(desenhos de Guillermo del Toro)
& a vida é muito curta para que nela possa
caber uma missão cumprida
& depois que a gente aprende a desligar a TV,
começa o curso de aprender a não ligar de novo
& o corpo é o cafetão da
mente, e bota a pobrezinha em cada roubada
& pra que tanto livro de
colorir, se de acordo com a gramática eu não coloro
&
a verdade é que tem certos autógrafos que a gente só pede para ser
gentil
& o governo produz marginais para ter um
pretexto para produzir mais polícia
& um dia de um velho vale um
mês de um jovem
& a vida da gente deveria ser tão cheia de
realizações que a morte fosse recebida com alívio
&
o artista precisa ter em mente o tempo todo que está sendo observado por
10% de especialistas e 90% de leigos absolutos
& tudo que você escuta
significa o mundo tentando lhe dizer alguma coisa
& a
cidade vive cheia de luzes que só iluminam a si mesmas
&
mais ensina uma queda do que dez conselhos
& a
arte de bombardear cidades para reinar sobre ruínas
&
o transatlântico afunda enquanto a tripulação se engalfinha e a primeira
classe saracoteia no convés
& um planeta que tivesse várias luas
desenvolveria facilmente esquemas complexos de presságios e superstições
&
estou com uma casa pronta, mas só quero colocá-la num lugar que pareça
um Cariri à beira-mar
& um vingador mascarado que executa banqueiros
com uma bala de ouro
& o inferno dos tímidos é uma festa num
apartamento pequeno cheio de gente desconhecida
& ela é daquele tipo de
mulher que somente homem inteligente acha bonita
&
palavras escritas servem para formatar a mente de quem as decifra e
interpreta
& meus antepassados talvez se envergonhassem de
mim, mas mesmo assim me orgulho deles
& em muitos guarda-bagagens
deve haver malas não-reclamadas, contendo bombas que falharam sem explodir
&
um sebo onde livros aleatórios estariam marcados: “este é de graça, pode
levar ao caixa”
& romance qualquer um escreve, quero ver é
inventar um provérbio que fique
& não há coisa mais patética
do que um patife falando de ética
& todas as vezes que botei a
mão no fogo por alguém nem o fogo escapou
& a melhor coisa da praia é
olhar para ela de dentro do ar condicionado
& o Facebook é uma
torre-de-marfim cheia de altofalantes
& um paraquedista caindo em
parafuso e se encravando chão adentro
& toda xenofobia é
seletiva
& um escritor cuida das palavras da língua do
mesmo jeito que um caixa de banco cuida do dinheiro alheio
&
estudos comprovam que o mundo está cheio de indivíduos que sobrevivem ao
próprio caráter
& quando adormecemos a mente joga a âncora no
fundo de si mesma e começa a captar tremores
&
domingo, 1 de novembro de 2015
sábado, 31 de outubro de 2015
3959) A lei do linchamento (31.10.2015)
Bob Dylan falava sobre os cartões-postais com fotos de linchamentos sendo postos à venda, e virando itens de colecionadores. Naquele tempo, principalmente lá no Sul dos EUA, linchavam-se negros e migrantes, que depois eram fotografados em encenações grotescas. Outras fotos são meros retratos crus dos corpos pendentes, como a “estranha fruta” cantada por Nina Simone. E as pessoas colecionavam isso. Por que? Bem, primeiro porque gostavam, segundo porque não era proibido, e terceiro porque colecionador é alguém que tem que colecionar alguma coisa, então eles escolheram aquilo.
“As pessoas passaram a achar que têm mais direitos do que
realmente têm,” disse José de Souza Martins (“Revista e”, Sesc-SP); só que “a
relação social, no dia a dia, é uma negociação permanente.” Repito que nada no mundo se compara à
intensidade com que um rico exerce seus direitos e um pobre os seus deveres. E
o direito de vida ou morte é a distopização final.
Tremam, míseros mortais, diante de qualquer grupo de pessoas
com certeza absoluta de uma total impunidade e do mais inviolável segredo! O mundo
está cheio delas. Existem, sim, e agem como se fossem a mais mefistofélica
Camorra dos Bórgias. De situações assim
estão cheios os techno-thrillers cyber-conspiracionistas. Elites intocáveis de
homens de terno preto decolando em helicópteros e falando em cifras. Os superóis
do lumpen. A mitologia do século corporativo criou tais poderes, e a
impenitência desses poderes, para que um bilhão de zés-ninguém se catapultem
como super-homens, e tomara que algum saiba aterrissar.
