quinta-feira, 10 de setembro de 2015

3916) Trilogia "Comando Sul" (11.9.2015)




A trilogia Southern Reach (“Comando Sul”) de Jeff VanderMeer, série de FC que já ganhou alguns prêmios nos EUA, é formada pelos romances Aniquilação, Autoridade e AceitaçãoDo autor eu já tinha lido vários contos de suas coletâneas Secret Lives (2006) e City of Angels and Madmen (2001).  Gosto de sua prosa exuberante, às vezes difícil de traduzir porque ele se projeta na descrição de cenas fantásticas para as quais não temos referenciais. O leitor precisa ler como se tivesse duzentos olhos (alguns dos seus personagens têm).

A visão futurista de VanderMeer é radicalmente biológica, zoológica, botânica, ecossistêmica. Na trilogia não passa nem sombra de espaçonaves, astronautas, robôs; e mesmo quando nos vemos diante de transições bruscas para pontos remotos do universo, isso se dá mediante uma tecnologia alienígena que (para lembrar a frase de Arthur C. Clarke) é tão avançada que não se pode distinguir da mágica.

Num ponto da Costa Leste dos EUA uma região costeira, a “Área X”, vê-se isolada do resto do mundo por uma barreira invisível. O Comando Sul é a agência encarregada de preparar expedições para penetrar nessa área, onde há dois pontos de referência principais: um farol e uma torre simétrica a ele, que penetra de chão adentro. Nas paredes dessa torre, uma criatura, o Rastejador, está escrevendo versículos em tom bíblico, usando uma substância orgânica como um lodo.

VanderMeer faz vagas menções ao país e ao mundo em volta, tudo acontece entre as cidadezinhas em torno, o prédio do Comando Sul e a Área X. Sabemos apenas que aquela investigação se arrasta há trinta anos, e que o mundo lá fora está convulsionado por uma crise ambiental e pelo terrorismo. Há raríssimas e vagas menções a jornais, TV, comunicações com o resto do país. É como se só existisse aquele trecho da Costa Leste, protegido por uma redoma.

Isso contribui para o aspecto kafkeano da trilogia, ou tarkovskyano, porque alguns traços essenciais da narrativa evocam os filmes de FC do diretor russo (Solaris, Stalker). É uma história de invasão biológica em que o invasor é uma força desconhecida formatando o mundo à sua maneira, uma maneira que preserva a natureza mas só permite a presença humana de modo muito limitado. É uma obra que preserva grande parte do seu mistério ao fim da leitura; VanderMeer não é do tipo que sai amarrando cada detalhezinho, cada ponta solta. Mas ele consegue projetar aquela sensação de “alienness”, da estrangeiridade de tudo que vem de outro ponto do universo. Como em certas criações memoráveis de Arthur C. Clarke ou Stanislaw Lem, nunca entenderemos quem vem Lá De Fora.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

3915) Na descida do morro (10.9.2015)




(foto: Robson Fernandjes)


“Eu estava numa favela do Rio, era como se fosse o Morro do Alemão. Tinham me levado para lá por algum motivo e o carro tinha ido embora. Era um terreno baldio cheio de mato e havia um cadáver ali pertinho. Havia um grupo de bandidos, mas o clima não era hostil, eles sabiam quem eu era e que tinha ido lá fazer algo com autorização; na verdade nem estavam me dando muita atenção. Eu dizia que queria voltar para a cidade. Eles me levavam para uma casa onde havia um casal idoso e outras pessoas, e me diziam para esperar ali. O tempo passava. Mesmo sem me sentir diretamente ameaçado eu queria cair fora dali o quanto antes. Pedia que fossem comigo até a entrada da favela, mas eles diziam não ter tempo: “Não tem problema. Vai lá, aqui é tranquilo”, mas eu dizia: “Eu preferiria caminhar aqui dentro com algum de vocês, e não sozinho”. Havia uma tensão permanente. Eu temia um tiroteio, porque as paredes de tijolo eram muito finas.

