crânios, dois rostos, etc.  (Ainda estou pra ver uma história BOA de ficção científica em que apareça gente de duas cabeças; mas não é de qualidade que estamos falando.)



E de repente estou eu, aqui, lendo uma coletânea de contos de Shirley Jackson, uma grande escritora de histórias fantásticas (Hill House, “The Lottery” e outras) mas que nunca se aventurou pela ficção científica.
 
O conto chama-se “After you, my dear Alphonse” (1943) e foi publicado originalmente na revista The New Yorker. Em sua primeira frase, diz assim:
 
Mrs. Wilson was just talking the gingerbread out of the oven...
 
“Que bacana”, pensei. “A sra. Wilson estava convencendo o pão-de-mel a sair do forno...” 

Uma idéia interessante de ficção científica, não muito distante (e uma precursora, sem dúvida) daqueles contos de Philip K. Dick em que existem objetos falantes dentro da aparelhagem doméstica.
 
Há uma história de Dick que começa com o personagem acordando e recebendo o aviso de que seu condomínio está vencido. Ele troca de roupa para ir trabalhar, e a maçaneta da porta se recusa a abrir. Ele pragueja, e a maçaneta responde algo como:
 
– Mr. Smith, o senhor encontra-se em débito no pagamento dos encargos do condomínio. Enquanto o senhor não estiver regularizando esta situação, o apartamento permanecerá bloqueado.
 
– Ora que diabo! – exclama ele. – Como vou poder pagar, se não posso sair para trabalhar?!
 
E o pobre Smith fica ali, discutindo com uma maçaneta.
 
Tudo isto passou pela minha mente durante oito ou dez segundos, até que baixei de novo os olhos para a página e li:
 
Mrs. Wilson was just taking the gingerbread out of the oven...
 
Era “taking”, e não “talking”. A sra. Wilson estava tirando o pão-de-mel do forno.
 
Jorge Luís Borges dizia que cada gênero literário constrói um tipo novo de leitor, um tipo de leitor preparado (treinado, adestrado, amestrado, lavagem-cerebralizado) para ler aquele tipo de história. O conto policial, dizia ele, produziu o leitor desconfiado, o leitor que sabe que aquele escritor está tentando enganá-lo, está tentando evitar que ele descubra a verdade antes do capítulo final. E essa é a graça do gênero.
 
A ficção científica produziu esse leitor capaz de aceitar ao pé da letra uma imagem metafórica e imaginar cenas reais a partir delas.
 
“Furioso, ele fuzilou o patrão com os olhos.”
 
“O horizonte estava rubro com o nascer do sol.”
 
“Naquela tarde, fui convidado a tomar chá e conversar sobre literatura com os imortais.”
 
“Desculpa não ter te ligado, ontem à noite deu um bug na minha cabeça.”
 
“Meu filho vive no mundo da lua.”
 
“Nossa vizinhança anda cheia de alienígenas.”
 
“Sinto que eu e você somos uma pessoa só.”
 
As possibilidades, como sempre, são infinitas.
 
 
 




terça-feira, 21 de setembro de 2021

4746) O poder do que a gente desconhece (21.9.2021)

 

(texto em tamil)

As coisas que a gente não entende têm um poder estranho sobre a nossa mente. Línguas estrangeiras, por exemplo. A experiência de ouvir alguém falando coisas que a gente não entende é inesquecível, e devemos agradecer ao cinema por nos proporcionar isso o tempo inteiro.
 
Me lembro da história do brasileiro rico que foi a Las Vegas e lá foi apresentado a Frank Sinatra.
 
“Você conversou com Sinatra?!...” perguntaram os amigos, na volta.
 
Ele: “Claro que sim”.
 
Os amigos: “E ele te falou o quê?”
 
Ele: “Não sei, estava sem aquelas letrinhas na barriga.”
 
Fazer as letrinhas-na-barriga ajuda a pagar os boletos de muita gente por aqui – e é uma mediação necessária para o Grande Mistério. Porque é mistério, sim, a fala que a gente não entende. Gosto quando estou vendo um filme falado numa língua vagamente familiar como francês ou inglês, e de repente aparece um personagem árabe ou turco que começa a dizer coisas com o protagonista, num tom amistoso, ou furibundo, ou conspiratório, ou debochado, ou impaciente...
 
