sexta-feira, 20 de junho de 2014

3530) Mistério do futebol (20.6.2014)




(cartum de Matt Diffee)

Que mistério tem o futebol? (Cada um ponha nesse nicho o esporte de sua fatalidade.) Que mistério ele tem para alterar a tal ponto nossa pulsação cardíaca, e digo mais, nosso controle sobre a nossa própria mente?  Por causa de futebol vi cidadãos pacíficos tresloucados, homens honestos fazerem um-em-pé-e-quatro-rodando num instantezinho de distração de alguém (“sofri um pênalte!”), amores se desfazerem, famílias se desmancharem, vizinhanças virarem praças de guerra conflagradas.

No futebol o atleta faz uma amputação de si próprio, proibindo-se de usar suas extensões mais prestas e mais acostumadas ao uso: braços, mãos, dedos.  Correr sem-braços atrás de uma bola que quica e é chutada, podendo tocar nela só com os pés e a cabeça, parece tortura inventada num campo de concentração grotesco.  Se a beleza da imagem do cinema decorre da limitações do retângulo do “frame”, a beleza do balé futebolístico vem desses braços e mãos que, não podendo colidir materialmente com a bola, viram ectoplasma, asas invisíveis, viram lemes, hélices ou remos de que se vale o atleta em cada um dos voos curtíssimos de que é capaz. 

Viram coice de cavalo, rabanada de baleia. Talvez venha dessa amputação a impaciência das cotoveladas no adversário que assedia, uma reação que o nosso Leonardo celebrizou na Copa de 1994 e que nesta de agora eu já vi duzentas vezes. O braço vive nervoso, não pode fazer nada, a adrenalina é grande e o calor é um inferno, esse braço precisa descarregar em alguma coisa.

O esporte bretão é um xadrez e um balé.  O balé da cortada que faz o adversário passar deslizando e batido, o balé do voo de tantos metros para dar só o toque de cabeça necessário para o gol, o banho de cuia, o drible da vaca, o elástico, a pedalada, o gol de letra, o gol chorado, o gol do meio da rua. O balé é o jogo dos jogadores, é o duelo entre a técnica de cada um. O xadrez é o jogo dos técnicos, o duelo entre táticas.

E tem outra dimensão extraordinária do esporte, é sua estrutura dramatúrgica, organizada em disputas específicas com resultados numéricos claros e consensuais. É como um video-game.  Campeonatos, torneios, pontos corridos, mata-mata, tudo servindo de grade para o lado-humano, os craques e os supertimes que surgem, assombram, brilham, e passam.  O futebol nos dá uma certeza de resultados que a vida, essa sim, nos nega sempre. Em campo, a vitória pode ter sido injusta, mas é unanimemente aceita e vira fato. Um a zero é um a zero em qualquer idioma, raça, cultura ou religião. A clareza da disputa dá sustentação às sagas heróicas cuja história está contada naqueles jogos que quem viu não esquece jamais.


quinta-feira, 19 de junho de 2014

3529) Gêneros literários (19.6.2014)



Num artigo na revista Locus (2003), Gary K. Wolfe (um dos melhores críticos de FC em atividade) fez uma comparação entre três dos melhores romances da época: The Years of Rice and Salt de Kim Stanley Robinson, Coraline de Neil Gaiman e The Scar de China Miéville. O ponto de vista dele é expresso nessa frase: “Não é que os livros pertençam a determinados gêneros, eles derivam desses gêneros”.  O livro de Robinson é uma espécie de FC, o de Gaiman uma espécie de terror, o de Miéville uma espécie de fantasia.  Não poderiam (diz Wolfe) ter sido escritos, nem serem lidos, sem a conexão com esses gêneros. Mas nenhum deles pode ser plenamente assimilado somente em termos dos gêneros.

