sexta-feira, 5 de maio de 2017

4232) As Formas Simples (5.5.2017)



Surfando pelos saites de revistas literárias encontrei um artigo da Los Angeles Review of Books, assinado por Marta Figlerowicz, em que ela assinala e comenta o fato de somente agora, 87 anos após sua publicação original em 1930, ter saído a primeira tradução para o inglês do livro Formas Simples de André Jolles (tradução de Peter J. Schwartz, apresentação de Fredric Jameson).

Formas Simples saiu no Brasil nos anos 1970, pela Editora Cultrix, em tradução de Álvaro Cabral. É um livro em que o autor estuda aquilo que poderíamos chamar de gêneros literários primitivos (no sentido cronológico, não como juízo de valor), ou as formas de contar histórias (e de compactar significados) em fórmulas verbais de pequena extensão.

As “formas simples” estudadas por Jolles eram: a Legenda, a Saga, o Mito, a Adivinha, o Ditado, o Caso, o Memorável, o Conto, o Chiste.

Comentários: “Legenda” me parece ser o mesmo que lenda. “Adivinha” é o que no Nordeste chamamos de “adivinhação”, a velha fórmula do “O que é, o que é?”.  O Ditado me parece ser um termo abrangente que inclui provérbios, aforismos, anexins, etc.  O “Caso” é o que por distorção fonética grande parte do Brasil chama de “cáuso”, aqueles pequenos episódios exemplares ou pitorescos, típicos das zonas rurais.

Acho que o “Conto” não corresponde ao gênero literário a que damos o mesmo nome, porque as formas estudadas por Jolles são formas anônimas, e o nosso “conto” é uma produção individual, assinada, autoral.  O “Chiste” (“joke” em inglês) é sempre um termo impreciso, que pode corresponder a “piada”, “anedota” ou ao mero trocadilho (“pun”), como foi estudado por Freud em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente.

Senti uma ponta de vaidade quando vi esse artigo da LARB, pensando que desta vez chegamos antes dos EUA. Porque a gente lia esse livro de Jolles em Campina Grande nos anos 1970 e eu sempre imaginei que ele fosse um desses clássicos como a Morfologia do Conto de Vladimir Propp. Um desses livros que todo mundo conhece, mesmo que nem todo mundo tenha lido.

O estruturalismo campeou na teoria brasileira dessa época em diante, para o bem e para o mal. Trouxe um monte de coisas boas, porque ia direto ao texto, às unidades básicas do texto, à matéria-prima verbal das histórias. Por outro lado, avançou demais, e cegamente, nessa direção, chegando a um ponto em que a gente era induzido a pensar que o mérito literário do poema tal de Manuel Bandeira se devia à predominância de consoantes fricativas e orações subordinadas.

Como eu sou mais escritor do que crítico, prefiro raciocinar em termos de exemplos, em vez de fórmulas. (Embora a invenção de fórmulas seja um dos meus passatempos mais deleitáveis.)  Dos livros dessa época guardo também a lembrança de O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss, onde ele falava da “ciência do concreto” de alguns povos ditos primitivos.

A literatura, para mim, é uma ciência do concreto: conta-se a história de uma pessoa para que um milhão de pessoas encontrem nela um milhão de diferentes ressonâncias. Um único objeto produzindo um milhão de reflexos, nenhum deles igual aos outros. A arte é uma ciência do concreto. Acho que era Alberto Cavalcanti, o cineasta, que dizia: “Você pode escrever um tratado sociológico sobre os Correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta.”

As “formas simples” de Jolles têm tudo a ver para um estudo histórico e evolutivo de formas essenciais da nossa literatura oral: o romanceiro ibérico, a literatura de cordel. Todas ou quase todas essas formas desaguaram na nossa poesia popular.

São estruturas repetitivas que alguém pode resumir em uma dúzia de páginas (como Jolles faz), mas que são mais bem entendidas através de um conhecimento maciço, uma absorção constante e numerosa, que aos poucos vai deixando claras as linhas estruturais daquilo. Como dizia o professor Raymond Cantel: “O cordel é uma literatura quantitativa. Não se pode saber o que ele é lendo apenas uma meia dúzia de folhetos. É preciso ler muitas centenas para perceber o que cada folheto está dizendo”.

Acho que o livro de Jolles, que os universitários norte-americanos estão conhecendo agora, foi importante para muita gente da minha geração estudar com olhos mais atentos as “estruturas narrativas” (olha aí Tzvetan Todorov botando a cabeça de fora), as formas de contar, o modo como as próprias histórias parecem nos obrigar a contá-las desta ou daquela maneira.

Era um livro que se lia (ou que eu, pelo menos, li) em paralelo com outras abordagens de natureza diferente, mas que se complementavam. Como A Linguagem Esquecida de Erich Fromm, que falava sobre sonhos e linguagem simbólica; como A Dimensão Simbólica de Monique Augras, que cobria um território semelhante; como O Estranho (“The Uncanny”) e O Chiste de Freud, que naquele tempo eram difíceis de obter, e que acho que acabei achando em espanhol (em português só havia de Freud uma coleção encadernada que custava os olhos da cara).

Dizem que agora no século 21 a arte de contar histórias está voltando com força total. Impulsionada pelo crescimento do cinema, da TV, das séries.  Deve ser verdade: nunca vi tanto manual de roteiro nas prateleiras das livrarias.  Todos são úteis, pelo menos para mim: Robert McKee, Doc Comparato, Syd Field, A Jornada do Herói, o escambau. Todos acendem uma luz nova aqui e ali.

O problema com eles é que são formalizações produzidas no interior de uma indústria extremamente competitiva, tensa, focada, especializada, onde todo mundo briga pela eficiência cada vez maior na contação de um tipo só de história: o que é capaz de levar dezenas de milhões de pessoas a comprar um ingresso ou ligar um aparelho para ver aquilo.

O livro de Jolles aborda formas de contar ou de “mostrar” que também atingiram dezenas de milhões de pessoas, com a diferença de que o fizeram no transcorrer de milhares de anos. É uma outra maneira de enxergar a mesma coisa. Ajuda a afastar nossos olhos do momento presente (que sempre enxergamos palmo-em-cima) e ver a arte da narrativa em seu desenho ao longo de milênios.







terça-feira, 2 de maio de 2017

4231) Descoberto um precursor do cordel nordestino (2.5.2017)






“Parem as máquinas!..” – gritaria o editor de um jornal, naqueles filmes policiais dos anos 1940. Parem de imprimir o jornal de amanhã, que já está quase pronto! Surgiu uma notícia tão sensacional que vale a pena jogar no lixo esse Corcovado de papel agora inútil, e começar tudo de novo. O furo de reportagem vale a despesa.

