quinta-feira, 20 de agosto de 2015

3898) Tem mas acabou (21.8.2015)




Quem nunca passou por isso num restaurante, num café, ou mesmo em outros tipos de loja?  

Você senta, pede o cardápio, vai passando os olhos, aí descobre algo como: “Sanduíche Montparnasse: baguete crocante com gergelim, fiambre, queijo minas, bacon pulverizado, gomos de tangerina, molho mostarda-e-mel”. 

Você se anima. Aquilo pode até ser indigesto mas pelo menos é diferente; você chama o garçom e pede. Ele olha o cardápio e diz: “Esse aí tem, mas acabou”.

Todo mundo se irrita com essa resposta, mas ela me parece totalmente lógica. O cara está dizendo que sim, de fato, o sanduíche faz parte das atrações da casa. É produzido regularmente ali, recebe pedidos, vende unidades. Ou seja: tem. Acontece que naquele momento acabou, em geral porque se esgotaram alguns ingredientes principais. 

O formato da resposta parece contraditório, mas ela está dizendo apenas: “De fato temos esse sanduíche no cardápio, pode voltar a pedir noutro dia; mas agora não estamos servindo porque acabou o molho de açafrão-pimenta (ou seja lá o que tiver acabado)”.

Se o garçom disser “Não tem” (advertem os especialistas em vendas), está subliminarmente induzindo na mente do freguês a noção de que o produto não tem MESMO, não está à venda, não vale a pena pedir de novo. É o anti-marketing. 

É preciso transmitir ao cliente uma mensagem positiva que o console da frustração momentânea. É preciso fazer com que o cliente não bata em retirada, pelo contrário: volte daí a alguns dias, convencido de que ocorreu apenas uma turbulência momentânea mas ele vive num Universo onde as coisas fazem sentido, e coisas que pareciam ter acabado para sempre acabam é voltando.

O “tem mas acabou” é uma fórmula de teimosia positiva. É o mantra cheio de estoicismo de alguém que mesmo derrotado não dá o braço a torcer, de alguém mantendo viva a chama da esperança de que num dia mais favorável aquele cliente e o seu sonhado sanduíche possam finalmente se encontrar numa lua-de-mel de dentadas, salivas e degustações. 

É um gesto de altivez na derrota, é como o artilheiro de um time que, atravessando um jejum de meses sem marcar um gol, ainda é capaz de dizer no fim de mais um jogo, ao microfone dos repórteres de campo: “Não teve gol, mas domingo vai ter jogo de novo, quem sabe se o gol não vai sair?”.

O “tem mas acabou”, portanto, é implicitamente seguido pela sua formulação inversa e otimista: “Acabou, mas tem”. Vai ter. Pode voltar. Não é o fim do mundo ainda. A frase reafirma (ainda bem, humanidade!) aquela cega confiança de que vale a pena continuar tentando, pois nenhum vazio é eterno e nenhum fracasso é definitivo.





quarta-feira, 19 de agosto de 2015

3897) Nabokov e a tradução (20.8.2015)






Num dos seus primeiros artigos para The New Republic, onde colaborou por muito tempo (“The Art of Translation” - http://tinyurl.com/lcgosud), Vladimir Nabokov listou os três principais equívocos cometidos por tradutores, e os três tipos principais de tradutor. Ele próprio se apressou a dizer que cada erro não correspondia a cada tipo, mas se distribuíam aleatoriamente entre eles.

Para o autor de Lolita, o primeiro erro, e menor, corresponde aos “erros óbvios devidos à ignorância e ao conhecimento equivocado”. São p. ex. os tradicionais “falsos amigos” e outras semelhanças ilusórias, que nos fazem traduzir “eventually” por “eventualmente” ou “push” por “puxe”. Um erro de natureza técnica, que o tradutor se apressaria a corrigir se ficasse sabendo. Em segundo lugar, diz ele, vem o caso do tradutor que “intencionalmente pula palavras ou trechos que não quer se dar o trabalho de entender, ou que poderiam parecer obscuros ou obscenos para leitores vagamente imaginados”. O terceiro caso é uma radicalização do segundo, quando “uma obra-prima é aplastada e rebatida num tal formato, e vilmente embelezada de forma a se enquadrar de conformidade aos valores e aos preconceitos de um público qualquer”. São erros cuja gravidade aumenta na proporção da opção consciente do tradutor, da sua intenção de errar.

