sábado, 24 de julho de 2021

4727) O poder da imagem literária (24.7.2021)



("A Solidão do Cariri", de Flávio Tavares)

Estava trocando mensagens com o cineasta Marcus Vilar, eu no Rio, ele em João Pessoa. Toquei no assunto de mudança de residência, o transtorno, a trabalheira. Ele trouxe uma comparação típica da tradição oral: “Quando eu morava em Campina eu mudava tanto de endereço que quando chegava no quintal as galinhas levantavam os pés pra amarrar.” 
 
A linguagem popular é cheia dessas imagens, que eu considero literatura pura.
 
Claro que para muita gente literatura é alguma coisa escrita assim:
 
“Capítulo 1 – Quando o sol despontou no horizonte com as róseas radiações do alvorecer, a passarada pipilava em festa por todas as veredas do vergel, enquanto as gotas iridescentes de orvalho tremulavam na borda das folhas que as haviam recolhido ao rocio da madrugada...”
 
Cada um com sua literatura. A minha é aquela ali, das galinhas.
 
Ezra Pound via uma das riquezas expressivas da poesia (e eu vejo, por extensão, na prosa) no recurso da fanopéia, termo grego que eu traduzo aproximadamente por “criação de uma imagem”. A criação de uma imagem sensorial através de palavras.
 
“Sensorial” envolve os cinco sentidos e também uma outra coisa que os envolve, uma certa percepção gestáltica (=de conjunto) de uma situação. Aquilo que a gente percebe numa fração de segundo quando abre uma porta e “fotografa” uma cena.
 
O povo fala assim: “Fui pedir explicação a Fulano sobre ontem de noite, mas quando cheguei na casa dele e toquei no assunto ele ficou mais desconfiado do que cachorro em bagageiro de bicicleta”.
 
O que diz uma imagem como essa? É uma percepção não apenas sensorial, ou sociológica. É meio difícil decifrar sociologicamente o que se passa na mente de um cachorro. Mas parece haver uma certa telepatia mamífera, primordial, entre nós e essa rapaziada. Todas as vezes que eu vi um cachorro sendo levado no bagageiro de uma bicicleta vi que ele estava incomodado, pouco à vontade, amedrontado mas estóico, suportando aquilo sem uma percepção clara do por quê.
 
Ao contrário dos gatos, que são criaturas líquidas e quase imateriais, os cachorros são bichos sólidos, rígidos, que se acomodam com dificuldade até num tapete liso. Quanto mais no bagageiro de uma bicicleta em movimento!
 
É isso mesmo?  Não é?  Pergunte ao cachorro.
 
Chamo isso de imagem literária porque, diferentemente da descrição científica de um fenômeno (mesmo uma descrição “de Humanas”) é algo que depende da memória, da observação, da sensibilidade e da imaginação de quem registra e descreve.
 
Gente do povo não descreve as situações da vida de maneira científica, embora muitas vezes demonstre capacidade notável de observação, objetividade e síntese. Que seriam, em tese, as qualidades da boa observação científica. É uma ciência, mas uma ciência empírica, intuitiva, uma ciência do concreto. A ciência da descrição aguda, perceptiva, mas presa demais ao exemplo, uma “ciência do concreto” como Lévi-Strauss via em certos povos.
 
O valor dessas comparações está em que descrevem casos ou situações extremamente específicos, mas que todo leitor reconhece. (OK, nem todo – mas isso vale para toda imagem literária, sem exceção.)
 
O nordestino diz de vez em quando: “O técnico desse time está tão desorientado quanto cachorro que caiu da mudança”.
 
Todos nós conhecemos, de viver, de ver ou de ouvir falar, essas mudanças de pobre, complicadas, num caminhão velho de um primo, os móveis amarrados com cordas, as caixas de papelão sacolejando, e lá em cima um cachorro perdidão, olhando as calçadas que passam. Quando o caminhão dá um solavanco maior, ele cai lá de cima, se machuca, se atrapalha, o caminhão vai embora. E agora?
 
“Fulano está mais perdido do que cego em tiroteio”. Não precisa de muita imaginação para absorver uma imagem poética (sim, é uma imagem poética) de tamanho impacto.
 
Pode-se dizer que a linguagem popular se baseia em duas coisas: visualidade e exagero? “Fulano é tão avarento que se cair nágua morre afogado, pra não abrir a mão”.
 





quarta-feira, 21 de julho de 2021

4726) Poesia e sonoridade (21.7.2021)



(by Quino)

Nos primeiros anos da vida, aprendemos a ouvir e a falar.  Somente depois disso aprendemos a ler e a escrever.  Primeiro conhecemos as palavras como um conjunto de sons, e só depois as vemos como um conjunto de sinais gráficos. 
 
Mesmo que não se perceba, existe em nossa mente uma voz que pronuncia em voz baixa cada palavra que lemos, fazendo a conexão entre a linguagem escrita e a falada.
 
O som das palavras está para a poesia assim como a cor está para as artes plásticas. Existe. É um recurso que pode ser útil para nossa expressão. Não temos que pensar nele o tempo todo, mas sua existência precisa ser percebida. Quando usamos um recurso sem atentar para ele, estamos sujeitos a cometer erros, a produzir efeitos que não desejamos.  
 
Fazer poesia é, entre outras coisas, fazer combinações de sons, parecidos ou diferentes.  A rima é o exemplo mais conhecido.  Quando terminamos os versos repetindo os mesmos sons, isto cria no leitor uma expectativa.  Ao escutar um som novo no fim de um verso ele deduz que esse som deverá se repetir logo em seguida, mas não sabe ainda qual a palavra que será usada para repeti-lo.  Cabe ao poeta satisfazer essa expectativa através de uma palavra que repita o som e traga uma informação nova.  
 
