segunda-feira, 5 de outubro de 2015

3937) Dicionário Aldebarã XI (6.10.2015)




(ilustração: "Orchestre de Mystère", Alexander Jansson)


O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Umbriown”: a irresistível sonolência que se apodera de uma pessoa quando está tentando sem sucesso fazer uma criança dormir. 

“Hairátis”: trepadeiras com folhas minúsculas de colorações variadas, que são induzidas a crescer em volta de janelas ou colunas, formando desenhos tradicionais que devem ser seguidos à risca. 

“Anústios”: os pequenos e contidos sinais de interesse recíproco que duas pessoas se endereçam, num contexto social em que essa atração não pode ser claramente expressa. 

“Fessiun”: nuvem de onde cai chuva forte, vista à distância no horizonte. 

“Veniur”: setor do departamento de recolha do lixo onde são recuperados e arquivados todos os documentos, cartas, manuscritos, etc. encontrados no lixo das cidades, e que ficam à disposição para serem resgatados em caso de arrependimento.

“Farguile”: a sensação difusa de expectativa que experimentamos diante de uma carta que acaba de chegar, um toque na campainha, um pacote trazido por alguém. 

“Barléns”: pedaços intactos de paredes que, nas demolições de casas, são preservados porque neles foi gravada uma imagem, ou foi pichada uma frase considerada importante. 

“Seppini”: alçapões no piso dos aposentos dando diretamente para caixotes de lixo no porão, para facilitar a limpeza da casa. 

“Dorreon”: fatias de frutas impregnadas de um molho azedo especial, muito apreciadas como tiragosto para acompanhar certos tipos de vinho.

“Antissas”: lâminas de metal imantadas, compridas, retangulares, que se costuma enfiar nas frestas e embaixo dos móveis para atrair e recolher moedas perdidas. 

“Glissenso”: o encontro casual entre duas pessoas num momento em que cada uma tinha certeza absoluta de que a outra estava num lugar completamente diferente. 

“Heriunds”: tabuletas para escrita, pregadas junto à porta das residências, para que as visitas deixem recados quando não encontram ninguém em casa. 

“Cavel”: o último bar ou restaurante que se encontra aberto durante a madrugada, quando tudo indicava que isto seria impossível. 

“Darnilan”: interjeições formadas por sílabas sem sentido, pronunciadas em ambientes ou ocasiões onde seria ofensivo dizer algo mais forte.  

“Margnim”: superstição segundo a qual, em certas circunstâncias astronômicas, tudo que começa mal acaba bem, e tudo que começa bem acaba mal.





sábado, 3 de outubro de 2015

3936) De sapato não sobra (4.10.2015)




(O Bandido da Luz Vermelha)


Não foram poucos os sertanistas, nos antigos tempos das “entradas e bandeiras”, que se largaram descalços para desbravar os cerrados, as florestas e os sertões. 

Botas eram artigo de luxo, e sapatos eram para ser usados na cidade, em ocasiões sociais. 

Sérgio Buarque cita documentos dizendo que eles “a pé e descalços marchavam por terras, montes e vales, trezentas e quatrocentas léguas, como se passeassem nas ruas de Madri”.  Sapato era para os fracos.

“Quem [es]tiver de sapato não sobra!” é o berro reiterativo do anão no Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968). 

Ele quer dizer que quando soar a trombeta do Apocalipse, ou o apito liberando o Arrastão, vai para o paredão quem usar esses sapatos protetores dos pezinhos de quem nunca pegou no pesado. O Armagedon será seletivo. Figurino vai ter peso na lei da sobrevivência.

O Brasil cresceu descalço. Os caminhantes traziam as botas às costas, pendentes de uma vara, e só as calçavam ao entrar na cidade, depois de lavar os pés. Daí a existência de tantos pontos de entrada com nome de “Lavapés” ou semelhante. 

Esse hábito condicionou até (segundo Sérgio Buarque, Caminhos e Fronteiras, 1957) a fabricação de estribos de metal, que eram feitos de molde a encaixar os dedos dos pés do cavaleiro ou cavaleira.