A gente não sabe! Mas percebe a natureza das emoções que estão por trás daquela algaravia. O que torna (a meu ver) a algaravia como uma manifestação pura e direta de alguma divindade, de algum Poder que tem um significado e um mistério que me serão inacessíveis para sempre.
 
“E línguas como que de fogo tornaram-se visíveis... e se assentaram sobre a cabeça de cada um deles... e principiaram a falar em línguas diferentes...”
 
Para mim, isto era um simples monólogo surrealista, numa música de Gilberto Gil (“Objeto Semi-Identificado”, 1969), e só depois me avisaram que era um trecho da Bíblia referente ao fenômeno de Pentecostes. E seria este fenômeno a origem da expressão inglesa “speaking in tongues”, “falando em línguas diferentes”, também encarado como um fenômeno médico-psicológico em que uma pessoa entra numa espécie de transe, ou estado alterado de consciência, e começa a pronunciar sons que podem ser interpretados como uma língua estrangeira conhecida ou desconhecida.
 
Não devemos confundir isso com a capacidade de auto-sugestão que nos induz a atribuir significados a sons ou imagens surgidos aleatoriamente. Nada disso. Estou me referindo a coisas que têm significado real, sim, como os hieróglifos egípcios, que durante séculos fascinaram a humanidade – não somente pela beleza visual do seu traçado, mas pelo frisson de pensarmos que tudo aquilo tinha um significado, e esse significado se perdeu.
 
A Pedra de Roseta resgatou esse significado, e de certa forma a escrita egípcia se banalizou. O que era sagrado virou profano: qualquer professor de Egípcio de algum colégio de segundo grau em Paris é capaz de apontar o dedo e sair interpretando os baixo-relevos.
 
O que continua indecifrado, contudo, continua numinoso. Continua carregado de presságios, enigmas, potencialidades indescritíveis. Vemos a imagem de um texto escrito na língua tamil, e temos a angústia de estar vendo algo e não saber se é uma prece a Vishnu ou uma bula de remédio.
 
Em seu Curso de Literatura Inglesa (São Paulo: Martins Fontes, 2006) Jorge Luís Borges traça um retrato da época e do ambiente literário de onde brotou Samuel Taylor Coleridge, um dos seus poetas românticos preferidos. E assim ele descreve o pai do poeta, que era um pastor protestante no sul da Inglaterra:
 
O reverendo Coleridge foi pastor de um povoado rural e impressionava muito seus ouvintes porque costumava intercalar em seus sermões o que chamava “the immediate tongue to the Holy Ghost”, “a língua imediata do Espírito Santo”. Quer dizer, longas passagens em hebraico, que seus rústicos paroquianos não compreendiam, mas que veneravam ainda mais por isso mesmo. Quando o pai de Coleridge morreu, seus paroquianos sentiram certo desprezo por seu sucessor, porque ele não intercalava passagens ininteligíveis no idioma imediato do Espírito Santo.
(pág. 186; trad. Eduardo Brandão)
 
É tintim por tintim o mesmo episódio referido por Guimarães Rosa no famoso trecho das “palavras que têm canto e plumagem”, em Sagarana:
 
E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo (“Ara, todo o mundo entende...”) e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, “que tinham muito mais latim”...
(“São Marcos”)
 
Campinenses (e talvez os nordestinos em geral) devem se lembram de que era costume dizer, quando não se entendia algo: “Estou na missa....” 

Sinônimo de “estou voando”, de “não estou entendendo patavina”. Pela simples razão de que eram assim as missas totalmente em latim, antes do Concílio Vaticano II de 1962, que liberou o uso do português nos ritos católicos, o que teve como consequência imediata um incremento na compreensão e uma deflação na transcendência.
 

 
 
 




sábado, 18 de setembro de 2021

4745) Kafka no século 21 (18.9.2021)



 
A revista online “Prosa Verso e Arte” reproduz um depoimento de Jorge Luís Borges sobre a obra de Franz Kafka e a influência que ela teve sobre sua própria obra.
 
 
Já escrevi por aqui que Borges pode não ter sido o maior escritor de sua época, mas é possível que seja o maior leitor do século 20.  Suas qualidades como escritor brotam da maneira atenta, erudita mas descontraída, questionadora mas empática, com que ele lê os livros alheios, principalmente os clássicos. Com seus contemporâneos ele costumava ser ranheta, desdenhoso, hiper-exigente, às vezes ressentido – como o provam as anotações de Bioy Casares em seu quase cúbico Borges, 2006.