Poetas pouco habilidosos usam rimas forçadas. Enfiam no poema uma palavra que não tinha nada a ver com nada, apenas para obedecer à obrigatoriedade da rima.  O ideal é cumprir a regra dando uma impressão de que ela não acarreta dificuldade, como se a rima fosse algo feito quase involuntariamente pelo poeta. A aparente facilidade surge porque o artista disfarça efeitos que na verdade deram-lhe um enorme trabalho para obter.
 
Tratar da sonoridade das palavras não é só assunto da poesia, mas da prosa de ficção, da não-ficção, do jornalismo...  
 
Digamos que estou descrevendo numa reportagem uma cena em que alguém pegou um documento e viu algo rabiscado sobre ele.  Digo: “As palavras estavam bem claras, ao lado da marca-dágua da página.” 
 
Há uma repetição involuntária de sons.  Posso dizer, muito melhor: “O texto estava bem visível no alto da folha, junto à marca-dágua”.   Mantenho o termo “marca-dágua”, que tem significado muito específico. O resto pode ser trocado por sinônimos, fazendo a frase soar melhor, e dando até uma idéia mais clara do que pretendo dizer. 


(Ascenso Ferreira, recitando)

A repetição de sons dá uma idéia de simetria, como a repetição de formas.  Como no poema “Os engenhos de minha terra” de Ascenso Ferreira:
 
Um trino... um trinado... um tropel de trovoada...
e a tropa e os tropeiros trotando na estrada.  (...)
 
O som de “tr”, assim repetido, nos faz ouvir, misturado ao conteúdo descritivo das palavras, a batida rítmica dos cascos dos cavalos dos tropeiros.
 
Em outro poema, “Vou danado pra Catende”, ele diz:
 
Mangabas maduras
mamões amarelos
mamões amarelos
que amostram, molengos
as mamas macias
pra a gente mamar... (...)
 
A descrição das frutas, insistindo na letra “m”, evoca a sensualidade do prazer oral, como se ele fizesse o leitor experimentar as frutas com os próprios lábios.


(Olavo Bilac)

Olavo Bilac (“Crepúsculo na Mata”) reproduz a riqueza das vozes dos animais da floresta:
 
O amor apresta o gozo e o sacrifício na ara:
guinchos, berros, zenir, silvar, ululos de ira,
ruflos, chilros, frufrus, balidos de ternura...  (...)
 
Não apenas o significado, mas os próprios sons das palavras escolhidas nos dão a idéia da variedade e da estranheza desses sons.

Há um divertido poema de Pablo Neruda, “Orégano”, em que ele descobre essa palavra e se deixa fascinar por ela. Sai pelas ruas bradando: “Orégano! Orégano!”. À sua passagem as pessoas se espantam, e os leões se ajoelham aos seus pés. Toda palavra nova que descobrimos é uma palavra mágica, capaz de gerar prodígios.
 
Guimarães Rosa, no conto “São Marcos” (em Sagarana, 1946), tem um longo trecho sobre a magia sonora das palavras, que segundo ele, numa expressão que se tornou famosa, “têm canto e plumagem”, ou seja, se impõem pela sua força melódica e pela vividez de sua sugestão visual. 
 
As palavras não se associam apenas pelo seu significado, mas também pelo som.  Muitas vezes o poeta escreve intuitivamente, usando a técnica de “palavra puxa palavra”, em que prevalece a melodia que elas criam entre si, mais do que o seu possível sentido lógico.  Nesses momentos a poesia afasta-se da prosa banal, afasta-se da linguagem cotidiana, passa a se organizar em termos que lembram os da música: sonoridade, ritmo, melodia, harmonização de sons.  Ganha uma dimensão que a linguagem comum não tem. 

Será isso um mero jogo de formas, de enfeites vazios?  Depende do poeta.  Ele pode inclusive usar esses sons para produzir no leitor, com mais intensidade, a sensação de reconhecimento de um contexto social. 


(estátua de Carlos Drummond, no Rio de Janeiro)

Em “Os materiais da vida”, Carlos Drummond diz:
 
Drls? Faço meu amor em vidrotil
nossos coitos serão de modernfold
até que a lança de interflex
vipax nos separe
em clavilux. (...) 
 
Que palavras são estas? Pouco importa.  O som delas nos traz imediatamente à memória os nomes de centenas de marcas de produtos, de materiais plásticos ou metálicos, de invólucros, de texturas. 
 
Ironizando o amor em tempos de tecnologia e comércio, o poeta multiplica as sílabas que são a cara da indústria, da publicidade, dos comerciais da TV.  Pode-se dizer que essas palavras têm seu significado determinado, antes de tudo, pelo seu próprio som.
Qualquer frase poética, qualquer verso que consideramos belo poderia ter sido escrito de muitas outras maneiras.  É bem possível que o poeta tenha escolhido aquelas palavras não apenas pelo sentido – inúmeras outras poderiam ter dito a mesma coisa – mas pelo seu som.
 
Fazer poesia é tentar o tempo inteiro escolher a palavra mais adequada entre todas as palavras possíveis.
 
 
 
(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, Ed. Segmento, São Paulo, julho 2008.)
 






domingo, 18 de julho de 2021

4725) Minhas canções: "Eu Vi a Máquina Voadora" (18.7.2021)



Conheci Silvério Pessoa lá pelos idos de Mil Novecentos e Cocada, quando ele era o vocalista da banda Cascabulho, e eles vieram se apresentar no Rio.
 
Creio que essa primeira vez foi lá no saudoso Ballroom, no Humaitá. Era uma casa de shows que a gente chamava afetuosamente “o Bauru”: um salão amplo, com dancing grande, muitas mesas, bom palco. Antigamente funcionou ali (não alcancei essa época) o “Oba Oba”, o famoso show de dançarinas mulatas de Osvaldo Sargentelli. 

Tempos depois, durante um ano inteiro, foi a sede das “Segundas Eletroacústicas” promovidas pela banda Cabruêra. Toda 2ª. feira eles faziam um show e traziam convidados. Eu cantei lá numa noite em que o outro convidado era B Negão, e sugeri que eles botassem no cartaz: “HOJE – B Branquelo e B Negão”.
 