E os tipos de tradutores? Diz ele que são: “o erudito ansioso para fazer com que o mundo aprecie as obras de um gênio obscuro tanto quanto ele próprio aprecia; o mercenário bem intencionado; e o escritor profissional relaxando na companhia de um confrade estrangeiro”.  Nabokov parece temer o terceiro tipo mais do que os outros dois, pois adverte: “quanto maior o seu talento individual, mais provável que ele acabe submergindo a obra original sob a cascata cintilante do seu próprio estilo. Ao invés de vestir a pele do autor verdadeiro, ele obriga o autor vestir a pele dele próprio”.

Nabokov, russo, ficou famoso com sua obra em inglês, tal como seu conterrâneo Isaac Asimov ou o polonês Joseph Conrad. Só que poucos autores nessa condição produziram uma prosa tão elaborada quanto a dele, tão consciente dos seus próprios efeitos, tão ludicamente empenhada de extrair de cada palavra tudo que ela pudesse fornecer de possibilidades expressivas. Um autor que escrevia traduzindo (mesmo que pensasse em inglês), e produziu uma das prosas mais desafiadoras para outro tradutor em qualquer idioma. Sua prosa parece vibrar o tempo inteiro numa região de múltiplas assonâncias que sugerem sentidos secundários ou ocultos. É um desses autores que parecem ter arregaçado as mangas para provar que traduzir é impossível.

3896) O leão sorridente (19.8.2015)




Por volta de 1731, o rei Frederico da Suécia recebeu um presente enviado pelo Rei de Argel: um leão, coisa rara na Suécia, algo que pouquíssimos habitantes do país nórdico tinham visto a não ser nas ilustrações pouco confiáveis da época, nos brasões heráldicos, nas pinturas. 

Presentear animais selvagens era um costume dos nobres daquele tempo. Podemos lembrar do romance de José Saramago, O elefante do rei A viagem do elefante (2008), que conta a odisséia do paquiderme que o rei João III de Portugal enviou de presente ao Arquiduque Maximiliano, da Áustria.

No caso do leão, o rei sueco se afeiçoou ao animal e o manteve em cativeiro e em exibição enquanto o animal durou. Após sua morte, decidiu que ele continuaria sendo visto pelo público, e enviou seus restos mortais para um taxidermista, a quem caberia empalhar o animal. Só que o artista não conhecia leões, e recebeu apenas os ossos e a pele do bicho.

O resultado foi uma criatura que não parece leão nem aqui nem em Estocolmo; lembra mais um cachorro sorridente, com dentes humanos e língua de fora. Sua imagem tem sido usada satiricamente na Internet (ver aqui: http://tinyurl.com/p5byrym). 

O caso do Leão do Castelo de Gripsholm, como é chamado, lembra outro presente real famoso, o rinoceronte que Dom Manuel I de Portugal recebeu e que foi imortalizado numa célebre gravura de Albrecht Durer. É um animal mais ornamental do que zoológico, sobre o qual já escrevi aqui: http://tinyurl.com/pu8hj4a).   


Não se trata apenas de que os artistas envolvidos são incompetentes ou maus observadores. Eu diria, pra resumir, que o contato com o Extraordinário estimula mais a imaginação do que a observação. Ao enxergar uma criatura que não corresponde aos seus parâmetros, ao seu repertório de referências, o artista interpreta detalhes erradamente; faz associações de idéias que não se aplicam ao caso; preenche lacunas coma primeira coisa ou a coisa mais vistosa) que lhe vem à mente. 

Sua imaginação é despertada por aquele objeto exótico ou bizarro que parece menos uma coisa real do que um produto da imaginação de outro artista.

O leão sorridente de Gripsholm e o rinoceronte de Durer pertencem à mesma categoria que aqueles mapas náuticos seiscentistas cheios de referências a lugares imaginários e a monstros fantásticos. 

Neles convivem, num mesmo plano, a realidade observada e os complementos arbitrariamente fantasiados pelo artista. 