Em Isaías Caminha (1909) Lima Barreto conta as manifestações que incendiaram o Rio de Janeiro durante a Revolta da Vacina em 1904. Para efeito ficcional, ele a transformou no romance na Revolta do Calçado: 

“Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita.” (Cap. X). 

Mais adiante (cap. XII) um jornalista comenta: 

“As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde... Os estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. Não falam noutra coisa. Vi um carroceiro dizer para outro que lhe ia na frente guiando pachorrentamente: Olá hé! Estás bom para andares calçado que nem um doutor!”.

Lembro do velho cinema poeira do bairro popular de Zé Pinheiro, o Cine Arte. Nos anos 1960 o Cineclube de Campina Grande (leia-se Luís Custódio) tentou implantar ali uma sessão de Cinema de Arte, pois o cinema só passava filmes de Maciste e Golias. 

Exibimos O Picolino, musical com Fred Astaire. Na entrada do cinema lia-se numa placa enorme: “Proibido Entrar Descalço”.  Quando temos dúvida sobre a classe social a que pertence um brasileiro, ainda é costume baixar os olhos para os seus pés.



sexta-feira, 2 de outubro de 2015

3935) A última imagem (3.10.2015)




Existe um certo fetiche fotográfico de possuir (ou ter clicado) “as últimas fotos de Fulano de Tal” ou “a única foto conhecida de tal ou tal coisa”. Durante algum tempo a imprensa mostrou a última foto de John Lennon, autografando um disco para o fã que o mataria horas depois. Não sei se foi confirmada a autoria de outra, esta mais terrível, e se legítima provavelmente é a última: uma foto que vi na Manchete ou Fatos & Fotos, o corpo nu do Beatle na pedra do necrotério, o cabelo caído de lado, o perfil visível. Lennon foi um dos sujeitos mais fotografados do seu tempo. Até na pedra.

Não me ocorre agora o nome do fotógrafo que fez a única foto em que John Kennedy e Marilyn Monroe aparecem juntos. Esta foto em preto e branco foi capa de um livro brasileiro recente. Parece um conto de Edward D. Hoch: o presidente-casanova baixa a ordem de que ele e a sereia vulcânica de Hollywood não podem ser vistos nem fotografados juntos. Isso vira uma “missão impossível”, espicaça o orgulho dos fotógrafos; e um cara esperto consegue o flagrante.

As duas fotos conhecidas de Robert Johnson são duas raridades, e acho que não se sabe quem foram seus autores. Há pouco tempo houve uma celeuma interminável pelo possível aparecimento de uma hipotética terceira foto, mas parece que se mostrou ser um rebate falso.

Por foto rara não me refiro a fotos célebres que passam por “flagrante miraculoso de um momento de ação intensa e dramática”, como os soldados soviéticos encenando o hasteamento da bandeira da foice e do martelo nas ruínas do Reichstag, que, um dia depois, foi refeito para poder ser registrado pela câmera. A foto tem valor? Claro, mas não por ser um flagrante, tem valor porque faz parte de uma encenação maior, onde a foto é somente o McGuffin de todo o resto. A grande foto rara deveria ser, idealmente, uma foto casual feita por um anônimo, e não por um artista famoso ou um paparazzo que está no Guiness.

Pensei em Kennedy agora. Eu estava jogando bola no Alto Branco quando o rádio bradou que ele morreu. O crime mais mal-contado do século 20 foi filmado e fotografado por todos os ângulos, naquele incipiente começo dos anos 1960, onde tudo era caro e a cada foto batida a gente sentia o bolso ficar mais leve. E mesmo assim havia gente clicando tudo, bem ou mal esse material virou o que restou da História.

Nunca se fotografou tanto, chega parece que uma Inteligência Artificial mandou todo mundo fornecer e circular a maior quantidade de informação possível a respeito de si mesmos. Para que as futuras réplicas fiquem bem feitas, e cheguem até a pensar que são reais, tal como nós.