“Depois eu vinha andando noutro ponto da favela, uma espécie de feira nordestina cheia de barracas. Eu vinha por entre as barracas, que vendiam pratos-feitos, tapioca feita na hora, etc. A certa altura eu avistava uma saída para fora da favela, mas as barracas eram tão juntas que eu não conseguia passar entre elas. As barracas eram mantidas por pessoas aleijadas, cada uma com um defeito físico diferente. Por fim eu conseguia me esgueirar entre duas barracas, quase derrubando as panelas e utensílios das pessoas, e me aproximava de uma grande porta; só então eu percebia que aquilo, a tal da feira, não era ao ar livre, era uma espécie de grande salão dentro de um prédio, com centenas de metros quadrados, e as barracas estavam todas dentro dele.

“A porta da rua estava fechada, era uma porta imensa de madeira escura tipo mogno, cheia de entalhes, porta de casa antiga. Eu ficava aliviado em ver que depois de muitas horas eu ia conseguir sair dali. Eu via que ela estava destrancada, e me bastava girar a maçaneta e sair. Eu o fazia, cruzava a porta e a fechava atrás de mim, mas percebia então que aquela porta dava para uma rua enladeirada que ia subindo à minha frente. A rua era uma ladeira estreita que desembocava exatamente naquela porta, e nela havia uma fila enorme de carros, camburões e caminhões da polícia e do exército, estacionados, cheios de soldados armados, à espera. Em alguns carros os soldados dormiam de boca aberta, roncando, como quem está ali há um tempão, somente aguardando um sinal; e no rádio de todos os carros tocava bem alto a mesma música, uma música instrumental meio metaleira, pesada, ameaçadora. Eu começava a subir a ladeira, passando ao longo dos carros.”



3914) Roland Barthes (9.9.2015)




Talvez os centenários de Lourival Batista e de Rosil Cavalcanti tenham me distraído, porque só agora fiquei sabendo que estamos comemorando também os cem anos de nascimento de Roland Barthes (1915-1980), um dos nomes mais importantes nos estudos da teoria literária e da linguagem. Barthes foi aquele típico intelectual parisiense no que essa estirpe tem de melhor, exibindo erudição, refinamento, cosmopolitismo, atenção à vida prática, elegância na exposição das idéias e uma capacidade assustadora de ver as coisas pelo lado de fora. Ler os textos dele era como estar num desenho animado de Escher ou de Steinberg, onde pensamos: “Ah, sim isto é o mundo, e aquilo lá adiante é um quadro” e de repente percebemos que em volta do “mundo” existe uma moldura mostrando que ele é um quadro também. E de recuo em recuo vamos nos afastando dos “quadros”, à procura de um ponto de vista inacessivelmente externo e objetivo, sem conseguir. O mundo é uma sucessão de quadros em-abismo, diminuindo diante dos nossos olhos e ao mesmo tempo alargando-se às nossas costas. Não é que o mundo não exista; ele existe, mas é feito dessas caixas de linguagem infinitamente guardadas umas dentro das outras.

Leitores de Barthes hão de me crucificar por simplorizações deste tipo, mas paciência. Sempre que tentei penetrar no labirinto da semiótica dei com a cara em portas para as quais nunca tive a senha. As únicas portas estilisticamente abertas e convidativas eram as do italiano Umberto Eco e do francês Barthes, que viraram minhas referências de leigo sempre que procuro refletir a respeito dos reflexos das reflexões alheias sobre os espelhos da literatura e da linguagem. Barthes deve ter sido um professor fascinante para seus alunos do Collège de France e outras instituições. Sempre o imaginei tendo algo de meu mestre Jomard Muniz de Britto e de explicadores mesmerizantes como Paulo Emílio Salles Gomes ou José Miguel Wisnik.