Os pesquisadores cearenses Arievaldo Vianna (cordelista, biógrafo de Leandro Gomes de Barros) e Stélio Torquato Lima (cordelista, professor de Literatura na Universidade Federal do Ceará) anunciam agora uma descoberta que vai fazer reescrever boa parte das histórias da literatura de cordel (ou Romanceiro Popular Nordestino, como gostava de chamar Ariano Suassuna).

Todos nós que estudamos o assunto consideramos que o primeiro a escrever e publicar folhetos de feira no Nordeste foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e que o teria feito a partir de meados da década de 1890.  Fala-se também no grande poeta Silvino Pirauá de Lima, mas ao que parece não há folhetos seus, impressos, que comprovem atividade editorial nesse período.

Agora, Arievaldo e Stelio trazem a figura de Santaninha, poeta popular, recitador, rabequeiro, nascido em Touros (RN), criado em Fortaleza, e que teve uma parte importante de sua carreira poética no Rio de Janeiro. A pesquisa está no recém-lançado Santaninha – Um Poeta Popular na Capital do Império (Fortaleza: Editora IMEPH, 2017).

Por ter publicado no Rio, e não no Nordeste, Santaninha foi sempre um nome obscuro. Os cronistas cariocas registravam sua atividade; os autores do livro citam numerosas menções a ele e aos seus versos na imprensa da época. Mas nenhum usa o termo “cordel”, nem parece atribuir maior importância ao “pequeno poeta”, como ele se auto-denominava.

Por outro lado, a maioria dos pesquisadores de cordel devem ter feito o que eu fiz, quando me meti a estudar o assunto: procurava menções nos jornais, catálogos e almanaques das grandes capitais nordestinas, e não do Rio. E assim Santaninha não foi alcançado pelo radar.

Santaninha (João Sant’Anna de Maria, 1827-?) parece ter sido um tipo muito carismático, que cantava acompanhando-se de uma rabeca (que chamava de “Paraibinha”, “Sombrinha” ou “Profetinha”) e vendia folhetos, tanto pessoalmente quanto em pontos de venda fixos, no centro da cidade.

Já no Rio de Janeiro, eis um anúncio típico de sua atividade (Gazeta de Notícias, 5 e 16 de junho de 1881):

[Os folhetos] acham-se à venda na estação da estrada de ferro D. P. II, no quiosque do Luiz de Camões, no largo de São Francisco de Paula, na praça da Harmonia n. 31, no ponto das barcas, num quiosque em Botafogo, no ponto dos bondes e na rua do Resende n. 107.

Os primeiros registros ao seu respeito estão em jornais de Fortaleza em 1873, quando ele é descrito como “bem conhecido e popular”. Nessa época, teria possivelmente cantado para José de Alencar, que estava em visita a sua terra pesquisando para o romance O Sertanejo.

De 1881 em diante ele já aparece na imprensa carioca, anunciando vendas de livretos e até de partituras.

O cantador e cordelista Crispiniano Neto observa em seu prefácio:

[Santaninha] não tinha com quem trocar idéias sobre a Poética desse tipo de poesia do povo, pois estava deslocado no centro efervescente que partia da Serra do Teixeira e invadia o Pajeú, os Cariris e as Borboremas, forjando uma Escola Literária, a mais produtiva e mais variada de todas.

Os autores reproduzem capa de um folheto de Santaninha, do acervo da Biblioteca Nacional, impresso pela Livraria Editora Quaresma, contendo o que são talvez os seus quatro poemas mais conhecidos, publicados originalmente entre 1879-1881:

1) “Guerra do Paraguai”
2) “Imposto do vintém”
3) “O célebre chapéu de sol”
4) “A Seca do Ceará”

Os quatro poemas vêm transcritos integralmente na segunda parte do livro de Arievaldo e Stelio. São poemas em sextilhas, com todas as características que viriam a aparecer 10 ou 12 anos depois nos folhetos de Leandro Gomes de Barros. Há erros ocasionais de ortografia, de rima ou de métrica (que encontramos também em Leandro).  Mas o perfil do Romanceiro está ali, inconfundível e inegável.

Não se tem notícia certa do ano da morte do poeta, mas os autores supõem que ele teria morrido antes de 1888-1889. Sabe-se que ele manifestou (na imprensa do Rio) a intenção de voltar a sua terra natal, e não se tem notícia de obra sua sobre dois fatos como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, sobre os quais um “poeta repórter” como ele não teria deixado de se manifestar poeticamente.

Aqui, um anúncio típico dos que ele fazia publicar na imprensa. É do jornal Monitor Campista (Campos dos Goytacazes-RJ, 4-9-1881):

O pequeno poeta João Sant’Anna de Maria, que toca e canta excelente[sic] versos ao som de sua rabeca Sombrinha, faz tenção, no hoje 4 do corrente, [de] divertir [pela] segunda vez no Hotel da Coroa, por isso faz saber ao respeitável público desta cidade que o divertimento principiará às 4 horas da tarde, e cantará outras variedades. Espera, pois, a muito digna coadjuvação do muito hospitaleiro e ilustrado povo campista. Faz ciente mais que o divertimento será no jardim do mesmo Hotel: a entrada de cada pessoa será de 500 rs. Se não chover.

E algumas sextilhas de A Seca do Ceará, que fala da seca de 1877:

Chegam os pobres arrastados
com a fome com que vêm,
pedindo esmolas aos ricos,
muitos dizem que nada têm;
responde: “Eu estou de saída
para ir pedir também”.

Nesta seca em que nós estamos,
que traz os pobres arrastados,
não pedem só as viúvas,
nem cegos, nem aleijados;
pedem os homens sadios
robustos, moços e barbados.

Não pedem só os caboclos,
negros, pardos e mulatos;
também pede gente branca
que comia em finos pratos,
já hoje come nas cuias
bravas comidas dos matos.

A publicação é da Editora Imeph, de Fortaleza: www.imeph.com.br / imeph@imeph.com.br

Santaninha foi aquilo que se costuma dizer agora “o ponto fora da curva”, um exemplo que se desvia notavelmente do comportamento mediano dos demais exemplos. Escrevia seus poemas, fazia imprimi-los e os vendia pessoalmente, cantando-os em público. Arievaldo Vianna e Stelio Torquato afirmam que lhe dão o nome de “Precursor e não de ‘Pai da Literatura de Cordel’, que julgamos ter sido merecidamente associado à figura do bardo de Pombal”.

De fato, Santaninha foi um agente isolado, embora, a partir de agora, nomes semelhantes ao seu possam surgir de novas pesquisas agora direcionadas para o ambiente de onde ele surgiu. O papel crucial de Leandro não foi apenas a escritura de folhetos (outros os escreveram antes dele), mas a ação constante e incansável que acabou deixando de ser apenas a iniciativa de um indivíduo, e sim um “processo de consagração da poesia popular como mercadoria rentável e altamente popular”.