Borges observa um aspecto importante na obra de Kafka, a sua simplicidade com a linguagem. Diz ele que esbarrou na obra desse desconhecido autor tcheco quando estava estudando alemão, e descobriu que com um dicionário alemão-inglês dava conta de ler aqueles contos surpreendentes. As palavras eram palavras comuns. As situações é que eram fantásticas.
 
Borges diz:
 
O fato de que Kafka escrevia de maneira tão simples me chamou a atenção, já que eu mesmo podia entendê-lo, apesar de o movimento impressionista, tão importante nessa época, ter sido marcado, em geral, pelo barroco, que jogava com as infinitas possibilidades do idioma alemão. (...) Eu traduzi o livro de contos cujo primeiro título é ‘A Transformação’ e nunca soube por que todos decidiram chamá-lo de ‘A Metamorfose’. É um disparate, eu não sei quem teve a ideia de traduzir assim essa palavra do mais simples alemão. Quando trabalhei com a obra, o editor insistiu em deixá-la como está porque já era famosa e se vinculava a Kafka.


De fato, “metamorfose” é uma versão meio erudita de “transformação” (Verwandlung). Para mim, que não sei quase nada de alemão, não faz diferença.  Mas para algum leitor há de fazer, e esta é uma das muitas cascas de banana à espera de um tradutor apressado, como todos nós acabamos sendo mais cedo ou mais tarde.
 
Em qualquer idioma existem essas classes de sinônimos que eu, para meu consumo interno, chamo de “sinônimos plebeus” e “sinônimos chiques”. São palavras que querem dizer basicamente a mesma coisa, mas o fato de um personagem preferir uma delas à outra implica numa pequena sutileza psicológica que está sendo indicada ao leitor.
 
Por exemplo, se você vai a uma repartição ou um consultório, a recepcionista geralmente lhe pede para “aguardar” um pouco, e não para “esperar”. “Esperar” é um verbo comum, rasteiro, um verbo de sandália havaiana, qualquer brocoió usa. Mas “aguardar” é uma versão sapato-de-verniz da mesma idéia, e é por isso que as recepcionistas recebem instruções para falar assim – mesmo que o cliente esteja de bermuda e havaiana. É para mostrar que naquele ambiente fala-se um português diferenciado.
 
Secretárias dos escritórios de todo o Brasil não mandam uma carta, elas enviam uma carta. Elas não pedem, elas gostariam de solicitar. Elas não pagam, elas efetuam o pagamento. Esse tipo de linguagem de coque-amarrado acabou abrindo caminho, em décadas recentes (ah, como é divertido comparar décadas!) para o gerundismo, a mania de dizer que “nós vamos estar enviando”, etc.
 
Voltando a Kafka... Ou melhor, continuando nele – porque um dos temas centrais na obra de Kafka era a burocracia, a impessoalidade, a falta de empatia, a senoçãozice das pessoas dotadas de um minúsculo poder de decisão numa instância burocrática lá na esquina da Rua de São Nunca com a Avenida Já Era.


(desenhos de Kafka)
 
As pessoas em livros como O Processo, O Castelo e outros comportam-se muitas vezes como esses burocratinhas-do-birô-da-frente capazes de passar uma tarde inteira a dois metros de distância do Suplicante que espera debruçado no balcão e nem sequer erguem os olhos para ele, para não ter que perguntar: “O senhor deseja alguma coisa?...”
 
Borges faz uma outra observação, que não vou deixar passar em branco de jeito nenhum.
 
E quando Kafka faz referências é profético. O homem que está aprisionado por uma ordem, o homem contra o Estado, esse foi um de seus temas preferidos.
 
Kafka escreveu contra o Estado mas contra muito mais do que isto: escreveu contra a Hidra da qual o Estado é apenas uma das muitas cabeças, e nem por ser a maior (e já começa a não sê-lo) é a única visível. Kafka escreveu contra o poder das Organizações, dos Sistemas interligados de forças manipuladoras (e depredadoras) da Natureza física e da linguagem.
 
Críticos mais politizados do que eu diriam que o autor de Na Colônia Penal escreveu contra o complexo Industrial-Militar-Político-Financeiro-Tecnológico-Jurídico que, à força de uma proliferação de avatares neo-liberais e bilionários, tomou conta do mundo no século 20 e provavelmente asfixiará até a morte os Estados-Nações que o pariram.
 