A Bibliothèque Nationale de France abriu uma grande exposição em sua homenagem (ver aqui: http://tinyurl.com/nm2msgx). Um lembrete para que a gente retorne a sua obra, sempre inventiva. Dele, li apenas três livros: Mitologias (1957), sua primeira coletânea de artigos sobre literatura, moda, arte, educação e outros temas, sempre numa linguagem acessível, e de grande impacto na época; A Câmara Clara (1981), reflexões sobre a fotografia analisada por um sistema de signos muito pessoal, e sempre com alguma coisa nova para dizer; e Fragmentos do Discurso Amoroso (1977), anotações sobre o que acontece na mente de uma pessoa apaixonada, e talvez o único livro inteligente já escrito sobre este tema.



segunda-feira, 7 de setembro de 2015

3913) Bola de gude (8.9.2015)




Na época em que joguei bola de gude (mais ou menos entre 1958 e 1965) a variante que se usava em nossa rua era assim: primeiro criavam-se os buracos na terra, rodando com força o calcanhar até produzir buracos hemisféricos com alguns centímetros de fundura, e depois espalhando a terra em volta, para aplainar. Eram três buracos formando um triângulo equilátero calculado no olhômetro, a cerca de um metro e meio de distância. O jogador tinha como objetivo colocar sua bola nos três buracos, sucessivamente, e ao mesmo tempo afastar as bolas dos outros jogadores. Para determinar a ordem de jogada, cada um atirava, da mesma distância, sua bola na direção de um dos buracos; quem colocasse a bola mais perto jogava primeiro.

Nas jogadas propriamente ditas a bola ficava apoiada no indicador curvado, e era atirada pra frente com a unha do polegar, pressionado contra o outro dedo até escapar de repente, arremessando longe a bolinha. (Também chamada “bila” por nossos vizinhos cearenses.) Quando se acertava dentro do primeiro buraco passava-se aos demais, sempre numa mesma ordem, até errar, cedendo então a vez ao próximo. Depois que a gente acertava o primeiro buraco, tinha o direito de alvejar as bolas dos adversários, atirando-as para longe. Quando a gente completava os 3 buracos tornava-se “mata” (=matador): ao acertar a bola de um adversário ela era retirada do jogo. (Nos jogos “na vera”, de-verdade, o cara ganhava a bola para si; nas partidas “na brinca”, a bola e o adversário apenas saíam do jogo.)

Quando nossa bola parava muito próxima de outra era possível dar a famosa “estica”, uma colisão violenta que jogava a outra bem longe. Havia também a “tranfa” (=transferência): se um acidente do terreno atrapalhava o “tiro” do jogador, ele media com o palmo um arco de círculo na areia (tendo a bola-alvo como centro) e movia sua bola para outro ponto desse arco, mantendo a mesma distância em relação à bola-alvo, enquanto dizia: “Peço tranfa!”  Quando havia algum pedregulho ou folha seca no meio, dizia-se: “Peço limpo!”  A palavra “tranfa” também sofria outra corruptela, sendo substituída por “Peço trança!”.

Enquanto o jogador não se tornava “mata”, era chamado “feda” (=fedorento); podia ser morto mas não podia matar as bolas dos demais. Isso deu origem à expressão “combinação contra o feda”: qualquer complô entre pessoas experientes para enganar ou explorar um sujeito ingênuo, novato, despreparado.  “Meu primo tentou conseguir um emprego lá, mas houve uma combinação contra o feda, e deram a vaga a um amigo do gerente.” Ganhava o jogo quem conseguia “matar” as bolas de todos os concorrentes.

sábado, 5 de setembro de 2015

3912) 7 Ovnis (6.9.2015)




Heng Sin-Yu, 33 anos, Macau, estava trabalhando à noite no seu apartamento e foi à janela fumar um cigarro quando viu cruzando o céu um ponto de luz vermelha que deixava atrás de si um rastro de fagulhas amareladas, e a única coisa que lhe veio à mente foi que alguém no firmamento estava fumando também.

Terzio Pastore, 61 anos, Ravena, passou mais de dez anos frequentando uma colina próxima à fazenda onde vivia, colina esta que se dizia ser frequentada por extraterrestres, e a única coisa estranha que viu em todo esse tempo foi uma gigantesca forma metálica quadrada, maior que a colina, elevando-se ao céu por trás dela, mas como não correspondia à forma de um disco ele decidiu não levar em consideração, e nada publicou.