Santaninha criou a própria obra, mas Leandro criou, com sua tenacidade e seu exemplo, gerações inteiras de – olha que ironia num país como o nosso – poetas que viveram da própria poesia.










domingo, 30 de abril de 2017

4230) "Para Belchior, com amor" (30.4.2017)




Belchior teve a coragem de dar-um-perdido, sair de fininho no meio da festa, largar o palco e deixar o microfone falando sozinho. Ninguém é obrigado a passar a vida toda rodando dentro do moedor-de-carne do show business. Tem gente que gosta e se dá bem. Tem gente que suporta sem grandes prejuízos. Tem gente que se submete porque não tem opção. E tem gente que pensa: “Eu não sou obrigado a ficar fazendo isso a vida toda.”

O primeiro disco dele, hoje pouco conhecido, era cheio de experiências meio concretistas, típicas de quem ainda bambeia entre o livro e o palco. Alucinação (1976) foi o seu primeiro disco a atingir o público, com um impacto que nunca se dissipou.

Os jovens de hoje que o escutam pela primeira vez sentem o mesmo “peso” que a minha geração sentiu há quarenta anos, porque o disco, embora seja um disco tão característico daquela época, vale para qualquer uma, pois fala de sentimentos cíclicos, de situações humanas recorrentes.

E acima de tudo é um disco que bate no ouvinte, mais do que pelos seus temas imediatos, pela surpresa daquela voz improvável (hoje mais ainda!), daqueles versos que vão fundo, daquela verdade pessoal que abre o coração na mesa e com isto ganha o coração coletivo.

Belchior evocava João Cabral (“A Palo Seco”), alfinetava os baianos, trançava numa mesma referência Edgar Allan Poe, Humberto Teixeira e Roman Jakobsson (“raven / never”), os Beatles e Zé Limeira. Era a paleta de referências de uma época em que muitas hierarquias se nivelaram e muitos cânones desceram da torre de marfim para a calçada. Um momento raro em que o Mercado, o único deus onipresente, soube ganhar dinheiro com isso.

Hoje, é praticamente zero a possibilidade de grande sucesso de um tipo de música como a que ele, com menos de 30 anos, fez tocar nas rádios de todo o Brasil. O mercado musical do Brasil encolheu. Ficou menor do que Belchior.

A notícia da morte do poeta me pegou no meio da leitura de Para Belchior com amor (Fortaleza: Miragem Editorial/Expressão Gráfica, 2017), coletânea organizada por Ricardo Kelmer, meu parceiro constante de mesas redondas e de cervejas de formatos variados no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande.

Kelmer reuniu contos, crônicas e pequenos ensaios assinados por Xico Sá, Gero Camilo, Ethel de Paula, Raymundo Netto, Carmélia Aragão, Ricardo Guilherme, Joan Edesson de Oliveira, José Américo Bezerra Saraiva, Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão, Ricardo Kelmer, Roberto Maciel, Thiago Arrais e Jeff Peixoto – catorze cearenses que revisitam suas canções preferidas na obra do bardo de Sobral, lembram episódios, mostram gratidão pelos versos que marcaram suas vidas.

O século 20 foi o Século da Canção Popular. Nunca essa forma de arte teve tanto poder quanto nos últimos cem anos. Nenhuma outra expressão artística atingiu, nesse período, tanta gente, e de forma tão variada, e com influências tão duradouras.  Primeiro, através da indústria fonográfica, depois através do rádio e da TV, depois pela indústria gigantesca dos grandes shows ao vivo, e finalmente pela Internet. Tornou-se uma experiência artística das massas (e frequentemente com alto nível estético), massas com as quais a ópera e a música erudita jamais sonharam.

Em muitos momentos desse processo, na Europa, nas Américas, no Brasil, sucesso popular e novidade estética decolaram juntas para brilhar à vista de todos. A geração de Belchior foi uma das que conseguiram essa façanha em nosso país. Façanha difícil de se repetir na indústria musical de hoje, com sua aposta pesada na fórmula banal e no clichê. Não importa. O que entrou na memória coletiva não sai mais. Os diamantes são eternos.










quinta-feira, 27 de abril de 2017

4229) Dalva de Oliveira (27.4.2017)



Não sei que idade eu tinha. Geralmente localizo o ano de minhas experiências de antes dos 11 anos em função da casa onde morávamos, porque quase todo ano a gente se mudava: Rua Padre Ibiapina, Rua do Lapa, Rua Solon de Lucena, Rua Miguel Couto, Vila dos Motoristas, Rua Estilac Leal no Alto Branco... Pronto: este último endereço foi a famosa “casa própria” onde meus pais se fixaram. Houve outras mudanças depois, mas entre os quatro e os onze anos eu me localizo tendo como bússola aqueles endereços.

Não sei onde eu morava quando vi o show de Dalva de Oliveira, a Rainha do Rádio, cujo centenário comemoramos este ano.

Sei que foi à noite, num palanque armado na Praça da Bandeira (de costas para o Cine Capitólio), bem em frente ao Correio. Lembro da multidão, não tão grande que me impedisse de ver o palco à distância. Lembro da mulher loura vestida de preto, e minha mãe, segurando minha mão e comentando com alguém: “Olha a volta de ouro no pescoço dela, que coisa linda!”. E lembro da voz.

Eu já sabia que ela era Dalva de Oliveira, aquela voz límpida, sofrida, angustiada, que derramava seus dramas pessoais pela Rádio Borborema, a Rádio Cariri e a Rádio Caturité. Para não falar nas rádios do Rio de Janeiro, que meu pai sintonizava com presteza por entre os chiados da estática, e de onde a mesma mulher brotava, límpida, torturada.

Não conheço quem possa resistir a um tango que começa assim:

Tenho o coração feito em pedaços...
Trago esfarrapada a alma inteira...

O tango é “Cristal”, a única música que me lembro de ter ouvido no show, porque já a conhecia do rádio: “Mais frágil que o cristal.. foi o amor... nosso amor...”  

“Cristal”, gravação original:

A educação sentimental de minha geração indefesa foi no meio das catástrofes morais e afetivas de intérpretes como Dalva, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Maysa e outras, pelo lado feminino, e Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, Orlando Silva, pelo lado masculino.

Muita tinta já deve ter corrido sobre a influência das letras de música no comportamento afetivo dos jovens. Se eu fosse escolher, diria que Nelson Gonçalves e Dalva de Oliveira marcaram para os da minha geração a descoberta do amor, do sexo, da relação entre homens e mulheres, as noções de pecado, de fidelidade, de dominação, de solidão, de gozo e de sofrimento.

As canções do repertório de Dalva reproduzem um universo de paixões extremadas, de desejos intensos, de uma sensualidade que chega quase ao transtorno mental, de noções brutais de posse e de traição. Era um mundo moralmente muito repressor e transgressor – porque essas duas funções são proporcionais. Luís Buñuel dizia que ninguém gozava com mais força do que os espanhóis, porque eram o povo mais reprimido do mundo.