“O linchamento,” diz o professor da USP, “se desenrola em um
quadro mental de absoluta loucura, é uma loucura súbita. (...) As pessoas não
sabem o que estão fazendo, e não é que elas estejam fingindo.” Isso deve valer para esses linchamentos
brutais de rua, uma pessoa sendo atacada por um grupo, e os dois acompanhados
por uma multidão. Às vezes se verifica, depois, que foi tudo meio por acaso, um
ladrãozete passou correndo e deu azar de ser pegado, somente isso. “Olhe,
doutor, minha vida pra mim é tudo, mas eu sei que pra sociedade a minha vida
não vale nada, então vida nenhuma pode valer mais do que a minha,” disse um que
por enquanto escapou.
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
3958) A ditadura do chiclete (30.10.2015)
George Orwell previu a TV onipresente e vigilante; Aldous Huxley previu as drogas recreativas. Disse ele que mais importante do que praticar violências contra a população é dar-lhe pão e circo. Hoje, as ditaduras eletrônicas cobram caro pelo pão e pelo circo, e todo mundo paga feliz. A publicidade vive a bradar: “Não se reprima! O mundo lhe deve todos os seus sonhos! Você está aqui para satisfazer seus desejos, e seus desejos são estes produtos que oferecemos aqui! Quem tentar impedir você de se divertir é um fascista.”
Esta é a linguagem da
publicidade, idioma preferencial do capitalismo de consumo. O desejo é o desejo
de possuir alguma coisa que está à venda. A felicidade está mais no ato de
comprar do que no de consumir, porque é o primeiro que é estimulado, e assim
que ele se cumpre percebemos (meio inconscientemente) que o segundo não nos era
tão indispensável assim. Na verdade eu não queria ler esse livro, queria
comprá-lo.
A
ditadura do chiclete e a democracia eletrônica se baseiam na infantilização do
público e dos meios de comunicação, na brutalização dos conteúdos (para efeito
de choque e catarse) e na perpétua reciclagem de preconceitos contraditórios,
que nunca se resolvem porque são construídos exatamente para promoverem uma
queima contínua de energia psíquica que se dirigida de outra forma poderia
colocar em risco o sistema.
O discurso publicitário pós-anos 1960, pós-contracultura,
apoderou-se de todas essas senhas dirigidas à juventude: desejo, vontade,
aventura, afirmação de independência, de liberdade, individualidade. “Liberdade
é uma calça velha, azul e desbotada”.
Como previu Huxley, as ditaduras do Super
Ego repressor foram substituídas no Ocidente pelas ditaduras do Ego
gratificado. O chiclete é mais eficaz do que o chicote. Em vez de reprimir,
melhor manipular e direcionar os impulsos da multidão. Dar aos prisioneiros
conflitos localizados e estanques, onde possam descarregar suas energias: o esporte,
as eleições. A alternância de vitórias e derrotas que não mudam nada serve para
dar a sensação de que “agora vai ser diferente”.
O próximo estágio é a participação eletrônica, interativa
(vide as votações do “Big Brother”), que produz uma sensação de consulta
democrática, “aqui quem decide é o povo”. Além de ser uma boa fonte de renda
repartida entre a TV e as telefônicas, esse sistema serve de termômetro de
opinião que ajuda o sistema a fazer correções de rumo, e um treinamento para
que no futuro questões políticas como plebiscitos de mudança na Constituição
venham a ser realizadas dessa forma (aposto como o Legislativo ainda vai
permitir isso um dia).
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
3957) Mosaico Andaluz (29.10.2015)
Ele comprou o troço pela Internet numa madrugada, durante o paraíso da entressafra, aquele período mágico em que um dinheiro de um serviço ainda não acabou e o trabalho do próximo não começou ainda. Na terceira cerveja descobriu dez saites novos de animações pornô, na quarta baixou a obra completa de um trumpetista egípcio elogiado por um filósofo romeno, na quinta torrou 21 dólares e 99, frete incluso, no tal do puzlo.