Voltando ao Cascabulho: depois do show, fui ao camarim conversar com eles, porque não sabia muita coisa do repertório da banda e me surpreendi vendo Silvério desfiar um rosário inteiro de cocos de Jackson do Pandeiro. Ficamos amigos e alguns anos depois, tendo ele saído da banda e começado carreira solo, fui várias vezes ao estúdio Drum, em Laranjeiras, perto de onde eu morava, para assistir as gravações do disco de estréia, Bate o Mancá, com o repertório do grande Jacinto Silva.



Eu sou um compositor que de vez em quando canta, Silvério é um cantor que de vez em quando compõe. Talvez nem tão de-vez-em-quando assim, porque já me mostrou muitas melodias. Mas acho que o sujeito que canta bem, que tem a cancha e a malícia da recriação musical, tem um prazer especial em pegar uma música já feita, já famosa, virá-la pelo avesso e perguntar: “Que tal assim?...”, e a platéia fazer: “Uau”.
 
Vai conversa, vem papo, a gente se reencontrando no Recife, no Rio, na Paraíba; Silvério me fez uma homenagem (chega uma idade em que a gente recebe homenagens; é preciso estar preparado) usando num disco dele o título Cabeça Elétrica, Coração Acústico, que eu tinha usado num cordel de 1981, impresso na gráfica da Casa das Crianças, de Olinda, reduto de cantadores e de cordelistas mantido pelo saudoso Giuseppe Baccaro.




Silvério conta que na verdade me conheceu no palco antes de eu conhecê-lo, pois me viu cantando numa “calourada” da UFPE, a famosa festa pós-vestibular onde artistas se sucedem no palco cantando para um ginásio cheio de estudantes de chope em punho. Eu gostava de cantar nesses ambientes, porque se você sobe num palco sozinho com um violão e vê alguns milhares de pessoas eufóricas, precisa apenas de meia dúzia de músicas com letra provocativa, tonitruante e desembestada, e isso felizmente nunca me faltou.
 
Eis-senão-quando Silvério me manda uma música parcialmente letrada, querendo que eu a finalizasse. A idéia era colocar uma faixa com inserção de vozes e versos de cantadores de viola “de verdade”, e a canção tinha que evocar os estilos da Cantoria.
 
Ajeitei os versos, pegando as idéias que já tinha, escrevi mais alguns, pensamos junto na questão do refrão (que acabou ficando “Eu vi a máquina voadora!”). E lá se foi Silvério pro Recife, e meses depois fui eu, e entrando no estúdio da Luni ele me mostrou as fitas já gravadas. Ali estava Alceu Valença compartilhando os vocais! Pedi uma cadeira. Ali estava meu amigo Zé Vicente da Paraíba de viola em punho, cantando seus próprios versos inspirados pela canção. “E o que eu posso querer mais?”



(Zé Vicente da Paraíba)

A canção em si tem um pouco desse visionarismo nordestino high-tech, onde se misturam eletricidade e Tarô, entidades indígenas e objetos voadores não identificados, subterrâneos coloniais e raio laser. Um clima presente nos romances fantásticos de Luís Berto ou de Aldo Lopes, nas “mercadorias e futuro” de Lirinha, no cinema futurista da Zona da Mata.
 
 
*******
 
https://www.letras.mus.br/silverio-pessoa/386050/
 
 
Eu Vi a Máquina Voadora
(BT & Silvério Pessoa, 2005)
 
Zé Vicente:
Os heróis aviadores
ou sejam, aviadoras,
nessas máquinas voadoras,
pilotos e inventores;
mecânicos e projetores
com hidrogênio ou com gás
engenharia capaz
pra motores diferentes
cruzando várias correntes
das camadas siderais.
 
Eu vi a máquina voadora!!!
 
Saber que quem pensa não é a cabeça
por mais que pareça saber computar;
os nervos do corpo são cabos de modem
que sabem e podem sentir ou pensar.
 
Saber que um cachorro entende linguagem
que os seres humanos já nem sabem mais
que falta trabalho pra quem só trabalha
e tem muita metralha prá quem pede a paz…
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Saber que o olhar da criança colore
de imaginário o mundo real
e a curva do gume do fio do facão
tem o talhe da curva do canavial.
 
Saber que nem todos precisam de terra,
saber que nem todos sabem fazer pão…
E um verso vadio feito de repente
retrata pra sempre o que viu no clarão.
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Eu vi a máquina voadora!!!
 
Saber que os loucos e os visionários
são dicionários dos sonhos de Deus,
e as almas dos mortos na tribo dos índios
são discos luzindo nos céus europeus.
 
O flash da foto reflete na gota
de chuva no espinho do mandacaru,
e o brilho ilumina poetas que cantam
num pé de parede de Caruaru.
 
Ô Ô Ô Ô Ô...
 
Unindo os ponteiros da telepatia
e a voz invisível do computador
eu cruzo os espaços, eu viro energia
tesão de guitarra, trovão de tambor.
 
A mente se pluga num mundo de arquivos,
memórias binárias, visões digitais,
eletricidade transforma-se em vida
e os raios um dia serão animais.
 
Eu vi a Máquina Voadora!!!!
Eu vi a Máquina Voadora!!!!
 
 
 



quinta-feira, 15 de julho de 2021

4724) "Noites Brancas": de Dostoiévski a Visconti (15.7.2021)



Num famoso prefácio, Jorge Luís Borges chancelou a importância de La Invención de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, para a literatura imaginativa. A certa altura do texto, ele fazia um reparo um tanto irônico ao chamado romance psicológico. Borges defende neste prefácio a literatura que busca enredos inesperados, originais, reveladores. Ele achava, aparentemente, que as descobertas da literatura realista do século 19 estavam sendo repetidas muito passivamente pelos autores do século 20, e que isso era uma pena.
 
O romance psicológico (dizia ele) tende a ser amorfo.
 