3934) A Vida e os Tempos de Nenê Cabe Tudo (2.10.2015)



(foto: Johan Strindberg)

Cap. 1 – De como Nenê Cabe-Tudo ganhou esse nome (pois fora batizado Ediclécio Nogueira Mendes) por causa da kombi-furgão que ele usava para fazer mudanças todo dia, o dia todo, sempre nos limites do bairro de Santa Rosa, desde que um cálculo de logística e de combustível o convenceu a dar prioridade a um grande número de viagens curtas.

Cap. 2 – De como no dia que nos compete Nenê estava entregando um carregamento de isopores na Várzea Preta, na rua da birosca de Antõe Diomede, lá no fim, num galpão de carga e descarga do lado de lá da igreja do Grão Senhor.

Cap. 3 – De como esses isopores não eram as caixas vazias que ele visualizou quanto o seu contato fez a proposta por telefone, mas a voz foi falando logo em valores, e ele achou que por aquele preço levaria os isopores mesmo que estivessem carregados de lingotes de ouro, o que não era certamente o caso, era algo lacrado e mais leve.

Cap. 4 – De como seguiram-se, em rápida sucessão, um frete tranquilo num fim da tarde preparando o terreno para um merecido lanche regado a cerva, um veículo desgovernado acertando-o onde ele menos esperava, isopores felizmente intactos espalhando-se em volta da kombi virada, o desembarque de alguns policiais perplexos logo sucedidos por uma equipe de caras com roupas comuns mas que pareciam voar todos pelas mesmas coordenadas, e uma sala de interrogatório.

Cap. 5 – De como Nenê não teve remédio senão entregar alguns clientes, tanto os donos do galpão quanto os remetentes das caixas, o que lamentou muito, mas vão-se os anéis ficam os dedos, e antes que a investigação acabasse ele já tinha aceitado uma proposta para fazer um curso de inglês em Durban, numa mistura de bolsa de estudos e delação premiada. 

Cap. 6 – De como em Durban pairou com força sobre Nenê uma nuvem depressiva, lúgubre, prejudicando-lhe até a saúde, e da qual ele só se livrou tornando-se empresário de um grupo de dezoito coristas de folias parisienses de pernas nuas, casou com uma, teve xamego com meia dúzia, associou-se a uma frota de navios de cruzeiro, ficou milionário, e finalmente solteiro de novo.

Cap. 7 – De como Nenê entrou para um mosteiro no fim daquele inverno, o primeiro dos cinco que passaria ali, em silêncio quase absoluto, numa vida de intensa imersão em si próprio, repassando tudo, principalmente os erros, mas os acertos também, embora isso seja apenas conjetura ociosa, pois ao sair do mosteiro, e desde então, ele nada comentou com ninguém.

Cap. 8 – De como ele tirou a barba, voltou a crescer o cabelo, comprou a Antõe Diomede uma casinha no Santa Rosa, financiou a compra de uma van e olha ele aí de novo.





3933) Universos compartilhados (1.10.2015)




(Norman Rockwell, "Crackers in Bed")

No linguajar editorial da ficção científica, um universo compartilhado é um conjunto de ambientes, personagens, enredos, etc., criados pelo famoso autor Fulano, ao qual diferentes autores recorrem para ambientar novos livros. A obra de escritores como Isaac Asimov, Frank Herbert e outros inclui narrativas épicas em grande escala, onde podem caber mil pequenas aventuras, ou “side-quests”, no linguajar dos videogames. Agentes literários ou descendentes dos autores vigiam para que o seu universo não seja avacalhado pelos utentes. No caso de autores de grande fama como estes, escrever em seu universo talvez seja como um desses clubes onde ninguém se candidata: espera ser convidado. Há portanto um universo que alguns autores partilham entre si, de acordo com regras que todos aceitam. É uma partilha entre mestre e aprendizes, entre guru e discípulos, ou entre profissionais e profissionais. 