Camille Nguyen, 62 anos, Pnom Penh, descreveu à imprensa local o artefato que pousou no arrozal perto de sua casa como “uma fila de contêiners de navio enganchados como uma correntinha de clipes e girando em volta de um globo-da-morte com mais de mil motocicletas dentro e uma abertura por onde saíam nuvens com asas e patas”, e a imprensa agradeceu e foi embora.

Paulo César Tostes, 41 anos, Natal, vinha dirigindo à noite pela estrada que leva a Mossoró quando viu uma banda inteira do céu se esverdear, e erguer-se ali uma semi-esfera verde-limão que ficou suspensa no ar e depois voltou a descer, escondendo-se atrás do horizonte. Nessa mesma noite ele deixou de beber.

Laura Rimanelli, 38 anos, Firenze, viu de madrugada uma estrela muito branca no céu, imóvel, tão imóvel que horas depois o céu inteiro tinha girado e ela continuava ali, como se estivesse vigiando, fotografando algo, e como Laura vestia apenas uma camisolinha bem fininha e transparente achou melhor recolher-se para longe da curiosidade erótica dos marcianos, portanto voltou ao quarto e acordou o marido para os folguedos noturnos.

Baldomiro de Sousa Dias, 55 anos, Campina Grande, estava certa noite olhando as águas do Açude Velho da janela do seu 15O andar quando viu uma formação em forma de V com mais de vinte naves passando silenciosamente, piscando em cores variadas, mas quando ergueu os olhos para o céu não viu nada, o que o fez pensar no conceito de “objetos submarinos não identificados”.

Sarah Rosten, 22 anos, Roterdam, estava comprando um sorvete no parque quando avistou um brilho avermelhado no céu azul, de onde desceu um facho de luz que a abduziu, levou-a para o planeta Zadykstra, onde ela se tornou embaixatriz da Terra, casou com o príncipe herdeiro, governou num palácio de cristal e ônix, morreu aos 97 anos aclamada pelos descamisados locais, recebeu o troco e o sorvete e voltou para casa pensativa.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

3911) Mark Twain e a monarquia (5.9.2015)




Em seu romance Huckleberry Finn, Mark Twain conta a fuga de Huck Finn e do negro escravo Jim numa jangada à solta rio afora, e a certa altura aparecem dois dos seus personagens mais divertidos. 

São uma dupla de trambiqueiros que Huck salva e traz a bordo da jangada. Os resgatados contam o que fazem e por que razão vinham sendo perseguidos pela população da vila, e, num episódio hilário, revelam ao menino e ao negro suas verdadeiras identidades: um diz ser um duque inglês, e o outro se confessa o delfim-herdeiro do trono da França. São dois heróis picarescos; cruzam-se nesse momento pela primeira vez, e daí em diante vão se envolver em mil pequenos golpes, encenações. E Huck comenta:

“Não levei muito tempo para compreender que aqueles mentirosos não eram reis nem duques, coisa alguma, e sim simples vagabundos e aventureiros. Mas nada disse, nem deixei transparecer; guardei-o para mim mesmo; é o melhor; assim se evitam brigas e aborrecimentos. Se eles preferiam intitular-se duques e reis, eu não tinha objeções a fazer, contanto que se mantivesse a paz na jangada. E também não adiantava dizer a Jim, de modo que não lhe disse. Se eu nunca aprendi nada que valesse a pena com papai, aprendi pelo menos que a melhor maneira de lidar com essa espécie de gente é deixá-los agir a seu modo.” (Cap. XIX, tradução de Alfredo Ferreira)

O duque e o rei, como passam a ser chamados, são uma dupla cômica picaresca tradicional. Não são propriamente o Palhaço e o Besta, que Ariano Suassuna identificava em muitas narrativas populares, e usava nas suas. São dois espertalhões de personalidades e recursos diversos, em permanente luta um contra o outro, o que não exclui alianças eventuais em função de um golpe mais polpudo, ao fim do qual cada um procura trair o outro. 

Lembram os personagens de Michael Caine e Steve Martin em Os Safados, só que numa ambientação paupérrima de beira de rio, entre populações puritanas e crédulas.