É a mesma receita da ficção científica – só que neste caso a mistura é consciente, proposital e faz parte de uma convenção cultural da época. São objetos literários estimuladores da imaginação, mesmo que aparentados da observação científica.




segunda-feira, 17 de agosto de 2015

3895) "Guerra em Surdina" (18.8.2015)




Lutar na guerra deve ser uma das experiências mais traumatizantes que um sujeito pode ter. Só não digo que é “a mais” porque ser submetido a tortura deve ser pior ainda. Quando eu era pequeno via filmes de guerra e sonhava com heroísmo, aventura e principalmente massacre de soldados inimigos. Se todos os soldados alemães imaginários que já derrubei com minha metralhadora entrassem no cômputo da II Guerra Mundial, era mais gente do que os russos efetivamente abateram.

Guerra em Surdina (1964), de Boris Schnaiderman, é um livro curioso escrito pelo nosso grande tradutor e ensaísta, nascido na Rússia e abrasileirado como tantos outros da sua geração. Bóris veio para o Brasil menino, naturalizou-se, e lutou na FEB, na campanha da Itália. Seu livro é um relato bem pessoal de suas experiências, um misto de memórias e ficção. A ficção entra através do fato de que seu foco é o soldado “João Afonso”, no qual Bóris projetou fatos ocorridos tanto com ele próprio quanto com outros companheiros.

O livro é narrado tanto na primeira quanto na terceira pessoa, com alguns capítulos muito longos e outros muito curtos, mudanças de ponto de vista e mesmo de estilo. Parece uma obra escrita ao longo dos anos, aquele tipo de livro que o autor deixa na gaveta por algum tempo, escreve mais um pouquinho, esquece de novo e assim por diante. Mas seu andamento não muda, o relato é direto e cheio de detalhes curiosos.

Acima de tudo, no entanto, ele transmite a sensação de embrutecimento provocada pela guerra. Já li aqui e ali testemunhos desse tipo, de que a ameaça constante, a fadiga física e a violência extrema deixam os soldados feito zumbis, autômatos, executando ordens e tarefas sem pensar, como se por uma espécie de trauma protetor eles trancassem dentro de si mesmos a maior parte de sua mente ativa e deixassem apenas um piloto automático encarregado de cumprir com o dever. A fome, a sujeira, a espantosa penúria da população italiana por onde passam os batalhões brasileiros, o choque cultural do contato com as tropas dos EUA, tudo isso deixa João Afonso e seus companheiros numa espécie de estado crepuscular permanente.

Como zumbis ou como personagens de videogame, os soldados repetem as mesmas ações, obedecem ordens incompreensíveis, atiram-se de encontro à morte com indiferença, uma indiferença de quem está brutalizado e embrutecido a ponto de não mais mandar em si mesmo. Exaustos, animalizados pela sujeira, pela fome e pelo frio, viram robôs sem emoções e sem racionalidade, lutando contra um inimigo que não odeiam, numa guerra absurda em que um país sob ditadura manda seus rapazes morrerem em terra alheia pela democracia.



sábado, 15 de agosto de 2015

3894) 7 batidas de pino (16.8.2015)



Basílio Pimentel, 44 anos, bêbado até as orelhas, ao entrar num botequim e bradar palavrões insultuosos, dizendo que ali não tinha macho merecedor de levar uma surra dele, e vendo levantar-se de um canto obscuro um marombado de porte schwarzeneggeriano revoltado com a provocação e prometendo primeiro amaciar o bife de porrada pra depois comê-lo: “Vige Maria, o pacote veio maior que a encomenda!”.

Waluza Starr, 47 anos, divorciada duas vezes e separada quatro, dançarina e atriz, depois de noites insones pensando no teste de elenco da novela e decorando um texto minimalista demais pro seu gosto, e depois de fazer o teste, pegar suas coisas, ao se despedir do assistente de direção que coordenou tudo: “Olha, hoje não é meu dia, meu bem, me deixa fora dessa, melhor deixar quieto.”