Essa era a grafia proposta por ele no ensaio que estava
escrevendo sobre os jogos de quebra-cabeças com paisagens, etc., daqueles
grandes, tipo mil peças. O ensaio era erudito mas despretensioso, misturava
citações de Georges Perec, Robert Altman, Orson Welles. O pacote chegou pelo
correio um mês depois e ele já tinha esquecido. Uma caixa com rótulos cheios de
ficha técnica, nenhuma ilustração, e dentro um saco enorme com pecinhas soltas
de um plástico maciço, fosco, agradável às pontas dos dedos.
Quem não tem uma mesa imensa pode ter duas mesas de
ping-pong numa ex-garagem, que não são usadas há anos e por isso podem ser
arrastadas para o centro, sob a luz, forradas com um tecido escuro, para que
ali comece a ser encaixada a paisagem. Ele começou a separar por cor, depois
foi tateando, descobrindo, juntando umas vinte pecinhas para mostrar uma
estátua com a garganta mordida por um macaco, ou um sol oblíquo revelando um
rosto numa parede de barro.
Usou como referência o horizonte ao fundo. A separação entre
o verde de um e o azul do outro parecia aquelas telas luminosas de Sérgio
Lucena onde céu e mar formam um tecido de uma só luz inconsútil. Dali ele
situou as bordas, encheu-as de imagens, resolveu essa moldura retangular e veio
compondo o quadro de fora para dentro, rumo ao centro.
Ao chegar no meio, descobriu que restava um buraco – e a
última peça, que era bem maior do que esse espaço. A última não se encaixava.
Levou semanas, meses, anos? No dia em que varreu tudo ao chão com fúria ele
teve a idéia. Recolocou e forrou as mesas, pôs no centro do espaço escuro essa
última peça, sozinha, soberana. Percebeu que partindo dela como início havia
encaixe, sim, desde que as demais peças em volta fossem inseridas numa ordem
específica.
terça-feira, 27 de outubro de 2015
3956) Traduzir o poema (28.10.2015)
(poema de Mallarmé)
No Suplemento Literário Minas Gerais sobre tradução
(maio), diversos tradutores fazem avaliações sobre a literatura traduzida entre
nós: Ivo Barroso, Cláudio Willer, Augusto de Campos, Denise Bottmann e
Guilherme Gontijo, entre outros. Tradução é aquela atividade onde geralmente se
perde, na melhor das hipóteses se empata, e é proibido ganhar (=ficar melhor
que o original).
A tradução de poesia tem dificuldades específicas, e não
apenas pelo fato de que se pressupõe ser a linguagem poética mais concentrada,
mais rica de nuances, etc. Grande parte da produção poética em qualquer cultura
é rimada e metrificada. Obedecer de forma estrita à rima e à métrica do
original em outro idioma, e além disso manter o sentido dos versos, é uma
tarefa inglória. Rimas exatas poderiam ceder lugar a rimas toantes, por
exemplo; o verso poderia variar minimamente de extensão.
No SLMG, o tradutor Álvaro Faleiros diz, sobre isso, que
nas traduções poéticas brasileiras há uma “busca de estrutura isomórfica”, ou
seja, de um poema que reproduza com rigor o conjunto de efeitos do original.
Mas ele diz:
“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição
acentual do verso, mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias
eram tão determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado
inverter a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser
isomórfica (ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No
jogo de perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais
como ‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o
meu ‘topo’”.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
3955) Borges nos EUA (27.10.2015)
Muita gente não sabe, mas a primeira publicação de Jorge
Luis Borges nos Estados Unidos não foi numa revista acadêmica, e sim no
popularíssimo (ainda que sofisticado, no gênero) Mistério Magazine de Ellery
Queen, revista conhecida pelo público de literatura policial no Brasil. Não
achei nenhuma publicação dele anterior a esta, e olha que procuro há tempos.
O texto foi “The Garden of Forking Paths” (nosso “O Jardim
dos Caminhos que se Bifurcam”), um dos melhores contos borgianos. Um conto que
poderia figurar numa revista de FC (pela sua vertiginosa teoria dos universos
paralelos) mas que também cabe numa revista policial, por descrever um crime
cujo propósito o leitor só descobre no último parágrafo. Essa publicação deve
ter alegrado o 49o. aniversário do argentino, pois ocorreu no mês de agosto de
1948, quando ele completou essa idade.