A voz de Dalva é a voz de um arquétipo feminino capaz de rasgar o próprio peito e ofertar o coração em chamas. Privadas de tantos caminhos, as mulheres daquele tempo faziam desaguar na paixão uma energia “capaz de mover milhões de mundos”, como dizia Augusto dos Anjos.

Num tempo de severa censura, não somente nas letras de músicas, essa sensualidade projetava sua potência de ar comprimido nas alusões, nas indiretas, nos subentendidos. Ela cantava:

Que será
da minha vida sem o teu amor,
da minha boca sem os beijos teus
da minha alma sem o teu calor?
Que será
da luz difusa do abajur lilás
que nunca mais irá iluminar
outras noites iguais?
(Marino Pinto & Mauro Rossi)

O que acontecia naquelas noites ficava a cargo da imaginação dos(as) ouvintes, que não precisava de mais que uma fagulha para pegar fogo. A cantora modulava a voz acompanhando as sugestões da letra, ora apequeninando-se em carinho, ora erguendo-se altiva como uma leoa ferida, ora deixando-se devanear em vagas promessas de prazeres terrenos. E o sexo idealizado fulgurava num horizonte de orgasmos múltiplos e ereções vitalícias.

Tudo acabado entre nós, já não há mais nada...
Tudo acabado entre nós, hoje de madrugada...
Você chorou e eu chorei... Você partiu e eu fiquei...
Se você volta outra vez, eu não sei.
(“Tudo Acabado”, J. Piedade & Osvaldo Martins)

Dalva tinha um sotaque que até hoje tenho dificuldade de localizar com precisão. Ela gostava de pronunciar um “erre” como um “ere”: “meu amorrr... parrrtiu... o peixe é pro fundo das rrredes...”  Sua voz cristalina e afinada fez escola em Ângela Maria, Núbia Lafayette e mais tarde até em Elis Regina – esta numa outra “chave” estilística, mais reflexiva, mais senhora de si, menos teatral, mas com a mesma densidade interpretativa e a precisão das notas.

Errei, sim, manchei o teu nome...
Mas foste tu mesmo o culpado:
deixavas-me em casa, me trocando pela orgia,
faltando sempre com a tua companhia...
Lembro-te agora que não é só casa e comida
que prende por toda vida o coração de uma mulher!
(“Errei, sim”, Ataulfo Alves)

Dalva e seu marido/compositor Herivelto Martins foram roteiristas e atores de um drama conjugal vivido nas manchetes e nas reportagens das revistas de fofocas. Traições, separações, reconciliações, brigas, difamações públicas, batalhas judiciais. Uma dessas histórias de escândalo que o showbiz encoraja e vampiriza. Vende disco, vende ingresso. E de tantos em tantos meses, uma nova canção chegava às rádios, respondendo à canção anterior do desafeto, como capítulos de uma telenovela escrita nos moldes de um desafio de violeiros.

A história do machismo brasileiro, das relações de propriedade amorosa, não pode ser escrita sem passar pelas composições de Adelino Moreira para Nelson Gonçalves e as de Herivelto para/sobre Dalva. São aqueles momentos da História em que existe uma sintonia total de emoções entre artistas e público, uma retroalimentação constante de valores, de princípios, de balizas, do que se pode e o que não se pode, do que se deve e o que não se deve.

Claro que a obra não vive apenas disso. São igualmente belos e fortes os momentos de lirismo puro em que a beleza simples da cidade se ergue mais alto do que as querelas pessoais. "Ave Maria no Morro” é um momento lírico que eu comparo à “Alvorada” de Cartola:

Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura..
Lá no morro, barracão é bangalô.
Lá não existe felicidade de arranha-céu
pois quem mora lá no morro
já vive pertinho do céu.
(“Ave Maria no Morro”, Herivelto Martins)

São esses passeios poéticos em que a dor individual se dilui na beleza da paisagem humana. E mostra o morro em seu lado idealizado de um lugar feliz de gente pura, ilusão tão inevitável quanto a de julgá-lo um covil de viciados e assassinos. Foi inclusive por conta da bela imagem de Herivelto que, muitos anos depois daquele show na Praça da Bandeira, eu e Lenine fizemos outra música, falando do desembarque de uma nave de alienígenas num morro carioca:

Os homens se perguntaram:
“Por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou em Natal?”
Vieram pedir socorro, pois quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
(“O dia em que faremos contato”, Lenine & BT)











segunda-feira, 24 de abril de 2017

4228) Roberto Bolaño e a ficção científica (24.4.2017)





O chileno Roberto Bolaño virou de uns 10 anos pra cá um queridinho da crítica literária. Tenho amigos que detestam os livros dele e amigos que o acham o novo Cortázar, o novo Galeano. Tudo isso é reflexo da qualidade (má ou boa) do que ele escreve? Somente em parte. Na parte maior é reflexo desta praga que chamam de hype (=ráipe), também conhecida como marketing, badalação, tititi, bajulação às cegas, pressão-eufórica-sobre-o-mercado-consumidor apregoando a chegada (parafraseando os Titãs) do Melhor Escritor Latino-Americano De Todos os Tempos Da Semana Passada.

Li agora O Espírito da Ficção Científica de Bolaño (Companhia das Letras, 2016, traduzido por Eduardo Brandão).

É bom? Olha, não amarra as chuteiras dos três excelentes romances dele que já li: Os Detetives Selvagens (1998), Literatura Nazista nas Américas (1996) e Estrela Distante (1996).

É ruim? Olha, me deu muito prazer na leitura. Se bem que um prazer diluído, pelo fato de ser nitidamente um livro menor. Mas se em vez de 182 páginas o livro tivesse o dobro, o prazer seria o mesmo.

Gosto do jeito que Bolaño escreve. Me identifico com uma certa dicção direta, coloquial, que ele consegue manter, mesmo em textos de tom e cadência muito diferentes, e recebo dele umas lições de simplicidade que sempre me fizeram falta como escritor. (Sou do tipo que a frase tem que vir de cabeça pra baixo num trapézio, vestida de arlequim e iluminada com luz-negra, porque se for somente uma frase então não presta.)

O espírito da ficção científica é dado como um livro de 1984, publicado apenas agora, pois foi achado entre os papéis do escritor. 

Coisa publicada após a morte é sempre problemática. Nem tudo que ficou inédito é uma obra-prima à espera da glória. A maioria é de coisas que o autor olhou e pensou: “Isso aqui é meio fraquinho, já fiz uma tentativa disso que deu mais certo. Vou guardar somente por motivos sentimentais”. Aí chega a viúva, cheia de contas a pagar, e anuncia que achou “o melhor livro dele”.

A “tentativa que deu mais certo” é Os Detetives Selvagens, do qual este livro é um primeiro esboço ou um primo-pobre. Jovens intelectuais na pindaíba, morando na Cidade do México, produzindo poemas, namorando garotas mais ricas do que eles, bebendo, metendo-se em confusões...