Huck os aceita porque sabe que são dois intrujões inofensivos, capazes na pior das hipóteses de dar um prejuízo passageiro em alguém. Trapaceiros de beira de estrada, como certos tipos de Edgar Allan Poe, que mais sofrem do que gozam a vida que levam. 

Huck lê os dois corretamente, consegue vê-los com ironia, estar em guarda. O modo como explica ao escravo Jim como funciona a monarquia, e como Henrique VIII casava com uma nova esposa a cada noite, e pela manhã mandava decapitá-la, o deixa bem próximo das ironias de Dom Pedro Dinis Quaderna sobre o modo sanguinolento e saqueador como foram construídas as grandes monarquias européias a quem prestamos tantos salamaleques e rapapés.






quinta-feira, 3 de setembro de 2015

3910) A cor de Lovecraft (4.9.2015)




(ilustração: Virgil Finlay)


Traduzi há pouco tempo, para uma antologia a sair pela Editora Poetisa (Santa Catarina) o conto “The Color Out of Space”, de H. P. Lovecraft.  Os meus contos favoritos dele são “O Chamado de Cthulhu” e “The Shadow Out of Time”, que me produziram os impactos iniciais, aqueles contos em que pela primeira vez entramos em contato com o universo e a imaginação de um autor. Mas “A Cor que Caiu do Espaço”, destrinchada linha por linha, é uma história que reúne “espíritos” de diferentes gêneros. Tem algo dos “tall tales” rurais, as histórias dos matutos a respeito de acontecimentos insólitos em seu interiorzinho pacato. Tem algo dos contos de FC que descrevem a chegada à Terra de alguma presença maligna. Tem algo dos contos góticos sobre uma sucessão de mortes inexplicáveis concentradas num grupo de pessoas, ou num local.  Tem algo daqueles contos cruéis em que coisas ruins acontecem a pessoas boas, e a única justificativa para isso é que o Universo nos vê com indiferença, ou, melhor dito, não nos vê.

Um meteoro cai sobre uma fazenda e sua substância misteriosa contamina ou mata tudo em redor, a água, a vegetação, os animais. E tudo adquire uma coloração que nunca havia sido vista pelo homem. A monstruosidade daquilo, segundo Lovecraft, não está na biologia de uma criatura, e sim na cor. Nas suas cartas desse ano (1927) HPL diz que se trata mais de um “estudo de atmosfera” do que de um conto, e tem razão. O destino dos personagens é previsível, mas o horror brota da cegueira deles em admitir o que lhes está acontecendo até que seja tarde demais, somente porque é algo que não têm como explicar.

É um ser semi-gasoso, reconhecível pela sua cor, uma cor nova, como o “flicts” cuja existência as câmeras da Nasa captaram na Lua e Ziraldo oficializou em livro. O que nos obriga a lembrar de outro famoso conto, desta vez de Ambrose Bierce (o criador de “Carcosa” e autor do Dicionário do Diabo), “The Damned Thing”, outra “história de fronteira” sobre um ser que não pode ser visto (mesmo quando está atacando e despedaçando um homem) porque sua cor não pode ser captada pelo olho humano.

Se tais cores pudessem ser produzidas geneticamente (p. ex., nos pelos de um animal) seria possível montar exércitos semi-invisíveis, ou, melhor ainda, atacantes solitários nessa condição, entrando e saindo num sistema “stealth” embutido em seu próprio DNA. O conto de horror de Lovecraft tem uma premissa pretensamente justificada pela óptica; não custa muito ver nele um precursor da “camisa mais feia do mundo” que William Gibson propõe em História Zero (Ed. Aleph, SP), a camisa tão feia que não é registrada por uma câmera de vigilância.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

3909) Borges, Calvino e a tradução (3.9.2015)





A Antologia de Literatura Fantástica (1940), organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo é um clássico do gênero; no Brasil, saiu recentemente pela editora Cosac Naify, com tradução de Josely Vianna Baptista. 

Numa nota incluída na edição brasileira, é citada uma frase de Borges sobre a edição italiana. Queixa-se ele: 

“Não traduziram nossa antologia: procuraram as fontes e traduziram. Agiram assim em prejuízo do leitor, naturalmente. Não deveriam ter escolhido um livro de autores que se distinguem por suas transcrições e citações infiéis”.