“Os russos e seus discípulos demonstraram, até à saciedade, que ninguém é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade...”
(A Máquina Fantástica, A. B. Casares; Rio, Expressão e Cultura, 1974, trad. Vera Neves Pedroso).
 
De fato. Não há nada que o coração humano seja capaz de sentir que a mente humana não consiga racionalizar na prosa de ficção, até porque o coração segue roteiros hereditários (um bilhão de histórias de amor o comprovam) e uma mente boa, com boa pena e bom tinteiro, faz o que quer.
 
Suicidas por felicidade? Eu já tinha lido o ensaio de Edmund Wilson sobre O Castelo de Axel, em que o jovem e rico casal, de inexcedível beleza, incomparável inteligência e inimitável bom-gosto artístico recusa-se a dominar o mundo e decide abrir mão dele. “Viver?!”, diz a frase famosa, “Os nossos servos o farão por nós!”. E se matam!
 
De assassinos por benevolência a vida real está cheia; a literatura vai apenas dois passos atrás, secretariando as peripécias. Mas não se mata cavalo? 

Delatores por fervor ou por humildade não são difíceis de explicar. O próprio Borges produziu suas “Três Versões de Judas”; e num artigo na revista Sur (# 11, agosto de 1935), ele comenta o filme de John Ford, O Delator (“The Informer”, 1935), em que um irlandês denuncia um colega do IRA por uma recompensa mesquinha e pelas curvas de uma compatriota. Diz Borges, sempre um gourmet de sutilezas: “A infâmia cometida por distração, por mera brutalidade do infame, teria impressionado mais, artisticamente”.
 
Quando cheguei nas pessoas que se amam a ponto de se separarem para sempre, a primeira lembrança foi de uma leitura adolescente do conto “Noites Brancas” (“Belye nochi”, 1848) de Dostoiévski, na velha coleção encadernada em vermelho que meu pai comprou quando eu teria uns dez anos e cismei que Crime e Castigo era algo na linha de O Assassinato de Roger Ackroyd


“Noites Brancas” é a história de um rapaz sonhador que gosta de passear sozinho à noite pelas ruas desertas de São Petersburgo. Num certo sentido, é um contemporâneo às avessas do flâneur de Baudelaire, porque este último procurava o bulício, o burburinho, o espetáculo humano, enquanto que o narrador de Dostoiévski é um introspectivo, tímido, que na solidão das avenidas desertas se sente confortável como um peixe na água.
 
Caminhando a sós durante a noite, o narrador (que não tem nome) encontra uma moça chorando. Começam a conversar, simpatizam recatadamente um com o outro. Passam a marcar encontro, repetidamente, naquelas imediações, pois não moram muito longe, mas um não pode ir à casa do outro. Ele conta sua vida a ela, ela conta sua vida a ele. Ficamos sabendo que ela, que se chama Nastenka, tem uma paixão antiga, por um homem mais velho, culto, cosmopolita, que lhe declarou amor e viajou, ficando de voltar dali a um ano para casar com ela. Foi a ausência dele no compromisso marcado que a fez chorar.
 
Como o conto é narrado na primeira pessoa, temos acesso direto apenas aos pensamentos do narrador. Ele se apaixona por Nastenka, e ela por ele. E numa dessas noites, quando estão no auge dessa paixão inocente (porque não fazem nada mais do que passear pelas ruas), o outro namorado aparece. Ela o vê na rua. Corre para os braços dele. Volta. Dá um beijo de despedida no narrador. Vai embora para sempre com o outro.
 
No dia seguinte, ela lhe manda um bilhete dizendo que o ama, sim, mas ama muito mais o outro, e que pena que os dois não sejam um só. E o narrador termina comentando que na véspera chegou a ser feliz por um momento, acreditando que ela seria sua, e conclui: “Meu Deus! Um momento pleno de felicidade! Será que isso é pouco para preencher uma vida humana?”.


(Livorno)

O conto foi adaptado para o cinema, com as necessárias modificações, por Luchino Visconti, em Le Notti Bianche (1957), com Marcello Mastroianni e Maria Schell. Visconti transpõe a ação para a Itália, para Livorno, cidade recriada em estúdio por um trabalho cenográfico incrível. Fala-se muito nos cenários artificiais do Expressionismo Alemão, em clássicos como O Gabinete do Dr. Caligari, Fausto e outros. Pois o filme de Visconti acontece num mundo que parece feito de papel-machê, um palco de teatro cheio de gessos e isopores pintados, que magicamente se desdobra como um livro pop-up toda vez que eles dobram uma esquina, atravessam uma pontezinha, cruzam um umbral.
 
Gosto de ver filmes em cenários construídos que guardam apenas um mínimo de verossimilhança urbana (ruas onde passam ônibus ou carros, p. ex.) e funcionam como um vasto bolo-de-noiva cheio de passagens e aberturas por onde os personagens se deslocam, conversando, meio que inadvertidos diante daquela imitação de cidade.

 
Uma cidade que não é tão irrealista assim. O cinema italiano do pós-guerra é todo feito de ruínas. Paredes incompletas, casas com uma banda arrancada, muros com passagens abertas à bruta; e muitos, muitos terrenos baldios, vazios, extensos, no meio de um bairro com muita gente e tráfego... 

É preciso um certo distanciamento e visão retrospectiva para entender que dez anos atrás, naquele terreno devoluto, havia prédios, casarões, edifícios onde caíram bombas, onde lavrou o fogo, e onde, por fim, os tratores vieram e limparam tudo. A cidade varreu para longe o próprio entulho, e recomeçou.
 
Le Notti Bianche guarda por um lado aquela urbanização medieval que toda cidade italiana tem, seus bequinhos tortuosos, as calçadas que mudam de nível de dez em dez metros, as pequenas arcadas que dão acesso a ruelas laterais, alguns degraus que sobem, outros degraus que descem, ruas que fazem voltas e ziguezagues porque cada casa nova, feita ali há mil anos, ia entortando a rua em outra direção.