Espírito é um rascunho de Detetives, até pela estrutura. Poetas jovens e impressionáveis admiram poetas um pouco mais velhos, mais escolados, mais cheios de talento e de expedientes.  A dupla de poetas ingênuos Remo e Jan Schrella, do Espírito, admira José Arco do mesmo modo que o adolescente Juan García Madero, em Detetives, admira a dupla mais calejada formada por Arturo Belano e Ulises Lima.

O contexto é semelhante, tal como a amizade ligeiramente hierárquica mas cordial, a presença de duas irmãs lindas e literárias (praticamente as mesmas que aparecem em Detetives e Estrela Distante). E também as demandas levemente quixotescas. Em Detetives, Belano e Lima reviram o México de cima a baixo à procura de pistas de uma antiga poeta vanguardista, hoje octogenária, Cesárea Tinajero. Em Espírito, Remo e José Arco se dedicam a comprovar (ou desmentir) a afirmativa feita por uma revista obscura de que o México tinha, então, 661 revistas de poesia, sendo que “para o fim do ano vaticinava a arrepiante cifra de mil revistas de poesia, noventa por cento das quais com toda certeza deixariam de existir ou mudariam de nome e de tendência estética no ano vindouro”.

Jovens intelectuais num apartamento, bebendo, fumando, namorando, falando de livros? Não há como não pensar na maciça influência exercida a partir de 1963 por O Jogo da Amarelinha (“Rayuela”) de Julio Cortázar. Um livro que quem ainda não leu sempre associa a um jogo complicado de capítulos saltantes em idas-e-vindas um tanto intimidadoras. Quem leu, sabe que este aspecto, apesar de ser um dos mais visíveis do livro, está longe de esgotá-lo. O Jogo da Amarelinha é essencialmente um livro sobre boêmios exilados, com pouca grana, discutindo arte, amor, literatura, política, aventura existencial.

A diferença mais visível entre este livro de Bolaño e os outros que o influenciaram está no fato de que o jovem Jan Schrella é um fã ardoroso de ficção científica, e boa parte do livro consta das cartas ingênuas, cartas de fã, fã do Terceiro Mundo, enviadas (sem muita esperança de leitura ou de resposta) para autores como Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin, Robert Silverberg, Forrest J. Ackerman e outros.

Jan Schrella chega a resumir, num capítulo inteiro, um romance de Gene Wolfe, que ele chama de A Sombra, história de uma nave-geração que chega depois de séculos a um planeta em crise, e não sabe se deve voltar para a Terra. Esse argumento (e o nome de alguns personagens principais: Johann, Helmuth, Grit) não correspondem a nenhum livro de Wolfe que eu tenha lido ou localizado na web, ainda mais se aceitarmos que Bolaño estava escrevendo em 1984.

O espírito da ficção científica não é um livro de FC, e nisso provavelmente irá decepcionar o leitor que tiver esta expectativa. Mas parece muito com livros de memórias como The Futurians (1977) de Damon Knight, sobre sua convivência, em apartamentos compartilhados, com James Blish, Cyril Kornbluth, Judith Merrill, Frederik Pohl...  São os relatos daquela época da vida em que todo mundo é jovem e entusiasmado, todo mundo acredita que a literatura pode mudar o mundo (nem toda literatura, é claro – apenas a que ele escreve).

Damon Knight relata naquele volume de memórias as carraspanas, as publicações, os fanzines, as críticas devastadoras que os contistas faziam aos textos uns dos outros, as namoradas roubadas ou compartilhadas, as peças de gosto duvidoso que se pregavam entre si, as polêmicas, os dinheiros emprestados e não pagos...

Aquela época da vida em que todo mundo sonha com um futuro de glória capaz de redimir os colchões desconfortáveis, a roupa sem lavar, a má bebida, o fumo barato, a incerteza sobre o mês que vem. A literatura envolve tudo isto numa aura de aventura e encanto. Talvez não ajude a ganhar a vida, mas como ajuda a viver.

E, perpassando tudo, aquela sensação de tempo dilatado através da bebida, do fumo, da insônia, da alimentação precária, da presença de mulheres por quem é possível se apaixonar no ato de abrir a porta e vê-las pela primeira vez. A arte de suspender o tempo na medula de uma noite feliz que nunca se acaba, como relata Remo na página 113:

Deveria perguntar a alguém ou consultar algum almanaque, às vezes tenho certeza de que foi a noite mais longa do ano. Tem mais, às vezes seria capaz de jurar que não acabou como acabam todas as noites engolidas de repente ou ruminadas por um bom tempo, com um lento amanhecer. A noite de que falo – noite gatesca de sete vidas e com botas de vinte léguas – desapareceu ou se foi em momentos díspares e, à medida que se ia como um jogo de espelhos, chegava ou persistia uma parte e portanto toda ela. Hidra amabilíssima, capaz de, às seis e meia da manhã, voltar inopinadamente às três e quinze por um espaço de cinco minutos, fenômeno que sem dúvida pode ser incômodo para alguns mas que para outros era mais que uma bênção, um perdão real e uma forma de rebobinar.






terça-feira, 18 de abril de 2017

4227) Dez verdades inteiras e uma mentira parcial (18.4.2017)




(ilustração: Karel Thole)


Está rolando este desafio no Facebook, e resolvi contribuir com os meus episódios.




1) Já fiquei com fome um fim de semana inteiro numa pensão de estudantes, por timidez, sem coragem de entrar no refeitório.

2) Já publiquei textos de humor na revista Mad, na revista Casseta & Planeta, no Pasquim, no Rei da Notícia (Recife), e já fui roteirista dos programas de TV Os Trapalhões, Brasil Legal e Sai de Baixo.

3) Já fiquei preso numa delegacia durante uma tarde porque tinha o cabelo grande e estava andando na rua enrolado num cobertor colorido, mas quando anoiteceu me soltaram.

4) Já tive músicas gravadas por Tim Maia, Ney Matogrosso, Dionne Warwick, Alcione, MPB-4, Mônica Salmaso, Beth Carvalho, Jorge Vercilo, Santanna o Cantador e Mestre Ambrósio.

5) Já entrei por engano na sala de reuniões de Roberto Marinho (na TV Globo), no palco do primeiro Rock in Rio (em 1985) durante um show, e num restaurante caríssimo de Paris procurando amigos meus que na verdade estavam no restaurante vizinho.

6) Já ganhei um prêmio artístico importante, no tempo da inflação braba, e depois da cerimônia esqueci o cheque na carteira; quando lembrei alguns dias depois, ele valia menos da metade.

7) Já escapei de capotagem de automóvel e de assalto com arma de fogo.

8) Já defendi um pênalti cobrado por Jovany, que era o Zico da nossa geração sub-16 nos campinhos de terra do Alto Branco.

9) Já recebi um bilhete manuscrito do poeta Manuel de Barros me pedindo uma cópia da minha canção “Balada do Andarilho Ramón”.

10) Anoto meus sonhos com certa regularidade há quase 40 anos, e muitos deles já foram usados em contos e poemas.