Deixo para os mais metódicos e mais disponíveis do que eu a tarefa de comparar com os originais as versões dos contos desse volume. As traduções de Borges são famosamente não-confiáveis; uma vez chequei sua versão de “A carta roubada” de Poe e constatei que era substancialmente mais enxuta do que o original. 

Isso é um crime de lesa-arte? É um péssimo exemplo para tradutores jovens e apressados, ou idosos e impacientes?  Para mim, essa atitude desabusada tem a ver com o valor quase místico que Borges atribuía aos grandes enredos, os grandes “plots” literários, que ele julgava capazes de sobreviver a séculos de traduções, adaptações, etc.

Isto me trouxe à mente uma atitude parecida, a de Ítalo Calvino ao compilar as suas Fábulas Italianas (Companhia das Letras, 1992, trad. Nilson Moulin). Reunindo versões de contos populares da Itália, num trabalho comparável ao feito entre nós por Câmara Cascudo ou Sílvio Romero, diz Calvino, em sua longa e excelente introdução, que não se furtou a “meter a mão” nas histórias compiladas e traduzidas de fontes em dialeto: 

“Inventei nomes e lengalengas... montei a narração conforme quis... trabalhei por inventiva própria... ocasionalmente, atribuí nomes às personagens...”  

E afirma: 

“Quantas vezes defrontei-me com uma página vernácula cuja tradução equivalia à morte?; e quantas outras vezes, por outro lado, só encontrava testemunhos tão frágeis de uma fábula que me interrogava se não deveria, para salvá-la, redesenhá-la de alto a baixo com novas imagens e soluções?”.

A atitude do escritor, como se vê, é inversa à do tradutor ou à do folclorista profissional. Ele não vê o original como algo precioso a ser preservado a todo custo mediante uma cega fidelidade. O escritor é (diz Calvino) “um elo da anônima cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam”. E cita um provérbio toscano: “a novela vale por aquilo que nela tece e volta a tecer quem a reproduz.” 

Um precedente perigoso, claro, dado o grau de irresponsabilidade em nossas selvas editoriais. Mas esta é uma questão crucial onde quer que um autor-criador se preste a intermediário em qualquer ponto da cadeia de transmissão das histórias.






terça-feira, 1 de setembro de 2015

3908) O açude secou (2.9.2015)




(foto: Diego Vara)


Fazia mais de trinta anos que não se via uma seca como aquela. O sol torrava tudo, como um bafo de dragão. Os córregos tinham virado sulcos poeirentos cobertos de seixos e de galhos secos de favela. Os calangos corriam doidos, de boca aberta ao vento. Restavam poucos poços, e pessoas vagavam com potes na cabeça, em busca dos restos de água barrenta. 

Dona Mina estava sentada na lateral da casa, pegando sombra, quando viu dois meninos que vinham em toda carreira, levantando pó. Ao chegar perto, pararam e o maior dos dois, meio com medo, disse: “Dona Mina... Mandaram avisar a senhora que acharam ele.” 

E com isso fizeram meia volta e retornaram a toda.

A velha suspirou, coçou as pernas, fez o Pelo-Sinal e entrou. Trocou o camisolão escuro por um vestido preto, amarrou no cabelo um lenço preto com a imagem de um Coração-de-Jesus, e foi chamar Damião, que estava cortando um resto de palma para a bezerra. Quando ele viu o vestido da mãe largou a foice e seguiu atrás. 

Vieram andando calados, as alpercatas estralando nas pedras, até pegarem a baixa do açude. Viram de longe o bacião vazio, amarronzado, a lama seca já se esfarelando. Touceiras de mato empapado de terra, aqui e ali peixes secos e duros como casca de árvore, latas esburacadas pela ferrugem.

Lá na frente um grupo de pessoas viradas na direção deles protegia os olhos do sol com a mão erguida. Foram até lá, firmando os pés com dificuldade nos torrões soltos. 

Junto de uma moita coberta de lama, guardada pelo semicírculo de gente silenciosa, viram a ossada suja, de criança, afundada na terra. 