Outras vezes, já me ocorreu usar o termo “universo compartilhado” para descrever, numa direção totalmente oposta, a experiência do leitor de um livro. Aí não se trata de escrever uma obra com um olho na página e o outro na memória afetiva. Trata-se da entrega total e até impudica de um bom leitor diante de um bom texto, quando as palavras a certa altura parecem dado uma senha, desencadeado alguma coisa. O leitor entra no universo de Osman Lins, no de Arthur C. Clarke, no de Calvino, e parece nunca ter existido outro universo além daquele que a página ativa, que ela faz acordar na imaginação pessoal e na memória atávica do leitor.

O universo assim compartilhado não diz respeito somente ao ambiente onde se passa a história. Tem a ver com o momento mental em que leitor e autor conseguem coexistir durante a leitura. O mesmo casulo de referências, o mesmo conhecimento básico de algo impossivelmente complexo mas que pode ser reconstruído literariamente, as mesmas regras de etiqueta no exame e classificação dos signos verbais. O autor é um regente invisível. O leitor do romance policial, por exemplo, é um leitor de pé atrás, cabreiro, que suspeita de tudo. Algum outro leitor de romance se dá o trabalho de ficar prestando atenção, ao longo de 400 páginas, em quem está deixando impressões digitais, e onde?


O universo da ficção científica é compartilhado por todo tipo de pessoas. Algumas acham mais importante o Mistério do que a Resposta. Eu concordo, mas por uma casa decimal de vantagem. Alguns a veem como uma epopéia de conquista. Outros como uma câmara de simulação de modelos prováveis e cenários possíveis. Cada um encontra a si mesmo nela, como em qualquer banco de dados de bom tamanho.





quarta-feira, 30 de setembro de 2015

3932) Cinco perdidos (30.9.2015)





(ilustração: Rodney Allan Greenblat)


Elisha Nelbroy III, de Cincinatti (Ohio), 36 anos, perdeu a aliança numa briga de bar e acabou separando da esposa que nunca acreditou que foi mesmo uma briga. Ele era arriado dos quatro pneus por ela. Vivia suplicando uma chance. Dois anos depois a garçonete do bar, que o conhecia, achou a aliança numa fenda da madeira sob o balcão, e a devolveu a Elisha. Ele botou a aliança no bolso, a moça no carro, foi até o trabalho da esposa (era na redação do jornal da cidade) e exibiu a prova diante de todo mundo. Hoje vive a esposa pedindo perdão e ele nem aí, anda saindo adivinha com quem.

A família Dambroa, do Cariri paraibano, perdeu um tesouro enterrado por um antepassado seu, em coordenadas que foram decoradas por seus três filhos, só que depois da morte do pai cada um deles as transmitiu para os seus descendentes com erros de interpretação, de sorte que até hoje ninguém chegou a um acordo sobre os dizeres da fórmula e todos brigam sem parar atribuindo-se culpas, enquanto o tesouro continua esperando que brilhe no clã alguma fagulha de inteligência, porque esperar por sensatez é tempo perdido.

Amalic Tangrau, de Istambul (Turquia), 45 anos, perdeu um gato ao se mudar de sua antiga casa em Cihangir, para um novo condomínio do outro lado da cidade. No segundo dia após a mudança o gato sumiu. Os amigos e vizinhos o aconselharam a procurar o gato no antigo endereço, mas ele recusa-se, dizendo que é impossível o gato ter voltado, uma vez que durante a mudança foi transportado numa caixa, sem ver por onde estava passando.

Jean-Claude Soubiroux, de Paris, 33 anos, perdeu uma frase lida na adolescência num livro aberto ao acaso, de cujo título não se recorda, e cujo autor não conhecia; gravou na memória essa frase de cerca de vinte palavras, e dedicou toda sua vida adulta a tentar recuperá-la, na escola, na Sorbonne, nas rodas literárias, nas bibliotecas, sempre em vão, até mesmo depois do advento do Google, onde ele já a digitou com todas as variantes imagináveis em todas as línguas que pôde, mas continua sem saber de quem é e onde a encontrou.