11) Já toquei tarol e bumbo em torcida organizada de futebol, e pelo menos duas vezes fui preso e retirado do estádio pela PM.








domingo, 16 de abril de 2017

4226) "A Lua Vem da Ásia" (16.4.2017)



Uma das formas menos estudadas da literatura fantástica é o que alguns críticos chamam de “romance absurdista”. Muitos inclusive não a consideram parte do fantástico, porque ela não corresponderia à famosa definição de Tzvetan Todorov: “Fantástica é qualquer narrativa que deixe o leitor incerto entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para os fatos narrados.”  Para mim, essa definição cobre uma parte importante da literatura fantástica – mas não toda. Eu chamo a essa parte “o Fantástico Todoroviano”.

Na literatura absurdista, podem aparecer coisas que pertencem ao sobrenatural: animais que falam, mortos que ressuscitam, criaturas bizarras, rupturas do espaço e do tempo, etc.  Em grande parte dela, no entanto, acontecem apenas fatos desprovidos de lógica ou de explicação, comportamentos insensatos, acontecimentos caóticos, enfim: nenhuma lei da natureza é violentada, apenas as coisas ocorrem de maneira maluca.

A Encyclopedia of Science Fiction (http://www.sf-encyclopedia.com/entry/absurdist_sf) dá a seguinte definição, de Peter Nicholls & John Clute:

A palavra “absurdista” entrou na moda da terminologia literária depois de ser usada consistentemente pelo autor e ensaísta Albert Camus (1913-1960) para descrever ficções situadas em mundos onde parecemos estar à mercê de sistemas incompreensíveis. Esses sistemas podem funcionar como metáforas da mente humana – manifestações externas daquilo que J. G. Ballard descreve quando usa o termo “espaço interior” – ou podem funcionar como representações de um mundo externo cruel e arbitrário, no qual as nossas expectativas de coerência racional, seja da parte de Deus, seja da parte de agências humanas, estão condenadas à frustração, como nas obras de Franz Kafka.

O absurdismo pode derivar na direção do sombrio (a literatura de Kafka e Camus, o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch) mas pode derivar também na direção de narrativas menos angustiantes e com um certo humor. É o caso, para dar somente um exemplo, da literatura de Flann O’Brien:

É o caso também do nosso Campos de Carvalho, autor de quatro livros memoráveis nessa linha: A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964). Os dois do meio são mais sombrios; o primeiro e o último tendem ao absurdismo com humor.

A Lua Vem da Ásia foi reeditado ano passado, em comemoração aos seus 60 anos, pela Ed. Autêntica, de Belo Horizonte. É uma narrativa na primeira pessoa em que o narrador afirma estar num hotel de luxo, mas logo percebemos, quando ele começa a contar sua rotina diária, que está mesmo é num hospício.

A primeira parte do livro se intitula “Vida Sexual dos Perus”, e os capítulos são organizados assim, por ordem de aparecimento: Capítulo Primeiro, Capítulo 18º., Capítulo Doze, (Sem Capítulo), Capítulo sem Sexo, Capítulo 99, Capítulo Vinte, Capítulo I (Novamente), Capítulo, Capítulo CLXXXIV... E por aí vai. Na segunda parte, “Cosmogonia”, os capítulos são indicados pelas letras do alfabeto, na ordem certa até o penúltimo (“N”), sendo que o último se intitula “O. P. Q. R. S. T. U. V. X. Y. Z.”.

Os “hóspedes” do hotel vivem numa certa promiscuidade, levam choques elétricos, recebem medicamentos, têm alimentação precária, estão sempre às turras uns com os outros pelos motivos mais malucos.

Em alguns trechos o narrador põe-se a relatar sua vida pregressa, que cobre décadas e mais décadas e transcorre, numa montanha-russa de fatos extraordinários, em dezenas de países; é o caso dos Capítulos CLXXXIV e 71 da primeira parte, e dos capítulos I e J da segunda, entre outros. Um trecho do primeiro deles dá uma idéia dessa parte memorialística:

Em Cuzco tomei-me de amores por uma rapariga que não sabia uma só palavra de árabe, nem eu tampouco, e pude manter-me dignamente à sua custa durante alguns meses, até que o governo me deportou para a ilha de Sumatra num cargueiro que levava lhamas, algumas buigigangas de grosseira fabricação e meia dúzia de espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a de Madagascar, de onde alcancei a nado a costa de Moçambique, batendo todos os recordes de distância, mas incógnito. (...) Quando dei por mim estava em pleno coração da África Equatorial Francesa, caçando elefantes e traduzindo Virgílio para o alemão, a pedido do padre Kremmer, que não sabia latim. Com a renda obtida de quinze mil elefantes mortos e alguns leopardos empalhados estabeleci-me em Brazzaville com um negócio de falsos diamantes e uma modesta casa de tolerância, servida por três nativas e duas francesas já avançadas em anos e que morreram logo depois. Vítima de injusta perseguição da polícia, mudei-me atabalhoadamente para Leopoldville, que fica logo defronte, e onde, fazendo-me passar por filho bastardo do rei dos belgas, obtive permissão para me instalar com um novo prostíbulo, que se incendiou pouco depois.

E nesse tom ele vai, por páginas e mais páginas.

Martin Esslin, em seu clássico ensaio O Teatro do Absurdo (1961; saiu no Brasil pela Ed. Zahar) situa o espírito desse gênero como o reflexo de uma perda de sentido coletivo da civilização ocidental com a falência da visão do mundo religiosa, que Nietzsche exprimiu no conceito de “Deus está morto” (Assim Falou Zaratustra, 1883). Diz Esslin que a partir dessa época a humanidade começou a penetrar num mundo “privado de um princípio integrador coletivamente aceito, o mundo que se tornou desconjuntado, sem propósito – absurdo”.

Como o ensaio de Esslin é sobre a manifestação teatral desse espírito, ele cita “o aspecto satírico e parodístico do Teatro do Absurdo, sua crítica social, sua ridicularização de uma sociedade mesquinha e inautêntica”.  O mesmo vale para a prosa de ficção, que bebeu em fontes semelhantes: os escritos de Alfred Jarry e Lewis Carroll, a destruição da linguagem promovida pelos Dadaístas, as situações amalucadas vividas pelos comediantes de cinema desde Buster Keaton até os Irmãos Marx, os delírios literários de James Joyce, Guillaume Apollinaire, Lautréamont...

Campos de Carvalho corre nessa mesma raia, com sua sucessão de situações extravagantes, inverossímeis, constrangedoras, cheias de irrisão e de falta de sentido.