Vavá de Joaninha, 27 anos, operador de telemarketing, cearense, chegado ao Rio de Janeiro algumas meras semanas atrás, entrando tarde da noite na bodega de Carlindo, que já estava com uma das portas arriada, encostando no balcão, depois de pedir “uma Antártica estupidamente gelada” e ouvir de Carlindo que só tem Brahma morna: “Então traz duas!”.

João Pedro Amarante, 48 anos, advogado, leitor do Diário Oficial, evangélico recente, numa reunião de família a portas fechadas, para a qual foi convocado em caráter de urgência urgentíssima, ao ser botado no canto-da-parede pela esposa gélida e pelos três furibundos irmãos dela, todos exibindo provas fotográficas e documentais de sua ida a um motel com uma piriguete: “Sim, traí, mas não gozei.”

José Carlos de Souza, 32 anos, magrelo, barbeiro, envergando o uniforme branco da categoria, fumando um cigarro em frente ao Salão Excelsior, à espera do primeiro cliente do dia, depois de assobiar para uma morenona reboculosa que passava e vê-la dar meia-volta e partir furiosa em sua direção: “Oxente, dona, eu tava chamando um táxi.”

Tarcísio Alves Gama, 31 anos, bêbado aos tombos, apreendido na madruga por uma viatura da PM, depois de declarar em alto e bom som ser sobrinho do Major Peçanha da Aeronáutica, que mora ali na esquina, ao que os PMs tocam à campainha e o major emerge de pijama para dizer que nunca o viu mais gordo: “Acho que me atrapalhei, meu tio é o Major Montenegro, que mora em Macaé”.

Aluísio Malta Torreão, 28 anos, militante estudantil, ateu convicto, livre pensador, defensor do estado laico, leitor de Emil Cioran e de Charles Bukowski, escutador de Slayer e de Dead Kennedys, no primeiro jantar na casa dos pais da namorada, ao ser interpelado pela futura sogra sobre os seus planos para o futuro: “Dona Amarílis, o futuro a Deus pertence”.




sexta-feira, 14 de agosto de 2015

3893) "Textos para nada" (15.8.2015)




Publicados em 1955, os Textes Pour Rien de Samuel Beckett foram escritos entre 1950 e 1952, e fazem parte de um período em que o irlandês estava se dedicando a afrouxar pacientemente todos os parafusos da prosa de ficção, para ver se ela se sustentava sem eles. Beckett é um autor versátil (romance, poesia, teatro, conto, ensaio, cinema) e onde meteu a mão pareceu resolvido a descobrir algum hipotético “grau zero da escritura”, um patamar mínimo de narração que não fosse a mentira convencionalmente construída em parceria por escritores e leitores ao longo de séculos.

A edição brasileira (Cosac Naify, 2015, tradução de Eloisa Araújo Ribeiro) traz 13 fragmentos sem título, escritos na primeira pessoa, numa espécie de monólogo interior muito diverso do praticado por James Joyce. O texto de Beckett cria uma dessas situações em que acompanhamos os pensamentos e as sensações de um narrador mas nunca sabemos quem é, o que faz, onde está, o que está acontecendo (se é o caso). Um fluxo de associações de idéias que de vez em quando é cortado pelo flash rapidíssimo de um dado concreto, como relâmpago na noite:

“..não posso pedir nada. Nada além da cabeça e das duas pernas, ou uma só, no meio, iria embora saltitando. Ou nada além da cabeça, bem redonda, bem lisa, sem precisão de acabamentos, rolaria, seguiria as ladeiras, quase um puro espírito, não, não daria certo, daqui tudo sobe, é preciso ter perna, ou o equivalente, alguns anéis talvez, contrácteis, com isso se vai longe. Partir da frente da Casa Duggan, numa manhã primaveril de chuva e sol, na incerteza de poder chegar até a noite, o que há de errado aí?”.

