sexta-feira, 4 de setembro de 2015

3911) Mark Twain e a monarquia (5.9.2015)




Em seu romance Huckleberry Finn, Mark Twain conta a fuga de Huck Finn e do negro escravo Jim numa jangada à solta rio afora, e a certa altura aparecem dois dos seus personagens mais divertidos. 

São uma dupla de trambiqueiros que Huck salva e traz a bordo da jangada. Os resgatados contam o que fazem e por que razão vinham sendo perseguidos pela população da vila, e, num episódio hilário, revelam ao menino e ao negro suas verdadeiras identidades: um diz ser um duque inglês, e o outro se confessa o delfim-herdeiro do trono da França. São dois heróis picarescos; cruzam-se nesse momento pela primeira vez, e daí em diante vão se envolver em mil pequenos golpes, encenações. E Huck comenta:

“Não levei muito tempo para compreender que aqueles mentirosos não eram reis nem duques, coisa alguma, e sim simples vagabundos e aventureiros. Mas nada disse, nem deixei transparecer; guardei-o para mim mesmo; é o melhor; assim se evitam brigas e aborrecimentos. Se eles preferiam intitular-se duques e reis, eu não tinha objeções a fazer, contanto que se mantivesse a paz na jangada. E também não adiantava dizer a Jim, de modo que não lhe disse. Se eu nunca aprendi nada que valesse a pena com papai, aprendi pelo menos que a melhor maneira de lidar com essa espécie de gente é deixá-los agir a seu modo.” (Cap. XIX, tradução de Alfredo Ferreira)

O duque e o rei, como passam a ser chamados, são uma dupla cômica picaresca tradicional. Não são propriamente o Palhaço e o Besta, que Ariano Suassuna identificava em muitas narrativas populares, e usava nas suas. São dois espertalhões de personalidades e recursos diversos, em permanente luta um contra o outro, o que não exclui alianças eventuais em função de um golpe mais polpudo, ao fim do qual cada um procura trair o outro. 

Lembram os personagens de Michael Caine e Steve Martin em Os Safados, só que numa ambientação paupérrima de beira de rio, entre populações puritanas e crédulas.

Huck os aceita porque sabe que são dois intrujões inofensivos, capazes na pior das hipóteses de dar um prejuízo passageiro em alguém. Trapaceiros de beira de estrada, como certos tipos de Edgar Allan Poe, que mais sofrem do que gozam a vida que levam. 

Huck lê os dois corretamente, consegue vê-los com ironia, estar em guarda. O modo como explica ao escravo Jim como funciona a monarquia, e como Henrique VIII casava com uma nova esposa a cada noite, e pela manhã mandava decapitá-la, o deixa bem próximo das ironias de Dom Pedro Dinis Quaderna sobre o modo sanguinolento e saqueador como foram construídas as grandes monarquias européias a quem prestamos tantos salamaleques e rapapés.






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