Tudo se deveu a Anthony Boucher, grande amigo de Ellery Queen. Boucher não apenas traduziu o conto para o inglês mas também (diz a introdução) “persuadiu o autor a submetê-lo ao Terceiro Concurso Anual” da revista. O conto de Borges apareceu num “Número com Todas as Nações”, ao lado de autores como Chekhov, Simenon, Ferenc Molnar, Karel Capek, Gabrielle d’Annunzio, Cornell Woolrich e outros.
Na introdução, Queen chama o conto de “uma obra-prima em
miniatura”, e diz: “Señor [sic] Borges é uma importante figura literária
argentina: poeta, crítico, ensaísta e antologista. Em toda sua obra, especialmente
em sua ficção, o autor usa o tema do labirinto – é uma monomania persistente,
que recorre em sutis variações.”
E adiante comenta: “Outra mania sua: ele tem um apego fora
do comum pela erudição fictícia. Por exemplo: é capaz de inventar um autor ou
uma escola literária completamente fictícia e em seguida escrever uma
dissertação deliciosamente erudita sobre a esotérica importância dessa figura
ou esse movimento imaginário; mas a fantasia e a sátira que ele sabe urdir às
suas opiniões críticas não são sempre destituídas de significado factual.”
sábado, 24 de outubro de 2015
3954) Lanterna Mágica (25.10.2014)
Em meados dos anos 1970 eu estudava no Campus II da UFPB
(atual UFCG) e de vez em quando apareciam uns trabalhinhos pra ajudar os
estudantes a descolar uma nota. Não era muita coisa, mas para quem vivia de ser
crítico de cinema qualquer “pingado” de fora dobrava a renda do mês.
Fomos para uma cidade do sertão, fazer uma pesquisa. A equipe, dirigida por Bobó, contava comigo e mais o saudoso Geraldo Bode Rouco, e Hermano Babalu, além do motorista da kombi, Erivaldo. Nosso trabalho diário, das 8 da manhã às 6 da tarde, consistia em preencher uma cota diária de entrevistas com moradores locais. A lista tinha dezenas de nomes. Uma entrevista normal tomava de 40 a 50 minutos, prancheta em punho. De noite a gente jantava na pensão e estava livre.
Fomos para uma cidade do sertão, fazer uma pesquisa. A equipe, dirigida por Bobó, contava comigo e mais o saudoso Geraldo Bode Rouco, e Hermano Babalu, além do motorista da kombi, Erivaldo. Nosso trabalho diário, das 8 da manhã às 6 da tarde, consistia em preencher uma cota diária de entrevistas com moradores locais. A lista tinha dezenas de nomes. Uma entrevista normal tomava de 40 a 50 minutos, prancheta em punho. De noite a gente jantava na pensão e estava livre.
Na primeira noite que passamos me informaram onde era o
cinema: perto da praça tal. Naquele tempo eu queria imitar Jean-Pierre Léaud
(não só eu, aliás) e me obrigava a ver um filme em pelo menos um cinema de cada
cidade que eu fosse. E de tarde eu tinha visto passando no centro da cidade uma
camionete de altofalante chamando todos para o cinema às oito da noite.
Cheguei meia hora antes. O local era uma espécie de garagem
retangular, vazia, a parede do fundo pintada de branco. Nem poltronas, nem
cortinas, nem tela, nem música de orquestra, nem bombonière, nem cartazes e
fotos nas paredes.
Quinze minutos depois parou uma camionete, uns caras armaram um praticável, em cima dele uma bancada onde pousaram um projetor IEC 16mm e de lá puxaram um fio comprido.
Como por acordo coreográfico, começaram a chegar pessoas. Chegavam e iam entrando. Um trazia um tamborete, outro uma cadeira de plástico de bar, outro uma cadeira de palhinha, um casal trazia a quatro mãos uma poltrona de dois lugares, e uma velhinha caminhava nobre à frente de três garotos magros que portavam nos ombros uma cadeira de balanço.
Quinze minutos depois parou uma camionete, uns caras armaram um praticável, em cima dele uma bancada onde pousaram um projetor IEC 16mm e de lá puxaram um fio comprido.
Como por acordo coreográfico, começaram a chegar pessoas. Chegavam e iam entrando. Um trazia um tamborete, outro uma cadeira de plástico de bar, outro uma cadeira de palhinha, um casal trazia a quatro mãos uma poltrona de dois lugares, e uma velhinha caminhava nobre à frente de três garotos magros que portavam nos ombros uma cadeira de balanço.