Há uma destruição da narrativa, mas a sintaxe fica intacta, embora a separação por vírgula signifique muitas vezes um recomeço do zero, uma volta ao ponto de partida (que ninguém lembra mais qual foi). O posfácio de Lívia Bueloni Gonçalves lembra a amizade entre Joyce e Beckett, mas afirma que “...enquanto Joyce ‘tendia para a onisciência e a onipotência enquanto artista’, ele lidava com a impotência e a ignorância.”  A cada livro publicado Beckett se afastava mais de Joyce, raspando toda sua exuberância barroca, tendendo a um vocabulário ascético e à narração de pequenos episódios absurdistas contados em tom trágico, como gifs animados repetindo-se perpetuamente. Sua prosa funde a comédia do cinema mudo e o pessimismo filosófico pós-guerra; foi a época em que ele começou a escrever em francês, porque usar uma língua estrangeira o obrigava a pensar muito cada palavrinha, cada frase, sem ceder à tentação da prosa fácil onde apenas regurgitamos o já lido e o já escutado.




3892) Fantasia BR (14.8.2015)



Uma literatura de fantasia heróica, como a fantasia de língua inglesa tão lida no Brasil (a trilogia de Tolkien, a série “Narnia” de C. S. Lewis, as “Crônicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin) envolve uma identificação do autor e do leitor com um passado heróico pressuposto, carecendo ou não de verdade histórica. A fantasia não obedece à História, mas extrai dela sua verossimilhança. E ganha muito quando autor e leitor têm um passado em comum, ainda que seja um passado meramente mitológico, imaginário.

Uma fantasia brasileira pode recorrer às nossas fontes portuguesas e ibéricas. Afinal, se os norte-americanos de hoje podem escrever sobre os celtas, por que não poderíamos nós sobre os iberos? (Atenção: a pronúncia é “i-BÉ-ros”, e não “íberos”). É algo que literariamente é tão nosso quanto dos nossos primos portugueses.

A Escola de Sagres, por exemplo, foi a NASA do século 15, do tempo das grandes descobertas. Era o estado-da-arte da astronomia voltada para a navegação. Ariano Suassuna (Almanaque Armorial, ed. Carlos Newton Júnior, Ed. José Olympio) tem um ensaio fascinante (“Olavo Bilac e Fernando Pessoa: uma presença brasileira em Mensagem?”) sobre dois poemas a respeito da Escola de Sagres, um de Olavo Bilac e outro de Pessoa. Ariano sugere, com argumentos convincentes, que os poemas de Pessoa sobre o Infante D. Henrique e a Escola, no único livro que publicou sob seu nome (Mensagem, 1934)  foram influenciados pelo brasileiro.

Uma literatura brasileira de Fantasia Heróica ou de FC Retroativa (ambientada no passado) pode recorrer com proveito a esse banco-de-dados.  Autores de língua inglesa usam constantemente a mitologia arturiana, céltica, bretã, etc. Primeiro porque faz parte de sua herança cultural e todo mundo tem o direito de se sentir pertencente a alguma tradição épica e heróica. Segundo,  porque sua própria literatura já cultiva isso há séculos, e há um know-how adquirido (e uma familiaridade com nomes, temas e situações, da parte do leitor) que não é de se jogar fora.


Se um autor brasileiro usa a fantasia ibérica, a pegada heróico-mitológica é a mesma – toda mitologia é feita para ativar os mesmos arquétipos através de um panteão diferente.  Mas acima de tudo ela dá a esse autor lendas e episódios específicos, paisagens específicas, correspondências reais específicas da História e da Geografia, que para um leitor de língua inglesa (a maioria desses autores nacionais sonha com o mercado estrangeiro, e tem todo o direito de sonhar) pode significar um leve estranhamento inicial mas depois entraria como um trunfo que a fantasia arturiana não tem, o trunfo do novo num mercado saturado.



quinta-feira, 13 de agosto de 2015

3890) O som e o sentido (12.8.2015)




Num dos livros de Alice, Lewis Carroll faz uma inversão de um provérbio inglês, que diz: “Take care of the pence, and the pounds will take care of themselves”. Refere-se à moeda inglesa (pence/pounds) e poderia entre nós ser adaptado como: “Cuide bem dos centavos, e os reais cuidarão de si mesmos”. 

Em Alice, Carroll faz um curioso paralelo entre dinheiro e linguagem, quando a Duquesa diz à menina: “Take care of the sense, and the sounds will take care of themselves”. Ou seja: “Cuide bem do sentido, e os sons cuidarão de si mesmos”.