E em cima disso se construiu esse perfil pós-guerra, ruínas com fogueiras acesas, paredes derreadas onde dorme gente enrolada em mantas, canais com uma água oleosa e lenta onde os namorados deslizam seu barquinho. 


Visconti pega uma das histórias mais românticas, mais afetivas, mais lovistóri que Dostoiévski escreveu, e a transporta para um ambiente onde nosso olhar não distingue direito – por entre tanta névoa, tanto cinza, tanto halo luminoso, tanto reflexo – o que é real e o que está sendo visto apenas pelo casal de namorados. Não duvidaria se me dissessem que Francis Coppola viu um dia esse filme e começou nesse momento a imaginar o que se tornaria One From the Heart.

 
Cenografia (Mario Chiari) e fotografia (Giuseppe Rottuno) são as melhores coisas deste filme, embora o casal de atores se comporte com um encantamento encabulado de ponta a ponta da narrativa, Mastroianni com sua mistura de intensidade e finura, Maria Schell com um sorriso luminoso, sorriso tão insistente que acaba nos revelando o quanto a personagem está nervosa. O francês Jean Marais, com seu porte leonino e inexpressivo, aparece no papel do desmancha-prazeres.


A música é de Nino Rotta, e é bela, mas seu melhor momento é quando Marcello e Maria vão a um café e há uma longa cena de música e dança, que começa com “Mulher Rendeira” (ecos do sucesso de O Cangaceiro em Cannes, poucos anos antes); depois, um rock sacudido e coreográfico (indício da invasão norte-americana do pós-guerra) arranca o casal da mesa e os dois se soltam no salão; e a cena termina com mais uma canção dolente, de dançar agarradinho. Uma sequência se poucos diálogos onde o casal passa por climas diferentes e sucessivos, energizados pela canção “diegética” com que o mundo os assalta.
 
O filme está disponível (legendado) no YouTube:




"O Cangaceiro" (="Mulher Rendeira"), creditado, tal como na gravação original do filme homônimo, a Zé do Norte (Alfredo Ricardo do Nascimento)

 







segunda-feira, 12 de julho de 2021

4723) O realismo é desnecessário? (12.7.2021)




Digamos que eu sou um professor de Matemática do 1º. grau e estou explicando algumas coisas básicas de percentagem para meus alunos. Depois de explicar como aquilo funciona, eu proponho um problema.

 

Joãozinho recebeu dez reais dados por sua mãe. Deu 40% do que havia recebido a Verônica. Do que lhe sobrou, deu 50% a Pedro, e 50% a Maria. Quantos reais receberam Verônica, Pedro e Maria?

 

Parece um problema fácil, mas nem tanto assim. Eu já vi figurão questionar um assessor que disse: “Doutor, eles disseram que dos 25% restantes eles ficam com 50%”, e o figurão dizendo, “Ô cavalgadura, como é que você pode tirar 50 onde só tem 25?”.  No Brasil é mais fácil acabar com a corrupção do que com a burrice. 

 

Voltemos às percentagens. Eu poderia ter proposto o mesmíssimo problema acima em outros termos. Por exemplo:

 

Joãozinho mora numa vila operária com a mãe, os irmãos e a avó. Eles moram lá mas estão sendo despejados porque quado o pai de Joãozinho morreu eles perderam o direito de morar nessa casa, que pelo contrato deve ser destinada aos operários da fábrica local. A mãe de Joãozinho costura para fora e quando recebe uma grana extra ela dá ao garoto para suas pequenas despesas. Naquele sábado, foi isso que aconteceu, porque ela conseguiu vender dez casaquinhos de lã para a Cooperativa do bairro, e deu 10 reais a Joãozinho. Ele resolveu usar aquele dinheiro para pagar dívidas com seus colegas, porque o pai sempre lhe ensinou a saldar primeiro as dívidas e só depois gastar com diversão. Joãozinho usou 40% do que havia recebido para pagar a Verônica, a filha da vizinha, duas revistas usadas que ela lhe vendera, com a condição de pagar assim que pegasse em dinheiro. De modo que ele correu logo na casa dela e deixou com a mãe dela as notas bem dobradinhas num envelope, junto com um bilhete. Em seguida, contou o dinheiro que lhe restava e resolveu dar 50% daquele total a Pedro, que lhe pagara um sorvete na véspera; e voltando para casa chamou sua irmã Maria e lhe deu os outros 50%, para ajudar às economias que ela guardava num cofrinho.

 

Observem que o problema matemático é rigorosamente o mesmo, e até os nomes dos respectivos personagens foram mantidos.

 

Se um professor de Matemática ler esses exemplos provavelmente dirá: “OK, entendi, mas o primeiro problema está muito mais adequado. O segundo está até interessante, tem uma historinha até realista; mas está cheio de detalhes que só fazem atrapalhar a visão do problema. Esses detalhes desviam nossa atenção do verdadeiro problema a ser resolvido.”

 

Pois bem: este exemplo meio desajeitado tenta explicar uma pendenga de mais de um século entre dois tipos de literatura: a literatura de mistério detetivesco e o romance realista.

 

A literatura de mistério detetivesco (também chamada literatura policial, criminal, dedutiva, etc., por causa de suas muitas ramificações) propõe um problema muito claro ao leitor, dá-lhe os indícios necessários e o desafia a resolver sozinho o enigma sem esperar pelas páginas finais, onde o detetive dá a resposta.

 

São mentalidades diferentes. Ao detetive, e ao escritor de romance policial, só interessam os dados do problema. Daí o fato de que os “decálogos” dessa literatura condenarem a interferência de envolvimentos amorosos, agitações políticas, críticas sociais, todos esses elementos da vida real que só fazem turvar e atrapalhar o enunciado do problema.