Conversei com o cara. Ele tinha sido porteiro do cinema local. O cinema fechou. O que tinha nos armários foi pro lixo. Ele salvou um caixote cheio de latas de película, e tempos depois quando viu aquela garagem sem uso resolveu alugar. Estava juntando dinheiro para comprar seu primeiro longa de faroeste. Quando juntasse, seriam sete horas de ônibus até Campina Grande, para comprar das mãos do velho Expedito um Trinity ou Sartana qualquer, sonhava ele, “e com isso eu vou ter em cinco anos grana suficiente pra montar um cinema de verdade”.
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
3953) A Vingança do Mestiço (24.10.2015)
Me encomendaram uma sinopse de filme de aventuras. Pensei em Trigger Montanares. Trigger Montanares é pistoleiro de aluguel. É mestiço e tem rompantes de sádico, porque todo mestiço é vingativo. “O conflito de duas raças antagônicas correndo dia e noite no seu sangue não pôde deixar de produzir-lhe aquela nevrose íntima que em alguns casos se externa em mera arruaça mas em outros se refina em crueldade.” O mestiço é mentiroso e dissimulado, porque pertencendo a dois mundos ele mente a ambos e na verdade não pertence a nenhum. Ninguém precisa dele, nenhum grupo o reivindica para si.
O parágrafo acima é um arremedo das justificativas
dramatúrgicas para composição de personagens. Todo personagem é movido a
referências, movido a citações, a indicações psicológicas, sociais, afetivas,
místicas, o escambau. Só que referências, quando muito usadas, viram
fórmula-fácil do lado de quem usa e clichê-redundante do lado de quem assiste
ou lê. Geralmente encontramos, em histórias de ficção de qualquer gênero,
indicações que nos dão uma primeira idéia básica do personagem e colorem os
seus atos subsequentes. A grande maioria só faz sentido nas fórmulas a que
pertencem (folhetim, novelão, etc.). Mestiços são vingativos, bastardos são
cruéis, herdeiros são abnegados, cortesãs são piedosas, jovens das melhores
famílias revelam-se capazes de ações escabrosas, desordeiros de rua
descobrem-se capazes de um ato corajoso e final que os redime. Todo perfil
humano é plausível. O verdadeiro teste é o que o autor vai obrigar esse perfil
a fazer, e é aí que o escritor às vezes desmorona.
Um sentido epidérmico de realismo diz que representação
realista é a que reproduz o que os olhos veem. Eu diria que existe um realismo
funcional ou relacional, mais profundo e mais ancestral do que o dos nossos
olhos. Quanto lemos Pato Donald não ligamos que ele seja um pato marinheiro nu
da cintura para baixo conversando com um rato que dirige um automóvel. As
relações entre eles, as funções cumpridas por eles são humanas, são reais; seu
realismo é todo humano.
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
3952) O avanço da arte (23.10.2015)
O poeta Baudelaire, perguntado sobre “a vanguarda”, dizia que não gostava de metáforas militares.
Vanguarda não é uma posição absoluta, apenas uma indicação relativa. O ex-presidente José Sarney já foi referido, em seu tempo, como “a vanguarda do atraso”, no sentido de ser o menos reacionário do grupo de políticos ligados à ditadura.
O que me traz à memória os antigos desfiles estudantis de 7 de setembro, quando formávamos pelotões por ordem de altura. Era uma honra desfilar na primeira fileira de cada pelotão, chamada de “testa”.
Acontece que desfilar nos pelotões mais à frente era também uma honra, de modo que quando a gente ficava na última fileira de um pelotão ficava soltando piada com o pessoal do pelotão que vinha logo atrás, chamando-os de “ralé”, ao que eles retrucavam: “Vocês são rabeira, nós somos testa”.
E la nave va.
Todo artista de vanguarda imagina que é testa do primeiro
pelotão, e que todos os artistas do mundo estão vindo atrás dele (ou se não
estão, cabe a ele ironizá-los até que venham).