Joaquim Lúcio Quintães, do Crato (CE), 41 anos, fazendeiro e dono de frigorífico, foi jogar uma pelada na fazenda de um vizinho e perdeu no gramado uma volta de ouro que trazia ao pescoço, e que tinha sido o último presente de sua mãe, “in extremis”. Dois dias depois, sem ninguém achar a coisa apesar da polpuda recompensa, Joaquim comprou o campo ao vizinho, bem como uma faixa de dez metros em torno do perímetro, passou o pente fino ali durante dois meses e quando um morador achou a correntinha ele a tomou de volta e mandou dar uma surra no rapaz quando ele falou em dinheiro.



terça-feira, 29 de setembro de 2015

3931) O enigma nas letras (29.9.2015)




Em Arsène Lupin, Ladrão de Casaca, a primeira coletânea de contos do gentleman-assaltante-detetive criado por Maurice Leblanc, grande sucesso do romance policial entre 1905-1935, há um conto em que o mistério repousa numa fórmula antiga, preservada através das gerações.

Convidados importantes estão no castelo de Georges Devanne, admirando “as incomparáveis riquezas acumuladas através dos séculos pelos senhores de Thibermesnil.” Numa das torres, Devanne mostra a todos o frontão da estante, onde o nome do castelo está soletrado com sólidas letras de ouro.

Vou omitir a aventura, subsequente, porque me interessa a frase da fórmula antiga. Ela diz, no original francês: “La hache tournoie dans l’air qui frémit, mais l’aile s’ouvre, et l’on va jusqu’à Dieu.”  Mais ou menos: “O machado gira no ar que treme, mas a asa se abre e vai-se até Deus.”  Durante séculos essa indicação do tesouro da família passou de geração em geração, transmitida com fervor por pessoas que já as receberam de quem não as compreendia. Eram as coordenadas do tesouro. Esperava-se que um dia algum descendente da família descobrisse o seu sentido.

Arsène Lupin percebe que os objetos citados na frase estão ali mascarando três letras, porque em francês é muito parecida a pronúncia de “hache” e H, “air” e R, “aile” e L.  Ele descobre que entre as sólidas letras de ouro por cima do frontão da estante monumental, dizendo THIBERMESNIL, existem três que são móveis: o H gira e o R treme e o L se abre. “E vai-se até Deus.”  Executando esses movimentos nas respectivas letras, abre-se a porta ancestral da passagem secreta, e vai-se até a capela do castelo por um subterrâneo. (Que Lupin utiliza para saquear as riquezas do castelo, no primeiro movimento dessa trama.)

O mistério vinha pelo menos desde o reinado de Henri IV (morto em 1610). A pessoa que cifrou a senha de abertura do mecanismo usou premeditadamente letras cujos nomes, ditos em voz alta, evocavam substantivos variados: machado, ar, asa. Era fácil construir uma estrutura memorizável em torno desses três substantivos, sem dar a entender que eles estavam ali apenas para representar três letras.

É um enigma engenhoso, porque se vale da superposição entre linguagem oral e linguagem escrita, usando uma para preservar pistas em outra. Neste conto, Lupin mede forças com Sherlock Holmes (no livro chamado Herlock Sholmes, por querelas autorais). O conto de Leblanc (1906) lembra “O Ritual Musgrave” (1893) de Conan Doyle, também sobre uma fórmula preservada mas não compreendida. Mas Leblanc vai um passo além de Doyle, como bom discípulo, e introduz uma criptografia de natureza mais original.



domingo, 27 de setembro de 2015

3930) Ser fã (27.9.2015)




Era um coquetel de lançamento. A certa altura fui à longa mesa coberta de toalhas brancas para devolver ao garçom um morto e receber um vivo. 

Um cara que eu conhecia de vista aproximou-se. Brindamos, lustramos algumas frases polidas encontradas nos bolsos, e daí a pouco ele me veio com essa: “Estou até lhe devendo um pedido de desculpas. Uma vez fiz um mau juízo do seu caráter.”  

Era um cara corajoso, porque na minha terra dizer isso é motivo para execução sem reza. Ainda bem que a barbárie da metrópole me civilizou.