 

Conan Doyle dá um exemplo involuntário disso, num conto pouco conhecido dos aventuras de Sherlock Holmes (“The Adventure of the Retired Colourman”, 1926). O dr. Watson foi encarregado por Holmes de ir a um bairro distante examinar a casa do cliente, e volta mais tarde com seu relatório:

 

 – A casa de Mr. Josias Amberley chama-se ‘Sossego’,  – expliquei. – Penso que havia de lhe interessar, Holmes. É como se um patrício caído na pobreza fosse morar na companhia de seus inferiores.  Você conhece o arrabalde, as monótonas ruas com suas casas de tijolo, as cansativas estradas suburbanas.  Bem no centro delas, uma ilhota de antiga cultura e conforto, fica essa velha casa, rodeada por um muro alto de tijolo cozido ao sol, ao qual os líquens em profusão e o musgo que o encima emprestam um aspecto especial, muro esse...

-- Basta de poesia, Watson – disse Holmes com severidade. – Já sei que há um muro alto de tijolo.

(“Mr. Josias Amberley”, em Histórias de Sherlock Holmes, trad. Agenor Soares de Moura)

 

Watson olha para tudo com olhos que não direi de médico, mas de um londrino comum, constatando as diferenças sociais que se exprimem no urbanismo e na arquitetura, tentando através do bairro e da aparência da casa deduzir algo sobre o suspeito. Holmes vai direto ao ponto, e o leitor não se surpreende quando descobre, mais tarde, que Holmes pulou o muro e revistou a casa do cliente, do qual suspeitou desde o início.

 

Eu diria que a grande evolução da literatura policial na segunda metade do século 20 foi a gradual mistura entre as exigências da história policial clássica (enredo, mistério, concatenação precisa, pistas, racionalização do problema, etc.) e as exigências do romance mainstream clássico (verossimilhança psicológica, verossimilhança na descrição de ambientes, vida doméstica, vida social, etc.).

 

Os exemplos citados no início, sobre Joãozinho e seus 10 reais, são exemplos extremos. É claro que se o interesse é de ilustrar uma questão meramente matemática, a primeira formulação, mais curta, é a ideal, pois nada deve desviar a atenção do aluno para a questão numérica.

 

Se o interesse do autor é criar um mistério do tipo lógico-dedutivo, ele pode resumir esse mistério em meia dúzia de páginas. Não há necessidade de descrever a mansão, nem a vizinhança, nem a cidade, nem a aparência física das pessoas, nem transcrever seus diálogos sobre outros assuntos... O mistério detetivesco, reduzido a si mesmo, cabe na meia dúzia de páginas daqueles enigmas-de-revista, tipo “Você é o Sherlock!”.

 

Mas – aqui vem o grande MAS – se o interesse é contar uma história de ficção, mesmo que seja uma ficção policial, é preciso lembrar que o compromisso de “contar uma história” está no prato oposto da balança, e exige, sim, a criação de um ambiente físico, um ambiente social, um ambiente psicológico.

 

Seria injusto dizer que os autores do romance policial clássico só escreviam “personagens de papelão” e só repetiam clichês psicológicos. É verdade que Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, John Dickson Carr e outros nem sempre estão “no topo de sua forma”, e aqui-acolá a gente pega um livro meio que escrito no piloto automático. Mas os melhores livros deles mostram não somente sua engenhosidade na invenção de um crime complexo e no processo dedutivo que o esclarece, mas na descrição de um ambiente social, principalmente naquela Inglaterra de papéis sociais tão esperados e previsíveis que bastam dois traços para definir um personagem.

 

E mostram também o entrechoque complexo de temperamentos, personalidades, imposturas, dissimulações, em que Agatha Christie era mestra, e que fez Raymond Chandler queixar-se mais de uma vez que ela falsificava os personagens – apresentava-os como sendo de tal ou tal maneira, e no final, por conveniência do enredo, mostrava que eram lobos em pele de cordeiro, ou o contrário disso.

 

O enigma detetivesco e o romance realista eram, cem anos atrás, dois extremos de uma escala aparentemente irredutível. O romance policial de hoje é o resultado de cem anos de adaptação entre os dois, mostrando que essa coexistência não é impossível. 



sexta-feira, 9 de julho de 2021

4722) Antologias policiais brasileiras (9.7.2021)




Numa “live” recente que fiz sobre literatura policial, recebi um pedido que não soube responder na hora, feito por Roberto Rocha, de Campina Grande. Ele queria saber sobre antologias brasileiras de contos policiais, visto que era exatamente o tipo de livro que eu estava acabando de lançar: Crimes Impossíveis, uma seleção de dez contos clássicos de mistério.
 
Fiquei de responder depois e é até melhor porque a resposta sai mais completa, mais detalhada e mais útil. Estou colocando alguns livros obscuros que somente em sebo podem ser obtidos, mas tenho a obrigação de citá-los porque foram importantes na minha formação como leitor. Não é apenas gratidão sentimental. É uma indicação, para os que se interessam pelo assunto, do que era o mercado editorial brasileiro na época em que me formei como leitor criança e adolescente – o final da década de 1950 e a década de 1960 por inteiro.
 
E é engraçado, mas não lembro de muitas antologias brasileiras de contos policiais. É uma pena. A função da antologia é revelar autores. O leitor compra um livro onde aparecem 15 autores diferentes. Cinco ele já conhece, são seus ídolos, e foi por causa destes que ele levou para casa os outros. Chegando em casa, dá-se o milagre. Ele descobre mais uma meia dúzia de futuros ídolos, e sua vida de leitor nunca mais será a mesma.
 
Foi provavelmente o que se deu comigo por volta dos dez anos quando comprei esta beleza de livro da Editora Cultrix, que na época pôs no mercado brasileiro dezenas de antologias da melhor qualidade (não vejo nada parecido em nosso século 21).


Maravilhas do Conto Policial teve introdução e seleção (e provavelmente tradução) do grande José Paulo Paes, e foi organizada por Fernando Correia da Silva. Durante anos eu sabia de cor trechos inteiros da introdução de JPP, com quem, depois de adulto, cheguei a trocar algumas cartas.
 