Sem falar que é um excelente fazedor de frases, e em cada página saltam trechos hilários e inesquecíveis:

Não há quem não venda a sua própria mãe por três milhões de florins. (p. 82)

A chuva dá de beber aos mortos.  (p. 30)

Tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido.  (p. 118)

Tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho, que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo. (p. 97)

Consegui transpor a nado o estreito de Gibraltar, que não me pareceu tão estreito quanto dizem. (p. 78)

Há instantes em que eu me sinto um chinês perfeito – Chiang O’Lyi, por sinal – e me ponho a rememorar todos os meus antepassados milenários, com rabicho e bigodes em forma de antena, captando o mistério que vem dos subterrâneos do mundo. (p. 150)

Puxa, como passa depressa o tempo, e a gente dentro dele! (p. 142)


Os livros de Campos de Carvalho são livros de exceção em nossa literatura, mas não são livros únicos. Talvez até por sua influência, brotaram títulos igualmente absurdistas como Lugar Público (1965) de José Agrippino de Paula, Necrológio (1972) de Victor Giudice, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros (1973) de Gramiro de Matos (Ramirão Ão Ão), Confissões de Ralfo (1975) de Sérgio Sant’Anna, Catatau (1975) de Paulo Leminski, Malthus (1989) de Diogo Mainardi, O Convento das Alarmadas (1978) de Sérgio Martagão Gesteira, Paniedro (1981) de Herio Saboga e certamente outros.

Uma literatura do riso e do desespero, buscando seu leitor:

Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa – o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo, à procura de outro polo no qual certamente houvesse um outro antípoda à minha espera. (p. 169)











quinta-feira, 13 de abril de 2017

4225) Curiosidades da música popular (13.4.2017)



Na gravação de “Bob Dylan’s 115th Dream”, do álbum Bringing it all back home (1965), a música começa com Dylan rasqueando o violão e começando a cantar o primeiro verso da letra: “I was riding on the Mayflower, when I thought I spied some land...”   

Então ele se interrompe e dá uma gargalhada, porque tinha começado a cantar sem fazer a contagem prévia e os músicos ainda não estavam prontos. Dylan dá várias risadas, e depois avisa: “Oh, yeah, take two!”. E desta vez, no segundo take, entram todos juntos.

Aqui:

Depois, certamente ele e o produtor acharam divertido o detalhe e resolveram deixá-lo aparecer no disco. Na época, isso deu um certo susto nos ouvintes, o fato de um “erro” ser mantido na versão final.

Acho que na verdade a gente nem imaginava que pudesse haver um erro ao se gravar uma música. Eu pensava que os músicos se posicionavam no estúdio, a fita começava a rodar e eles tocavam a música inteira até o fim, do jeito que a gente iria escutar depois.

É ingênuo, pensar assim? Talvez seja, mas não é mais ingênuo do que o cara que pegou um ovo de galinha e disse: “Olha que design impressionante, deve dar um trabalho enorme fazer uma coisa tão perfeita”.

Uma música só fica pronta mesmo depois de gravada, ou melhor, depois do disco estar sendo vendido na loja.  E mesmo assim há muitos casos de canções que por mil motivos acabam sendo remixadas ou interferidas, e aparecem diferentes nas prensagens seguintes do disco, semanas ou até meses após o lançamento.

Muitas decisões cruciais sobre a forma final de uma canção são tomadas após a gravação, exigindo que ela seja refeita ou emendada de alguma forma. Reza a lenda que isso ocorreu uma das gravações mais belas e mais famosas de Clara Nunes, o Canto das Três Raças, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte:

Ninguém ouviu
um soluçar de dor no canto do Brasil...
Um lamento triste sempre ecoou
desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro
e de lá cantou...

A versão de Clara Nunes:

Ao fim de cada estrofe, vem um coro de vozes masculinas: “ô-ô-ô, ôôô...”  Esse coro, ao que se diz, não fazia parte da composição original, mas foi incluído pelo maestro arranjador, que, como convém a um bom arranjador, sentiu que “faltava alguma coisa ali”.

Interferências assim, não previstas na forma original da canção, acabam se transformando em algo que é “a cara dela”.

Meu parceiro-ilustrador Mário Bag conta, numa postagem recente no Facebook, este episódio sobre uma das canções mais famosas de Paulinho da Viola, “Foi um rio que passou em minha via”. Todo mundo lembra o trecho que abre a segunda parte, e diz: 

Porém
há um caso diferente
que marcou num breve tempo
meu coração para sempre...

Diz Mario Bag:

Em 1970, enquanto o Paulinho da Viola gravava o samba "Foi um rio que passou em minha vida", um dos membros dos "vocais de apoio" se empolgou depois que o autor cantou o 'porém' ANTES do verso que seguiria: "que marcou num breve tempo", e mandou um contraponto: "Ai, porém!..."

Se tirarmos o "ai, porém" que o cara enfiou no meio da letra, fica um intervalo meio incômodo entre os versos tanto que o "ai, porém!" já faz parte da letra - já está transcrito na letra OFICIAL da canção. E o criador da "chamada" ficou conhecido como "Jorge Porém".

Ou seja, o merecidamente imortalizado Jorge Porém sentiu, como um bom arranjador, mesmo não-oficial, que “faltava alguma coisa ali”. Havia um buraco. Buraco, em música, é muitas vezes um tempo de espera até que se complete um compasso e a melodia + letra possa ser retomada no ponto mais conveniente.

É mais ou menos como você querer subir num carrossel, mas tem que ser no cavalo “X”, aí você precisa esperar terminar a volta e o cavalo passar de novo.

É o que contam Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano em seu precioso livro A Canção no Tempo (Editora 34, vol. 1, págs. 188-189), a respeito da canção “Ó Seu Oscar”, de Wilson Batista e Ataulfo Alves, gravada por Ciro Monteiro:

“Se pertence a Ataulfo o título e a segunda parte, é de Wilson Batista a idéia e o estribilho original da composição:

Cheguei cansado do trabalho
logo a vizinha me falou:
(ó seu Oscar,)
tá fazendo meia hora
que a sua mulher foi embora
e um bilhete deixou...
O bilhete assim dizia:
“Não posso mais, eu quero é viver na orgia!”

Aqui, a gravação de Ciro Monteiro:

“Foi com esses versos, já musicados, que Wilson convidou Ataulfo para fazer a segunda parte. Conta Bruno Ferreira Gomes (no livro Wilson Batista e sua época) que Ataulfo, notando um “buraco” entre o segundo e o terceiro verso, sugeriu a inclusão desse “Ó Seu Oscar” que, além de preencher o claro, acabou substituindo o título, que deveria ser “Está Fazendo Meia Hora”.

Os autores lembram também que na época (1940) o nome “Oscar” era atribuído a qualquer indivíduo bobalhão, mais ou menos como hoje se usa “Mané”.

Tempos de espera como esse são geralmente preenchidos por um tralalá instrumental qualquer. Outras vezes, o compositor, ou o maestro, ou o próprio intérprete, encaixa ali um pedacinho e a música fica completa, sem parecer uma dentadura onde falta um dente no meio.










domingo, 9 de abril de 2017

4224) Lovecraft, Borges e as paisagens (9.4.2017)




A literatura de terror, ou de horror, é muito variada. Comporta inclusive, como qualquer gênero, obras que não têm nada a ver entre si. Quando a gente pega dois daqueles livros que pertencem ao gênero de uma maneira bem periférica mesmo, fica difícil encontrar uma definição, uma fórmula única, que inclua os dois de maneira satisfatória.