“Mas, por que?!”, exclamei, misturando surpresa e bom humor. Ele disse: “Um amigo nosso me mostrou uma crônica sua em que você escarnece de Borges. Ora, escarnecer do maior escritor do século XX é uma coisa inadmissível, não acha?”  

“Eu, escarneci de Borges?”. Meu espanto não tinha limites. Eu faço piadas até com a minha falecida mãe, quanto mais com Jorge Luís Borges.

“Devo ter dito alguma ironia,” falei, “mas não houve intenção de ofender, eu sou um grande fã de Borges.”  Pensei que isso era o bastante, mas ele voltou à carga: “Não, você não é fã de Borges. Você é um leitor casual. Se fosse fã estava vestido como eu.”  

Só então reparei que, sob o casaco de couro, ele estava usando uma camiseta com a imagem do autor do “Aleph”, uma daquelas fotos dele sentado, com as mãos pousadas sobre o castão da bengala.

Alguém já disse que um fanático é um sujeito que não muda de opinião nem de assunto. O impulso de ser fã – de ter uma admiração incondicional e permanente por algo ou alguém – não está somente em quem gosta de “Star Trek” ou do “Senhor dos Anéis”. Existe também entre os admiradores da arte erudita. 

Basta ver as cerimônias que os fãs de James Joyce realizam todo ano no “Bloomsday”, 16 de junho, o famoso dia em que transcorrem os acontecimentos do livro “Ulisses”. No mundo inteiro o pessoal se fantasia, se reúne em pubs, toma cerveja Guiness, recita e canta coisas relativas a Joyce e à Irlanda. Muitos são eruditos, PhDs, críticos vetustos, autores premiados; mas nesse dia adolescem todos, todos se tornam tão fãs quanto um guri fantasiado com os óculos e a vassoura de Harry Potter.

Já escrevi aqui sobre um depoimento de Antonio Cândido confessando as brincadeiras de fãs que eles e seus colegas, jovens, faziam tendo por tema os romances de Eça de Queiroz. Temos uma tendência a achar que a instituição do “fandom” foi criada por Hollywood, a qual apenas a industrializou e reexportou. 

Fãs, nesse sentido, já eram os estudantes paulistanos que em 1886 foram aplaudir Sarah Bernhardt no Teatro São José, e desatrelaram os cavalos de sua charrete, puxando-a eles mesmos até o Grande Hotel, com a diva dentro.



sexta-feira, 25 de setembro de 2015

3929) Otacílio Batista Patriota (26.9.2015)




Acontece hoje em João Pessoa o “XIII Tributo a Otacílio Batista – a Poesia Vive.” Será no Sindicato dos Bancários, às 20 horas, com a presença de poetas e artistas e admiradores da poesia e da grande figura que foi o mestre Otacílio. Será lançado o CD Nas Asas do Uirapuru – Sílvia Patriota canta Otacílio Batista. Eu tentarei me fazer presente com o que vem a seguir.

Um poeta não tem obrigação de ter um nome metrificado. O registro civil vem muito antes de ele se definir como poeta. Acontece às vezes, porém, que os pais são amantes da poesia, e sabem o valor de um verso bom. O nome do poeta já nasce cantando, ele vê a si mesmo entoando uma melopéia, cadenciando as sílabas: “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”. É um verso alexandrino de doze sílabas, a fórmula mágica do Parnasianismo, do Simbolismo. O verso que um dia faria Bilac famoso.

Do mesmo modo, há poetas na cantoria de viola que têm seu nome na cadência inconfundível no martelo – como é o caso de Otacílio Batista Patriota. Seu nome é um verso de martelo, o decassílabo com acento forte na terceira, sexta e décima. Lembro de ler pela primeira vez esse nome justamente como um verso de martelo, fechando com chave de ouro a estrofe famosa de José Nunes Filho, que encontrei nas páginas de F. Coutinho Filho:

“Eu conheço José Alves Sobrinho / Pedra Azul, João Severo e Maranhão; / escrevendo poesia tem Cancão, / um nativo da terra de Marinho. /  Zé Soares, Catota, Canhotinho / Louro e Pinto, que nesses ninguém bota; / tem José Bernardino em minha nota / tem Amaro, Dalvino e outros seres, / Generino Francisco dos Prazeres, / Otacílio Batista Patriota.”

