sexta-feira, 2 de outubro de 2015

3933) Universos compartilhados (1.10.2015)




(Norman Rockwell, "Crackers in Bed")

No linguajar editorial da ficção científica, um universo compartilhado é um conjunto de ambientes, personagens, enredos, etc., criados pelo famoso autor Fulano, ao qual diferentes autores recorrem para ambientar novos livros. A obra de escritores como Isaac Asimov, Frank Herbert e outros inclui narrativas épicas em grande escala, onde podem caber mil pequenas aventuras, ou “side-quests”, no linguajar dos videogames. Agentes literários ou descendentes dos autores vigiam para que o seu universo não seja avacalhado pelos utentes. No caso de autores de grande fama como estes, escrever em seu universo talvez seja como um desses clubes onde ninguém se candidata: espera ser convidado. Há portanto um universo que alguns autores partilham entre si, de acordo com regras que todos aceitam. É uma partilha entre mestre e aprendizes, entre guru e discípulos, ou entre profissionais e profissionais. 

Outras vezes, já me ocorreu usar o termo “universo compartilhado” para descrever, numa direção totalmente oposta, a experiência do leitor de um livro. Aí não se trata de escrever uma obra com um olho na página e o outro na memória afetiva. Trata-se da entrega total e até impudica de um bom leitor diante de um bom texto, quando as palavras a certa altura parecem dado uma senha, desencadeado alguma coisa. O leitor entra no universo de Osman Lins, no de Arthur C. Clarke, no de Calvino, e parece nunca ter existido outro universo além daquele que a página ativa, que ela faz acordar na imaginação pessoal e na memória atávica do leitor.

O universo assim compartilhado não diz respeito somente ao ambiente onde se passa a história. Tem a ver com o momento mental em que leitor e autor conseguem coexistir durante a leitura. O mesmo casulo de referências, o mesmo conhecimento básico de algo impossivelmente complexo mas que pode ser reconstruído literariamente, as mesmas regras de etiqueta no exame e classificação dos signos verbais. O autor é um regente invisível. O leitor do romance policial, por exemplo, é um leitor de pé atrás, cabreiro, que suspeita de tudo. Algum outro leitor de romance se dá o trabalho de ficar prestando atenção, ao longo de 400 páginas, em quem está deixando impressões digitais, e onde?


O universo da ficção científica é compartilhado por todo tipo de pessoas. Algumas acham mais importante o Mistério do que a Resposta. Eu concordo, mas por uma casa decimal de vantagem. Alguns a veem como uma epopéia de conquista. Outros como uma câmara de simulação de modelos prováveis e cenários possíveis. Cada um encontra a si mesmo nela, como em qualquer banco de dados de bom tamanho.





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