A grande maioria das discussões literárias (para não falar nas outras) nunca chega a lugar nenhum porque parte de premissas inadequadas.  Essas premissas são os termos que usamos na discussão e que nunca questionamos.  Vemos todo mundo discutir o assunto naqueles termos, e achamos que está certo, que essa é a única maneira de pensar a respeito.  E não é.  Podemos propor (como fez Wolfe) uma maneira diferente de enxergar o problema.

A expressão “pertencer a” contamina qualquer argumentação. Condiciona nossa maneira de falar sobre as coisas, de descrever as relações que a gente vê entre elas. “Pertencer”, além de indicar posse, indica uma relação hierárquica, impõe uma polaridade tipo superior/inferior.  Se a obra “pertence” ao gênero X, então pra todos os efeitos o gênero comanda a obra, a obra tem que obedecer às leis dele e às exigências dele, e, como não se pode servir a dois senhores, quem “pertence” a um gênero não pode pertencer ao mesmo tempo a outro.

E podemos, agora sim, dividir as obras em dois tipos. O primeiro é o das que aceitam pertencer, sim, a um gênero, aceitam seguir as fórmulas do gênero, porque é no universo do gênero que querem fazer sucesso e alcançar a fama e a fortuna, não necessariamente nesta ordem. O segundo tipo é o das obras que não querem “pertencer” a um gênero, querem nascer dentro dele e nutrir-se dele, mas ao fim e ao cabo querem afastar-se dele, derivar tendo-o como porto de decolagem. Ir embora do gênero levando algo dele consigo, assim como Severian foi embora de Nessus.

Nenhuma opção é melhor do que a outra; nenhuma garante que o resultado literário será superior. Quem determina isso é o indivíduo. Mas é um erro dizer que qualquer obra pertence a um gênero. Asimov, Clarke, Heinlein, todos tinham orgulho de pertencer ao gênero da ficção científica.  Kim Stanley Robinson,  Neil Gaiman e China Miéville escrevem como quem quer na verdade “derivar” dele; e não veem nenhum problema nisso.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

3528) Relíquias (18.6.2014)




Nos livros de capa-e-espada ou de aventuras de cavalaria apareciam com frequência (geralmente numa cena de rua, de feira, cheia de pessoas anônimas) os vendedores de relíquias. Um cacho de cabelo de São Fulano, uma unha de São Sicrano, um retalho do lençol com que São Beltrano se cobria...  

As pessoas mais pobres pagavam, apertavam a relíquia de encontro ao peito e saíam tomadas por um otimismo devastador.

Um cronista desabusado comentou: 

“Na Europa, nos últimos cinquenta anos, já foram vendidos pedaços da verdadeira cruz de Cristo em tal quantidade que daria para construir com essa madeira uma esquadra inteira de navios. ‘Cravos da verdadeira cruz’ são tão numerosos que dariam para crucificar um país inteiro.”  

E no entanto as pessoas compravam, e compram ainda hoje, as relíquias mais diversas. Não me refiro a imagens e símbolos em geral, mas à relíquia de caráter único, que esteve ligada à pessoa do santo de maneira muito próxima ou muito significativa. Ou uma parte do corpo dele.

Curiosamente, a ciência moderna produziu sua própria cultura de relíquias. Há indivíduos que ao morrer deixam sêmen congelado para poderem fecundar mulheres cem anos depois de mortos.  Outros deixam amostras de sangue, de cabelo, de tecidos: para que ali se conserve o seu DNA e, num possível futuro, alguém possa produzir um clone que seja para eles uma ressurreição parcial. 

(Isso funcionaria mais para os descendentes do que para ele. Os bisnetos poderiam se auto-iludir: “Meu bisavô está de volta!”, mas ele saberia que não era o mesmo.)

Recolher DNA de amostras humanas para produzir um clone de alguém é uma idéia recente, mas quem nos garante que já não estava presente na antiguidade.  Podemos imaginar uma rede secreta de viajantes no Tempo que eventualmente, no meio dos seus contatos com os “nativos”, aconselham: “Guardem relíquias das pessoas importantes. Guardem amostras do sangue num frasco, guardem cabelo, unhas, crânios, tecidos mumificados, tudo que puder ser preservado, e que seja autenticamente daquela pessoa.  Um dia isso terá utilidade.”