Ao comprar o livro eu já era leitor de Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Agatha Christie, Edgar Wallace. Quando o li, descobri, para o resto da minha vida, Dashiell Hammett, Jacques Futrelle, G. K. Chesterton e Ellery Queen, além de outros também importantes. E nos Crimes Impossíveis prestei uma homenagem indireta a meu livrinho fundador, incluindo os contos de Poe e Futrelle. (E numa antologia que fiz antes, Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, republiquei o conto de Chesterton, “O Esqueleto sem Cabeça”/”A Honra de Israel Gow”).
 
Outra editora que fez muuuito pelo gênero policial foi a Vecchi, do Rio de Janeiro. Além de publicar a série completa de Arsène Lupin, ela editou as aventuras de Charlie Chan (escritas por Earl Derr Biggers) e muitos outros. Com a marca Os Mais Belos Contos... a Vecchi  publicou também muitas antologia no campo do terror e do fantástico.

 
Os Mais Belos Contos Policiais dos mais Famosos Autores é outro volume que até hoje guardo comigo (não o mesmo exemplar, claro); minha cópia é da 3ª. edição, de 1955. Aqui há alguns contos clássicos: “Cante uma canção de seis pence” de Agatha Christie, “A porta e o pinheiro” de R. L. Stevenson (na verdade um trecho extraído de um romance, uma narrativa independente da trama principal), “No alto da torre” de Maurice Leblanc (uma aventura de Arsène Lupin) e “O marinheiro de Amsterdam” de Guillaume Apollinaire. Além destes, há contos de gente como Sax Rohmer, Conan Doyle, Edgar Wallace, e uma porção de autores obscuros cujos nomes desconheço até hoje.


Não é propriamente uma antologia, mas é aquilo que as contracapas chamam de “uma constelação de grandes estrelas de nossa literatura”. O Mistério dos MMM (1964) é uma experiência brasileira de narrativa “round robin”, onde um autor escreve o primeiro capítulo de um romance, passa para outro que escreve o segundo, daí vai para mais um que escreve o terceiro, e por aí vai.
 
O Mistério dos MMM, idealizado por João Condé, teve seus capítulos publicados semanalmente na revista O Cruzeiro, e depois saiu em forma de livro. Os capítulos foram publicados nesta ordem: Viriato Corrêa, Dinah Silveira de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé, João Guimarães Rosa, Antonio Callado, Orígenes Lessa, com o último capítulo cabendo a Rachel de Queiroz.
 
Comentei o livro com mais detalhes aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2014/08/3577-o-misterio-dos-mmm-1482014.html



Obras Primas do Conto Policial (Ed. Martins, 1960) é uma antologia que já tive várias vezes e me desfiz várias vezes – toda vez que mudo de casa ou de cidade, metade das minhas bibliotecas vai para o sebo. Tem uma boa seleção de contos, e entre eles lembro de pelo menos dois clássicos: “O Sorriso da Gioconda”, uma rara história de Aldous Huxley que pode ser incluída no gênero, e o clássico de suspense “As Mãos do Sr. Ottermole”, um conto que revela o nome do assassino já no título mas mantém o mistério até o final.

 
Tem também as antologias organizadas e escritas por brasileiros. Não são muitas, porque ao que parece o gênero policial em nosso país se manifesta mais através do romance do que do conto. Em todo caso, o infatigável e olho-vivíssimo Flávio Moreira da Costa, organizador de muitas excelentes coletâneas, produziu esta Crime Feito em Casa (Record, 2006), reunindo contos de autores nacionais.
 
Quando um gênero literário é definido “lá fora”, a partir de exemplos inventados em outros países, é difícil adaptar a ele histórias brasileiras que foram escritas sem esse propósito. “O Enfermeiro”, de Machado de Assis (em Várias Histórias, 1904) é sem dúvida uma história de crime, ainda que um crime meio involuntário, e somente o desejo de preencher uma antologia me levaria a incluí-lo (o que aliás faria com a mesma presteza do mestre Flávio).
 
Mais importante do que Machado para nossa incipiente literatura do crime e da investigação são os três volumas de contos de Luiz Lopes Coelho (1911-1975): A Morte no Envelope (1957), O Homem que Matava Quadros (1961) e A idéia de matar Belina (1968). Depois dele, vieram outros igualmente competentes como Marcos Rey, Victor Giudice, Marçal Aquino, todos presentes nesta seleção.
 
 







terça-feira, 6 de julho de 2021

4721) "A Morte em seu Jardim" (6.7.2021)



Olha que beleza de tradução para o título do filme de Luís Buñuel La Mort En Ce Jardin (1956). Os catadores de lêndeas me enviarão telegramas expressos, caríssimos, informando que gramaticalmente deveria ser “A morte neste jardim”. Acontece que no filme, que acabo de ver pela primeira vez, tem muita morte, e jardim nenhum: é só um enfeite poético.
 
É um dos filmes mais obscuros de Luís Buñuel, e sempre despertou minha curiosidade por ser sua única colaboração com outro dos meus autores favoritos, Raymond Queneau, que, alguns anos antes dele, fez parte do movimento surrealista parisiense dos anos 1920.  
 
Queneau saiu da França e passou duas semanas no México com Don Luís, colaborando no roteiro. Buñuel, em suas memórias, tem uma recordação das mais simpáticas de seu trabalho junto ao “pai de Zazie”. O roteiro que acabou nas mãos de Queneau tinha sido oferecido a Jean Genêt, o que diz bem da loteria de idéias que é o cinema profissional.
 

(Buñuel + Queneau) 
 
O filme tem duas metades tão distintas quando um Lado A e um Lado B: a Vila e a Floresta.
 
Na primeira, vemos uma área de mineração de diamantes onde um governo latino-americano autoritário oprime os mineiros e sufoca suas rebeliões desorganizadas. Por entre greves, revoltas, tiroteios, fuzilamentos, a força das circunstâncias forma um grupo de pessoas que fogem do exército.
 