Pintores abstratos proclamaram cem anos atrás a morte da pintura figurativa, tal como os poetas concretos proclamaram cinquenta anos atrás a morte da poesia discursiva. Talvez não tivessem razão em termos objetivos (as mortes anunciadas não aconteceram), mas compreende-se seu entusiasmo: sem uma crença cega na importância e na renovação estética do que está propondo ninguém consegue enfrentar o dilúvio de preconceitos que se derrama sobre essas tentativas de revolução.
Pintores abstratos proclamaram cem anos atrás a morte da pintura figurativa, tal como os poetas concretos proclamaram cinquenta anos atrás a morte da poesia discursiva. Talvez não tivessem razão em termos objetivos (as mortes anunciadas não aconteceram), mas compreende-se seu entusiasmo: sem uma crença cega na importância e na renovação estética do que está propondo ninguém consegue enfrentar o dilúvio de preconceitos que se derrama sobre essas tentativas de revolução.
Isso faz a cidade (= a Arte) começar a se expandir naquela direção. O que não a impede, claro, de estar ao mesmo tempo se expandindo em outras.
Cada grupo de vanguardistas, por dever de ofício e fervor ideológico, só presta atenção ao movimento que se dá na direção do seu próprio subúrbio. Quem descobre uma maneira nova de fazer arte percebe o quanto aquilo é necessário, e diferente, e precioso, e oportuno. E tende a achar que o futuro inteiro da arte é aquilo que ele descobriu; que todos os artistas deveriam começar a produzir daquela forma, e que a cidade só deveria se expandir na direção do seu subúrbio.
A evolução da arte, graficamente, não tem a forma de uma seta onde uns são necessariamente mais avançados do que todos os outros. Seria uma espécie de rosa-dos-ventos desigual, expandindo-se em todas as direções, só que numas mais depressa do que em outras.
quarta-feira, 21 de outubro de 2015
3951) O rosto do poema (22.10.2015)
("Poema", de Joaquim Cardozo)
O rosto do poema é o formato que ele adquire na página
impressa. Aquilo que chamamos “a mancha gráfica”, o espaço ocupado pelas
palavras impressas na página branca. (Quando se trata de trechos em prosa
cerrada, essa mancha é um retângulo impresso cercado por margens em
branco.) A mancha do poema revela, no
primeiro vislumbre, sua extensão total, o comprimento das suas linhas, a (ir)regularidade
das estrofes. Nessas manchas de texto, que visualizamos de chofre antes de
decompô-las em palavras, percebe-se a respiração do poema, as expansões e
contrações da voz que o enuncia.
Alguém abre um livro e vê aquela massa compacta de texto que
é o “Uivo” de Allen Ginsberg, aquelas linhas intermináveis que se quebram à
margem direita e se derramam para a linha logo abaixo. Ao começar a ler, a
pessoa sabe que todo o resto do texto vai seguir aquele formato, vai obedecer
ao ritmo caudaloso daquela dicção (Ginsberg já afirmou que nos poemas dele o
tamanho da linha era a capacidade do seu pulmão, era toda frase que ele fosse
capaz de dizer antes de precisar encher os pulmões de novo). Se na página
seguinte o leitor acha um poema de e. e. cummings, vai ter uma informação
visual diferente, a começar pela abolição das maiúsculas, as palavras partidas
em pedaços verticais, etc. O poema típico de Ginsberg parece uma parede; o de
cummings parece uma folha caindo devagar.
Sempre que releio “O Caso do Vestido” de Drummond me
pergunto por que motivo ele partiu em dísticos (grupo de 2 versos) esse longo
rimance ibérico-cordelesco. Poderia ter mantido o fluxo vertical do texto, que
é todo em setissílabos, marcando apenas as pausas internas à própria narração,
como o fez em tantos outros (“O Elefante”, “Morte do Leiteiro”, “A Mesa”,
etc.). Mas não, ele saiu quebrando o poema todo de 2 em 2 linhas, o que torna o
“Caso do Vestido” facílimo de localizar, apenas folheando o livro. Tão
reconhecível quanto a divisão de 3 em 3 usada em “A Máquina do Mundo”, sem que
isso se deva a nenhuma imposição interna. Talvez alusão aos tercetos de Dante
na Divina Comédia, mesmo sendo brancos (sem rima) os versos que ele agora
usa. O efeito rítmico, ao meu ver, é o de conter um fluxo que poderia ser
contínuo, como quem desce de carro uma ladeira dando pisadinhas leves e
constantes no freio para brecar a aceleração da descida.
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