E podemos imaginar também a existência de corredores transversais no tempo, ligando universos paralelos e contíguos, fazendo com que relíquias de um sejam contrabandeadas para outro. 

Isso justificaria a piada do sujeito que vê num museu um esqueleto adulto com a placa “Esqueleto de São Francisco” e um esqueleto de criança com a placa “Esqueleto de São Francisco aos cinco anos”. O mercado transdimensional de relíquias está de vento em popa. 

Por exemplo, um bilionário russo de outro universo está colecionando esqueletos de Bin Laden.






terça-feira, 17 de junho de 2014

3527) Tá tendo Copa (17.6.2014)




Antes de tudo: sou a favor das manifestações, desde o começo. Quero que continuem, e que desmascarem as políticas dos governos (federal, estaduais e municipais, bem como do legislativo e do judiciário), políticas que prejudicam a população e favorecem apenas os grandes grupos econômicos, construtoras, bancos e financeiras, etc.  Sou a favor de qualquer manifestação que denuncie as tramóias da Fifa. É um grupo de trambiqueiros internacionais em grande escala, que veem nosso povo com desprezo e nosso país como um antro de otários fáceis de corromper porque são desonestos de nascença.

Tirando isto, toda Copa do Mundo é uma festa do futebol para otimistas como eu, que acham que os resultados não são combinados com antecedência ou manipulados de última hora, numa reunião a portas fechadas entre representantes da Fifa e das duas seleções que jogarão logo mais. É preciso despregar do futebol (o que é dificílimo) essa gosma de dinheiro sujo e de ambição corporativa. O jogo em si é uma beleza, pelo choque entre estilos diferentes de jogar, formas diferentes de talento (o talento, por definição, é individual, multiforme, de possibilidades inesgotáveis).

A pior coisa que pode acontecer nesta Copa é qualquer violência contra os visitantes. Acho que a regra da hospitalidade é sagrada, e qualquer violência (do anfitrião contra o hóspede, ou do hóspede contra o anfitrião) é vergonhosa. (Assistam Game of Thrones, onde este tema é recorrente.)  Vamos deixar que todos torçam em paz pelos seus times, chorem suas derrotas, comemorem suas vitórias. Inclusive quando, e se, nos derrotarem. Sei que é pedir demais a meros torcedores. Continuarei pedindo.

Gosto mais de futebol bem jogado do que da Seleção Brasileira. Em 1974 e 1978 torci pela Holanda, que na época era o melhor time do mundo.  Em parte, também, torci contra a Seleção para ser contra o governo (era a época da ditadura), mas hoje acho que isso é bobagem. A Seleção representa mais o povo do que o Governo, mesmo que este pegue carona nos seus triunfos.  Os governos passam e a Seleção fica.

Não faço questão de que o Brasil seja campeão. Preferiria alguma seleção que joga bem e nunca foi. (Menos os EUA, que são a Roma Imperial de hoje.) Quero que a Copa seja alegre, festiva, disputada, com grandes jogos e grandes jogadas, que revele novos craques, que consagre os antigos, que ajude alguns a encerrar suas carreiras de cabeça erguida. No esporte, só um é campeão; mas há incontáveis motivos para orgulho e celebração, mesmo quando se é derrotado. Quero que a festa na rua seja bonita, e que após o final todo mundo vá embora pensando: “Obrigado, Brasil”.


domingo, 15 de junho de 2014

3526) De onde vêm as idéias? (15.6.2014)




(ilustração: Bill Waterson)


Todo escritor é obrigado a responder essa pergunta em qualquer bate-papo, palestra, chat via Internet. Cada um se vira como pode. A resposta não é difícil de dar, mas existe um acordo entre escritores profissionais de que é proibido revelar esse segredo aos leitores, aos críticos e aos escritores não-profissionais. 