O grupo tem Shark, um aventureiro cheio de recursos (Georges Marchal); Djin, uma prostituta bonitona e enganadora (Simone Signoret); Castin, um garimpeiro que está juntando diamantes para montar um restaurante quando voltar à França (Charles Vanel); sua filha Maria, bonita, surda e muda, protegida o tempo inteiro pelo pai (Michele Girardon); e o jovem e idealista Padre Lizzardi (Michel Piccoli).



Na segunda parte, esse grupo em fuga se perde na floresta, perseguido pelas tropas (eles tinham explodido um quartel, matando vários soldados), e começa a ocorrer dentro dele um jogo de poder, de ameaças, de traições, enquanto eles tentam alcançar a fronteira, ou pelo menos um rio que possam cruzar com alguma balsa improvisada..
 
Existe a crise social que coloca de um lado governo, empresas mineradoras e exército, e do outro os trabalhadores e os “independentes” em geral, como o padre e a prostituta. Tipicamente de Buñuel, não existe nenhum personagem que possamos ver como herói. Mesmo os que executam gestos nobres têm mais de uma motivação. Buñuel é do tipo que aceita a maldade humana como um dado obrigatório da realidade, mas desconfia sempre da bondade.
 
Em termos da obra do diretor, a primeira metade do filme, com suas tensões sociais entre patrões e empregados, se assemelha muito ao filme que ele fez imediatamente antes, Cela s’appelle l’aurore (1955), enquanto na segunda, com o grupo perdido na jângal amazônica, há elementos de Robinson Crusoe (1952) e do Anjo Exterminador (1962), em que um grupo isolado da civilização reverte lentamente à barbárie. As cenas de tiroteio urbano que encerram o Anjo, aliás, parecem tiradas da parte inicial deste filme.



Um dos prazeres de quem vê um filme de Buñuel, mesmo os que ele fez de maneira mais indiferente, no México, é descobrir aqui e acolá as imagens buñuelescas, que lembram o surrealismo.
 
Uma das mais fortes deste filme é a imagem da cobra que é morta e comida pelos fugitivos, quando estão a ponto de morrer de fome. Buñuel mostra uma imagem da pele vazia da cobra, depois do repasto, coberta por uma colônia fervilhante de formigas vermelhas.


Na fuga, eles encontram os restos de um avião caído na jângal. Encontram comida e bebida (champanhe quente, bebida no meio dos mosquitos). E roupas. É quando vemos Simone Signoret, que até então estava enlameada, desgrenhada, roupa em farrapos, surgir com vestido negro decotado, vestido de noite, coberta de jóias e diamantes achadas entre os defuntos da aeronave. Esta cena (e seu desfecho) é uma das mais buñuelescas do filme inteiro.
 
Em suas memórias (Meu Último Suspiro) Buñuel recorda elogiosamente uma pequena cena escrita por Raymond Queneau, que infelizmente “dançou” na montagem final. Djin, a prostituta, vai fazer compras no armazém. Pede isso, aquilo, e uma barra de sabão. Nesse instante, recebem a notícia de que um batalhão do exército está chegando à vila, para sufocar a rebelião. E ela diz: “Não, peraí, me dá seis barras.”  Com a vila cheia de soldados, claro, o trabalho vai aumentar.



A relação “tapas e beijos” entre ela e o aventureiro Shark me lembrou a dos personagens de Julie Christie e Warren Beatty no McCabe and Mrs. Miller (1971) de Robert Altman, que vi dias atrás. É a atração-com-atrito entre homens e mulheres explorados, calejados, meio ingênuos, meio canalhas. Personagens complexos, como os que a gente encontra em qualquer zona do baixo meretrício; muito além dos bons-e-maus do folhetim e dos dramas “sociais” com intenções doutrinárias.
 
A certa altura, um personagem começa a queimar cartões postais para alimentar a precária fogueira que eles acendem no meio da floresta; um cartão-postal de Paris à noite se anima, vemos as luzes piscando, os faróis dos carros em movimento. 

E no instante seguinte lá vai o postal para o fogo. Como a coroa de espinhos em Viridiana (1961), como o violoncelo em O Anjo Exterminador (1962). Simbolismo da civilização sendo destruída pela barbárie? Buñuel dava de ombros para o simbolismo. As imagens dele iam direto ao inconsciente coletivo. Todo “simbolismo” é racionalização a posteriori, é tentativa de domesticação do relâmpago que nos inquietou.


Alguns críticos dizem que este filme é um dos menos interessantes de Buñuel. Como tantos outros de sua fase mexicana, é um filme de ação constante, narrativa bem encadeada, personagens que suscitam um permanente interesse. Falta-lhe talvez o anarquismo e o niilismo dos seus grandes filmes surrealistas.
 
Buñuel recorda em suas memórias:
 
Durante a rodagem de La Mort En Ce Jardin, junto ao lago de Catemaco, o chefe da polícia local, que limpara vigorosamente toda a região, ao ver que o ator francês Georges Marchal gostava de armas e de tiro, convidou-o, como se tratasse de algo perfeitamente natural, para uma caça ao homem. Era preciso ir no encalço dum assassino conhecido. Marchal recusou com horror. Algumas horas mais tarde, vimos os policiais passarem e o chefe informou-nos negligentemente que o assunto já estava encerrado.
(Luís Buñuel, O Meu Último Suspiro, Lisboa, Distri Editora, trad. Maria Helena Santos; p. 228)
 
André Breton tinha razão; o surrealismo é apenas uma região onde o real e o fantástico deixam de ser percebidos como opostos.
 
Na última cena do filme, os dois únicos sobreviventes do grupo emergem da floresta e avistam o lago, em cuja margem oposta está o Brasil. É o seu caminho de fuga. Um cínico pode vir a considerá-lo um dia o final mais trágico em toda a filmografia de Luís Buñuel.