É um gênero que se define pela reação provocada no leitor, e não por uma convenção narrativa. O romance de mistério, por exemplo, se baseia numa convenção narrativa: acontece algo misterioso, e esse mistério será esclarecido no final. Pode ser um crime, um desaparecimento, a descoberta de algo enigmático, etc.  Uma história de mistério continuará a sê-lo se for humorística, aventuresca, assustadora, intelectual, romântica.

Já a história de terror (ou horror) pode conter quaisquer elementos narrativos, desde que a impressão produzida no leitor seja aquela.  Isso gera algumas polêmicas interessantes, como: Pode uma história humorística ser também uma história de terror? Uma história pode provocar medo e riso ao mesmo tempo? Esse debate nunca vai se esgotar.

Os grandes mestres do terror, no entanto, parecem às vezes buscar um efeito que não é propriamente de medo, mas do que a língua inglesa chama de “awe”: o espanto mudo diante de algo que ultrapassa nossa capacidade de suportar, de entender. É uma forma do Inefável (=aquilo que não se consegue exprimir com palavras), mas um Inefável tingido de assombro, de pequenez impotente. Seria, num certo sentido, aquilo que em Estética se chama “o Sublime”.

“Sublime” é uma palavra muito desvalorizada e distorcida, porque na linguagem cotidiana dizemos “sublime mesmo é o amor de uma mãe pelos filhinhos”, “a visão sublime de um roseiral coberto pelo orvalho do amanhecer”, esse tipo de coisa.  Sublime não é nada disso. 

O Sublime é algo que ultrapassa nossa capacidade de entender e de suportar. Em sua Iniciação à Estética (José Olympio, 2005; 1972) Ariano Suassuna comenta a visão de Emmanuel Kant a respeito do Sublime:

Temos, então, do que foi visto até aqui, que o Sublime resulta da inadequação das idéias do contemplador a um objeto informe e desproporcionado da Natureza, objeto que se apresenta ao espírito contra o interesse dos sentidos e causando uma sensação misturada de prazer e de terror.  (p. 177)

Comentando a visão de Hegel sobre esse tema, diz Ariano:

(T)ambém para estetas mais modernos, essa noção do terror, causado por uma simples meditação poética sobre o homem diante do mundo e de seu destino marcado pela morte, é característica essencial do Sublime. (p. 183)

Isso reafirma a idéia de que a poesia reflexiva, ou filosófica, é, de todos os tipos de Arte, o mais apto a causar, no homem, esse prazer intelectual misturado de terror que é o Sublime. (p. 184)

Não vou meter minha colher na Grande Arte, mas na literatura popular, que é meu domínio, temos o equivalente disso nas obras de “terror cósmico” que exprimem o medo e o deslumbramento impotente do ser humano diante de um Universo incompreensível e pouco hospitaleiro.

Ninguém exprimiu isso tão bem quanto H. P. Lovecraft. Mas Lovecraft não era apenas um escritor de histórias sobre monstros ameaçadores. Descrevendo as paisagens da Nova Inglaterra onde passou praticamente a vida inteira, ele diz, numa carta de 1927:

Às vezes eu tropeço acidentalmente em raras combinações de encostas, ruas que fazem curvas, tetos & empenas & chaminés & detalhes secundários de verde & de paisagem ao fundo, os quais na mágica de um fim de tarde assumem uma majestade mística & um significado exótico que está além do poder de descrição das palavras... Minha vida inteira se dedica a capturar algum fragmento dessa beleza oculta & inacessível; essa beleza toda constituída de sonho, e que no entanto eu sinto ter conhecido muito de perto & nela me deleitado durante éons sem fim antes do meu nascimento e do nascimento deste mundo ou de qualquer outro.

Note-se que o terror e o medo estão ausentes dessa citação, que ainda assim é lovecraftiana até a medula. Lovecraft tinha, acima de tudo, esse “sentimento do mundo”, essa janela mental aberta para o Sublime.

Era uma janela também, aberta na mente de Jorge Luís Borges, autor desta outra descrição muito citada:

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo nos disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de nos dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético. (“A muralha e os livros”, 1950, em Outras Inquisições)

São dois escritores de formações muito diferentes, mas com traços pessoais em comum, exprimindo essa mesma sensação de saber ou perceber algo, ao contemplar o mundo físico, que as palavras não conseguem exprimir.

A comparação entre essas duas citações é feita por um seguidor contemporâneo de ambos, o contista Thomas Ligotti, que justapõe as palavras de Borges e as de Lovecraft para comentar um conto deste último, “The Music of Erich Zann” (no ensaio “The Dark Beauty of Unheard-of Horrors”, em The Thomas Ligotti Reader, Wildside Press, 2003).

Usar a música para se referir ao inexprimível-por-palavras é uma saída elegante para um escritor. Falar de música na literatura é como falar das partículas subatômicas. Nunca podemos descrever de fato o que são e o que fazem, apenas as sensações indiretas que produzem em nós. 

E onde entra o Horror em tudo isso? 

Comparando essas duas citações percebemos que ambas exprimem um sentimento muito parecido. Comparando a obra de Lovecraft com a de Borges, vemos que o Horror aparece na primeira, mas não na segunda.

Eu diria que o Horror nasce da conjunção entre o sentimento do Sublime descrito acima e uma ativa percepção da presença do Mal no Universo, algo que a obra de Lovecraft reitera sem parar. Poucos contos de Borges se destinam a reproduzir essa sensação, e o mais notável é justamente seu assumido pastiche lovecraftiano, “There Are More Things” (em O Livro de Areia).

Borges era um sujeito em paz com o Universo. Lovecraft não. Lovecraft tinha a sensação (que é pessoal, intransferível, como toda visão estética) de que o Universo era basicamente um lugar frio, indiferente, capaz de esmagar seres insignificantes como nós. Para ele, existe um Mal atuante e poderoso em nosso Universo, mesmo que ele desdenhe ou ignore nossa presença. Esse sentimento é estranho a Borges.

Lovecraft experimentava aquela sensação que o crítico John Clute chama de “wrongness”, aquela sensação que Carlos Drummond exprimia, em “Campo de Flores” (em Claro Enigma, 1951):

(...) e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Lovecraft era provavelmente um indivíduo com a mesma percepção do Sublime que a gente encontra em Borges e em Drummond, mas por questões pessoais, emotivas, biográficas, questões ligadas a sua formação como leitor, ele percebia o Cosmos como algo fundamentalmente errado, tormentoso, indiferentemente mau. E é essa combinação única de percepções que faz com que todo grande autor produza uma obra única, pessoal e intransferível.