Não me parece um conselho útil, mesmo sendo eu um fã do criador do Jabberwock. Minha visão da literatura é o contrário: cuide bem dos sons das palavras, porque o sentido delas cuidará de si mesmo. Muitos escritores (famosos, inclusive) escrevem sem música nas frases, sem sonoridade nas palavras, preocupados apenas com o “conteúdo”. 

É como se quisessem transmitir uma mensagem, e não ligassem se o papel é sujo, a caneta falhada, a caligrafia um ó e a ortografia pior ainda.

Sempre é possível encontrar um meio-termo conciliando som e sentido, até porque os dois têm a mesma importância. Escritores que vêm da área científica passaram a vida sendo treinados a ligar apenas para o sentido, a exprimir da maneira mais exata possível o que estão pensando; a desenvolver raciocínios verbais, argumentações, exemplos, generalizações, etc.  

Querem contar suas histórias com uma “prosa invisível” como dizia Isaac Asimov (ao qual eu responderia que prosa invisível é página em branco). Daí, os autores de origem acadêmica muitas vezes escrevem mal. Não porque sejam burros, mas porque ninguém lhes ensinou a se preocupar com o som das palavras ou o ritmo das frases.

O que define a experiência estética literária é o uso da palavra em sua totalidade, inclusive seu som, a melodia que faz um texto ressoar em nós mil vezes mais do que outro texto que – em tese – está dizendo a mesma coisa.

Existem palavras sem sentido: gurchizuma, rampitíolo, frugamba, esbutonar... É a coisa mais fácil do mundo; posso inventar uma de dez em dez segundos até o fim da vida. (Já cultivo isso no meu “Dicionário Aldebarã”, que não deve ter passado despercebido a todos.)  Mas não existe palavra sem som. 

Todas as palavras que conhecemos e usamos têm som, inclusive as aldebarânicas. Literatura, por definição (pois é o que a diferencia dos outros usos da linguagem) é uma arte onde a palavra é considerada em sua dimensão material, sonora, pois no tumulto de impressões, sensações e emoções em-estado-bruto que fervilha em nossa mente há bilhões de impulsos que são sentido puro, mas só se tornam palavras quando adquirem som.





[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 12 de agosto, e "Romance policial", artigo 3891, no dia 13 de agosto.]



quarta-feira, 12 de agosto de 2015

3891) Romance policial (13.8.2015)



Um romance policial é como uma investigação científica. O investigador tem em mãos uma porção de fatos e quer saber o que deu origem àquilo tudo. Para tanto, precisa de uma explicação que atenda de maneira cabal aos fatos, sem deixar nenhum de fora. Um único fato concreto que não possa ser explicado pode pôr por terra uma bela teoria. O cineasta Jorge Furtado fez uma divertida sátira a esse aspecto no filme O Homem Que Copiava, quando os protagonistas, por vingança, planejam explodir o apartamento de um indivíduo com ele dentro. Quando começam a executar o plano, vê-se que um deles trouxe para o apartamento uma galinha viva e a colocou bem protegida num armário. “Mas, para que isso!?” exclamam os outros. E ele: “Bom, a polícia também vai se perguntar o que uma galinha estava fazendo aí, e enquanto não acharem uma explicação a investigação não vai poder avançar muito.”

O enredo torna-se às vezes incompreensível porque tentamos racionalizar, no escuro e “a posteriori”, atos praticados por pessoas sob tensão, agindo às pressas e motivadas por fatores que nunca conhecemos de todo. As pessoas têm comportamento contraditório. São valentes num dia e covardes no outro, espertas hoje, burras amanhã, executam as manobras mais complexas e depois acabam derrapando numa bobagem. O detetive, ao concatenar os fatos, tenta descobrir nos agentes motivações e intenções que justifiquem os fatos comprovados. Por que Fulano saiu de casa no meio da madrugada, de chinelos, pegou o carro às pressas, sem ter recebido nenhum telefonema? Por que o assassino ocultou o corpo e deixou um objeto próximo totalmente visível? Por que Sicrano se registrou no hotel com nome falso, e estava sem documento algum quando foi encontrado? Por que a vítima estava armada e não se defendeu, mesmo tendo a chance? Todos esses “porquês” exigem do detetive que busque uma lógica por trás dessas ações; e muitas vezes, no fim da história, ele constata que as pessoas agiram sem a menor lógica, seja motivadas por suspeitas ou medos infundados, seja impelidas por circunstâncias que eram importantes para elas mas que não têm nenhuma relação com o crime, e assim por diante.