É um pouco como os rituais da Maçonaria, a senha de acesso ao mainframe da CIA e a idade das atrizes do cinema. Correndo o risco de ser metralhado por mafiosos numa noite chuvosa numa rua deserta, revelarei alguns desses lugares secretos de onde vêm as idéias para as obras literárias. 

No Rio de Janeiro há uma galeria, na rua Marquês de Abrantes, com uma daquelas maquininhas de vender balas mediante fichas. Quem pede a ficha mais cara tem acesso a um depósito de balas que são ocas e trazem idéias para histórias no seu interior, enroladinhas em papéis como os do “biscoito da sorte”.  

Em Melbourne (Austrália), no aeroporto, basta pedir a versão atualizada do “Guia de Ruas”: a cada cinco páginas haverá um pequeno box impresso com idéias para histórias. 

Em Seattle, há uma casinha de subúrbio sempre trancada, mas a porta dos fundos fica aberta. Numa lata de leite em pó no armário, há idéias. 

Em Lodz, na Polônia, podem-se receber mentalmente idéias de uma árvore no jardim municipal, mediante uma espécie de wifi, não de mensagens concretas.

Curiosamente, foram localizadas três cidades onde as idéias podem ser recolhidas num cofre de fechadura quebrada no guarda-volumes da respectiva estação rodoviária: são elas Feira de Santana (Bahia), Ipatinga (MG) e Vancouver (Canadá).  

Nas minhas anotações consta também um supermercado em Vila Mariana (São Paulo) onde as pessoas que compram sacos de batatinhas Ruffles deparam-se às vezes com um saco (de cor inesperadamente verde) cheio de idéias anotadas e dobradinhas.  

Viajando fora do Brasil e precisando escrever, já encontrei idéias distribuídas como brinde a quem tomasse o café da manhã numa padaria no Largo do Areeiro, em Lisboa.

Há um filtro de barro que goteja idéias numa fonte dos banhos públicos, em Omã.  

Há um calendário em Baía da Traição com uma idéia atrás de cada folhinha que se arranca. 

Há uma ampulheta em Roraima onde a areia ao cair revela uma idéia que logo se desmancha e também se esvai em grãos.  

Moradores de Kalamazoo (EUA) reportam uma afloração de idéias à superfície de uma mina onde nenhum minério mais restava.  

Em Lyon, surgem envelopes apátridas de idéias, jamais abertos, apenas tendo duas inscrições pelo lado de fora, lidas com desvelo, e em seguida reenvelopados intactos e remetidos para produzir idéias em alguém.





sábado, 14 de junho de 2014

3525) A volta do piquenique (14.6.2014)



(ilustração: Tudor Dulhaz)

Me contaram (tantas vezes que para mim virou uma repousante verdade) que quando eu tinha oito ou dez anos eu morava numa casa ali perto da Mata da Bombinha, do lado de lá da universidade. No colégio me chamavam de Aluado, porque eu era um garoto arredio e diferente dos outros. Eu não entendia as aulas, isso eu me lembro. E do pouco delas que me lembro não entendo até hoje.  Essa escola ficava junto da Praça da Fonte. Meus pais me levavam de manhã e me pegavam no fim da tarde; eu almoçava lá.

Um dia (disseram) a turma foi fazer um piquenique e um passeio guiado na mata, com três professoras e dois assistentes. A escola era séria e as precauções eram grandes, mas parece que houve um momento em que todas as crianças foram para um lado e eu para outro. Eu me perdi. Durante horas todos quase perderam o juízo. Muita preocupação e desespero, achando que, sendo eu quem era, algo terrível devia ter me acontecido.

O que eles só deduziram depois, comparando provas e lembranças, foi que eu vi algo que me era familiar, algum caminho na mata que eu já tivesse trilhado antes, e por algum motivo tivesse achado que era naquele rumo que esperavam que eu fosse.  Quando deram pela minha falta e conseguiram organizar um mínimo de expedição de busca, eu já devia estar muito longe. Ao longo da manhã e da tarde eu caminhei pela Mata da Bombinha, até que (isso eu me lembro, ninguém me contou) ao me virar de repente enxerguei a rua que levava à rua que levava à rua que levava à minha rua. 