Dona Mina chegou perto, fez o sinal da cruz, ajoelhou-se. Viu o crânio comido pelos peixes, as costelas finas, um braço num gesto desengonçado, o calção de time de futebol semi-apodrecido. 

Rezou baixinho o Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Credo, a encomendação-das-almas, e um sussurro de responsórios a acompanhou.

Terminada a reza, fez um sinal ao filho, que se adiantou, usou um galho grosso como alavanca, despregou a ossada onde ela se grudava ao barro espesso. Conseguiu com jeito liberar inteiras as pernas, quase encobertas. 

Quando terminou de soltar tudo, alguém lhe estendeu um saco de pano onde ele agasalhou os despojos, por entre murmúrios e améns.

Dona Mina, sem uma palavra, fez meia volta e foi no rumo de casa, onde uma cova antiga esperava aberta, abrigada por palhas de bananeira. Depois de tantos anos, pela primeira vez dormiria em paz, sabendo onde estava o filho. 

O sol castigava as pedras, rebatia nas malacachetas, e Damião vinha atrás dela em silêncio, a barba grisalha molhada de lágrimas, os braços robustos protegendo o irmão gêmeo, morto no tempo da fartura.





segunda-feira, 31 de agosto de 2015

3907) "As Infâncias de Quaderna" (1.9.2015)





(Irandhir Santos, em A Pedra do Reino)



Dias atrás estive no “XIII Festival Recifense de Literatura – A Letra e a Voz”, que este ano homenageou Ariano Suassuna. 

A sugestão do festival era de fazer uma leitura de textos do autor. Pensei em ler episódios do Romance da Pedra do Reino, mas preferi ler trechos de uma obra de Ariano que quase ninguém conhece: o romance História D’o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: As Infâncias de Quaderna, que pouquíssimas pessoas já leram, mesmo em Pernambuco e na Paraíba. 

Esse romance seria o volume 3 da série cujo número 1 é o Romance da Pedra do Reino e o número 2 é História D’o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana

O 1 e o 2 saíram pela Ed. José Olympio, mas o 3 foi publicado apenas em folhetins dominicais no Diário de Pernambuco, de 2-5-1976 a 19-6-1977.

Ariano não quis publicá-lo em livro, porque viu muitos defeitos na obra, que, mesmo assim, tem inúmeras passagens brilhantes, da melhor prosa que ele já escreveu. E mais do que isso: esclarece um sem-número de coisas a respeito do personagem Quaderna, seus pais, seu passado, sua criação. 

Chego mesmo a afirmar que só entendi o Romance da Pedra do Reino (que eu já lera várias vezes) quando li As Infâncias de Quaderna, que tapa muitos buracos e esclarece muitos pontos duvidosos do outro livro.

Nas Infâncias ficamos sabendo, p. ex., que Quaderna foi parido na Fortaleza de Santa Catarina, na capital da Parahyba; que foi raptado por ciganos, resgatado pelo cangaceiro Antonio Silvino, e devolvido por este à família dos Garcia-Barreto, seus tios maternos. 

Temos também uma visão mais completa de um personagem crucial da trama, o fazendeiro e usineiro Antonio Morais, que no Romance da Pedra do Reino aparece apenas de passagem. Morais é o grande vilão da obra, representante do capitalismo internacional e da mentalidade predatória urbana, e se contrapõe a Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o tio de Quaderna, que encarna as virtudes cavalarianas da nobreza do Sertão.

Quando perguntei a Ariano se valia a pena desperdiçar tanta coisa boa que há nas Infâncias, ele disse que uma parte desse material seria aproveitada no famoso “livro novo” que ele ficou preparando durante todos estes anos, que já foi chamado de A Ilumiara, mas cujo título atual é O Jumento Sedutor

Não li essa obra, e ainda estou à espera; mas acho que mesmo que não se publicasse o texto completo das Infâncias, que seria do tamanho da Pedra do Reino, daria para fazer uma seleção de capítulos, entremeados por algum texto explicativo, resultando num volume de 200-250 páginas com alguns dos pontos altos da prosa de Ariano.