Já se disse que a ficção tem obrigação de fazer sentido, mas a vida real não. Quando um detetive propõe teorias, não pode responder uma indagação dizendo “porque sim”; já que ele se propõe a explicar, a explicação tem que fazer sentido, mesmo que na vida real as ações dos personagens tenham sido caóticas ou absurdas. Quando deduz e organiza os fatos, o detetive tem que ser “mais real do que o rei”, tem a obrigação inicial de ser mais lógico do que a vida é.



[Nota: este artigo foi postado aqui no blog fora de ordem, por motivo de viagem, pressa, etc. No "Jornal da Paraíba", ele saiu no dia 13 de agosto, e "O som e o sentido", artigo 3890, no dia 12 de agosto.]

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

3889) Eu me lembro 5 (11.8.2015)



Eu me lembro de um brinquedo mecânico que tinha na Festa da Mocidade: uma mesa cheia de bonequinhos ligados a fios elétricos, tocando e dançando; minha mãe dizia que era o “candomblé”, e por muito tempo associei essa palavra a brinquedos elétricos que se mexiam sozinhos. 

Eu me lembro de Seu Egídio, o enfermeiro, chamado Catabí porque tinha um problema físico e andava todo balançando, e vinha na casa da gente aplicar injeção. 

Eu me lembro dos rosários de coquinhos enfiados numa linha, que minha mãe comprava na feira.

Eu me lembro dos chaveirinhos com imagens 3-D, que a gente segurava e ficava mudando a posição, e a imagem parecia estar em movimento. 

Eu me lembro de quando fui sozinho ver a matinal de domingo no Babilônia e me obrigaram a levar o guarda-chuva porque era um dia nublado, e eu era a única pessoa com guarda-chuva no cinema inteiro. 

Eu me lembro de uma prova de História em que perguntaram o dia do descobrimento da América e eu me atrapalhei e botei “24 de outubro”, que era o aniversário de meu pai, e a professora nem percebeu, ganhei o ponto do quesito.

Eu me lembro dos meus relógios de pulso marca Lanco e Fortissimo, e do despertador marca Westclox. 

Eu me lembro de quando por trás da “barra do quartel” no Estádio Presidente Vargas havia uma enorme placa de Cinzano, e de vez em quando um atacante acertava uma bolada nela, que ficava vários metros mais alta que  a barra. 

Eu me lembro das calças de Nycron e da camisa Volta Ao Mundo, que eu tinha de usar quando trabalhei como datilógrafo na FURNe, e detestava porque tinha a sensação de estar usando roupas de plástico.

Eu me lembro quando depois do último capítulo de uma novela na Rádio Borborema meu pai levou os atores para beber lá em casa e eu vi pela primeira vez um roteiro datilografado. 

Eu me lembro do casarão (que não existe mais)  na rua Vidal de Negreiros onde estudei o 1º. ano primário no Colégio das Lurdinas, e que anos depois se tornou a sede do Treze, servindo de concentração e de sala dos troféus.

Eu me lembro de furtar goiabas da goiabeira do vizinho, atrepado na grade lateral de uma cama de criança (pra servir de escada junto ao muro) e procurando algo amarelo entre as folhas verdes. 

Eu me lembro do Laboratório Químico que ganhei aos 9 anos, com tubos de ensaio, vidrinhos com substâncias e um livreto com instruções para experiências. 

Eu me lembro de personagens de gibi como o Morcego Negro, Flecha Ligeira, Flecha Certeira, Pecos Bill, Cisco Kid, Rocky Lane, Águia Negra, Gabby Hayes, Nyoka. 

Eu me lembro de quando um caminhão da Coca-Cola virou perto da casa de Chico Perácio e nessa noite o Alto Branco inteiro tomou Coca-Cola na janta.