Os Estados-Nações, no tempo de Kafka (ele morreu em 1924) ainda podiam ser vistos como Saturnos que devoravam os próprios filhos. Hoje, por não terem evoluído e se adaptado, são dinossauros decadentes, fagocitados pelas forças cegas e famintas das Corporações. Essas Corporações que cada Estado nacional incentivou, subvencionou, legalizou, protegeu, indenizou, sancionou, isentou e absolveu até o momento de pousar o pescoço no cepo para o machado.   


(C
yberpunk 2077
 
Neste aspecto, os legítimos sucessores da ficção de Kafka não são os parafraseadores de Kafka no mainstream, mas os cyberpunk da ficção científica (William Gibson, Bruce Sterling, Neal Stephenson, etc.) e os cultores do que James Wood chamou de “realismo histérico” (Don DeLillo, David Foster Wallace, etc.).
 
Julio Cortázar, que afirma nem ser tão influenciado assim pelo autor tcheco, admite:
 
Acho que a máquina do horror tem no campo do romance dois exemplos extraordinários. Um deles é O Processo, de Kafka. (...) Neste livro surge o caso do destino que vai se cumprindo inexoravelmente, passo a passo, sem que jamais se saiba a última linha, sem que se chegue jamais a saber quais eram as motivações que determinaram esse destino. Muitas vezes pensei, lendo esses casos típicos de desaparecidos e torturados na Argentina, que eles viveram exatamente O Processo de Kafka, porque em muitos casos eles foram detidos só por serem parentes de gente que tinha atuação política (eles mesmos não tinham atuação política, ou tinham de maneira muito parcial), e foram torturados, presos e muitos, executados. Essas pessoas, em cada etapa do seu destino, devem ter se perguntado quem era o responsável, de onde vinha aquele acúmulo de desgraças, e não puderam saber nunca, porque a única coisa que puderam conhecer foram seus torturadores, seus executores. Que, por sua vez, tampouco sabiam quem eram os chefes...
(Omar Prego, O Fascínio das Palavras, José Olympio, 1991, trad. Eric Nepomuceno)
 
O outro exemplo de Cortázar justapõe ao de Kafka é, previsivelmente, o 1984 de George Orwell.
 
Mas Kafka não bateu na América Latina apenas como o anunciador da “máquina do horror”. Borges (no depoimento citado acima) lembra que Kafka desejou queimar seus escritos, e o descreve como “...esse sonhador que não quis que seus sonhos fossem conhecidos”. É uma avaliação próxima à de J. G. Ballard, que dizia em 1986, comentando uma antologia de sonhos:
 
O típico sonho REM tem a estrutura narrativa linear de uma narrativa verbal; primeiro isto, depois isso, depois aquilo, onde os vários istos-e-aquilos têm alguma conexão temática perceptível entre si. Em outras palavras: a velha arte de contar histórias, com seu apelo imemorial e acesso imediato aos grandes mitos e lendas que pavimentam o solo de nossa psique individual. Nos domínios do sonho, Kafka é um autor contemporâneo, e atualizadíssimo. Não existe metaficcção pós-moderna nem espaço para o “nouveau roman” na hospedaria da noite.
(A User’s Guide to the Millenium – Essays and Reviews, New York, Picador, 1996; trad. BT)


Essa liberdade onírica seduziu também Gabriel Garcia Márquez, que lembra seus tempos de jornalista jovem e sem um vintém:
 
Um dos meus companheiros de quarto era Domingos Manuel Vega, um estudante de medicina que já era meu amigo desde Sucre e que compartilhava comigo a voracidade da leitura. (...) (Ele) chegou uma noite com três livros que acabava de comprar e me ofereceu um ao acaso, para ajudar-me a dormir. Desta vez, porém, deu-se o contrário: nunca mais tornei a dormir com a placidez de antes. O livro era “A Metamorfose” de Franz Kafka. (...)Eram livros misteriosos, cujos desfiladeiros não eram apenas diferentes, como muitas vezes eram contrários a tudo que eu conhecia até então. Não era necessário demonstrar os fatos, bastava que o autor os tivesse escrito para que tudo fosse verdade, sem mais provas do que o poder do seu talento e a autoridade de sua voz.
(Vivir para contarla, Bogotá, Norma, 2002; trad. BT)