Desses, fui amigo de José Alves, de Louro e de Otacílio. Viajamos juntos, fui a muitas cantorias dele, de pé de parede, na Paraíba e em Pernambuco. Acompanhei-o em festivais e congressos. Ria com seus versos irreverentes. Admirava sua voz clara, precisa, de sílabas bem marcadas, dicção impecável. Uma vez, numa praça numa capital brasileira, após a noitada de repentes, vi Otacílio atrás do palco, cercado por uma multidão de fãs querendo comprar os folhetos e os livros. Entre tantos abraços e fotografias, ele parecia um Carlos Gardel, elegante, sorridente, atarefado, atendendo a todos.

Sempre fui perguntador, e Otacílio era mais receptivo do que outros. Louro, por exemplo, muitas vezes levava tudo na piada, mas Otacílio, ao ser indagado, fazia uma longa e articulada explanação, dizendo exatamente a informação que a gente precisava, fosse de métrica, rima ou oração. Sempre bem vestido, distinto, com uma piada maliciosa na ponta da língua, e um improviso veloz mudando a direção de um verso.



quinta-feira, 24 de setembro de 2015

3928) Treze doenças novas (25.9.2015)




Optite: inflamação dos olhos que distorce sutilmente as palavras lidas pelo paciente. Nos casos mais brandos, faz confundir “alegria” com “alegoria”, ou “marítimo” com “maremoto”. Nos casos mais graves, faz o paciente abrir um livro de Pablo Neruda e ler um soneto de J. G. de Araújo Jorge. 

Lissoidismo: a produção, por excesso de cálcio, de minúsculas pedrinhas (excretadas pelo organismo) com grande variedade de formas e cores, e muito disputadas por artesãos para a confecção de brincos e de anéis.

Beiromania: compulsão irresistível da pessoa para manter-se sob espaços cobertos, na crença irracional de que no momento em que sair ao ar livre se precipitará verticalmente rumo ao céu, como se caísse de grande altura.

Calpsúria: excesso de sensibilidade localizada, em trechos isolados da pele exposta, o que obriga o doente a cobri-los com pequenos retalhos de tecido, embebidos regularmente em soro fisiológico para hidratação.

Ambilismo: tendência do indivíduo a, quando está em público, assumir sempre as mesmas posições ou produzir os mesmos gestos maquinais quando pensa em determinados assuntos.

Óstium: ciclos irregulares de pessimismo infundado e de otimismo imprudente, que, se bem compreendidos e administrados pela família, não causam tragédias irreparáveis para a vida de ninguém.

Carmesão: violenta urticária que certos indivíduos desenvolvem em questão de minutos, sempre que passam por um momento de constrangimento ou de angústia, o que torna muito fácil perceber quando estão mentindo.

Bisnítrio: compulsão psicológica, em adultos, de atirar objetos frágeis no chão, na crença injustificada de que são inquebráveis, e desesperar-se depois.

Carmantite: hábito de contar mentalmente tudo em volta, os móveis de uma sala, os objetos de uma estante, as pessoas num recinto, os carros na rua, as letras de um cartaz, os minutos que restam.

Arcarílis: fome inexplicável que acomete algumas pessoas durante a madrugada, e que geralmente é saciada misturando alimentos incompatíveis, como carne moída e doce de leite.

Manustele: hábito compulsivo de respirar aceleradamente para oxigenar o cérebro, provocando uma falsa euforia que leva o indivíduo a dizer coisas impensadas.

Homungos: distorção da percepção em que um indivíduo se acha de estatura menor que a verdadeira, o que o leva a bater frequentemente com a cabeça em portais, etc., esbarrar em móveis, machucar sem querer crianças e animais.

Dipsite: acesso de bocejos e de soluços simultâneos, como resultado de estresse, que costuma depauperar bastante o doente, pela dificuldade que acarreta à respiração e à ingestão de alimentos.