Havia pouca gente. Já começava a escurecer. Ao chegar em casa, vi que estava fechada, meus pais deviam ter saído e éramos só nós três. Eu não sabia de nada, só sabia que estava morto de cansado. Cruzei a rua sem ser visto, a porta da cozinha estava trancada, mas havia a escada na garagem e o postigo no sótão. Vivia desferrolhado, quase como se fosse uma coisa planejada. Entrei, fui para o meu quarto, desabei, dormi.  Pouco depois fui despertado por gritos de uma multidão onde reconheci meus pais, pessoas com farda de polícia, pessoas com farda de médico, pessoas empunhando os celulares, apressadas. Estavam me procurando há cerca de oito horas.

Eles não sabem (nem eu vou dizer) que durante aquele tempo afundei caravelas, contemporizei com dragões, neutralizei criptonitas, fugi da bela dama sem mercê, galguei o trono, pisei no planeta, domei burros brabos, compus sestinas, violei pirâmides, matei o tempo mil vezes e mil vezes voltei a matá-lo em suas mil ressurreições, e outra coisa que me lembro é que na hora eu me julguei merecedor do resultado final daquilo tudo. A única coisa de que me lembro é que já fui rei de alguma coisa.


sexta-feira, 13 de junho de 2014

3524) Números literários (13.6.2014)




Existem números literários, assim como existem números circenses ou números musicais.  Um conjunto de elementos organizados de maneira bem específica e que devem ser reconstituídos, refeitos, diante de uma platéia de conhecedores.  Um pouco como a execução de música mediante partitura.  

A perseguição à diligência é um número do cinema de faroeste: havia técnicos especializados nela, etc.  

A reunião dos suspeitos diante dos quais o detetive rememora as pistas do caso e acusa o criminoso é um número da literatura policial.  

A torta-na-cara é um número dos palhaços, o trevo-de-Brasília (ou sei lá que nome lhe dão) é um número da Esquadrilha da Fumaça, e a briga-mortal-à-beira-do-abismo é um número cinematográfico obrigatório em mais gêneros do que me atrevo a enumerar.

O número é tipicamente um efeito literário que não apenas já foi feito antes, mas é tão conhecido que acaba se tornando um desafio técnico. Como certos números musicais que requerem perícia de execução do instrumentista, ou saltos acrobáticos e complexos no skate ou na prancha de surfe.  

Isso se torna interessante quando aplicado à prosa de ficção porque possibilita um escape para escritores profissionais que vivem de escrever com velocidade e em abundância.  A pulp fiction dos anos 1930-40, as HQs e os filmes de super heróis, o mistério policial, são gêneros onde a exploração de infinitas variantes de alguns números básicos chega a prejudicar a verossimilhança dos enredos, que tornam-se barrocos, e depois maneiristas em excesso.

A descoberta de um cadáver por alguém inocente. O triângulo amoroso.  O stand-off de armas em punho entrecruzadas.  A fuga pelos dutos subterrâneos.  O documento vital escondido num quarto, ou numa casa, e que deve ser encontrado.  O encontro com o próprio duplo, ou sombra, ou reflexo.  

Quando situações assim se apresentam, estão retornando pela décima ou vigésima vez, já fazemos idéia de seu formato e de como funciona, e temos sempre a expectativa de ver uma nova variante que mereça aplauso.

Há escritores que são mestres na execução de tais números (“Fulano escreve cena de tribunal bem pra caramba”) e acabam meio que vivendo dessa reputação, produzindo histórias e criando universos onde essa sua especialidade se torne mais necessária. 

Os crimes de quartos fechados de John Dickson Carr, os padrões dos criminosos seriais (incontáveis autores), os crimes dentro de um labirinto de Borges, forçaram os limites do gênero, tornaram-se  uma espécie de virtuosismo autoral.  

Um tour-de-force onde, como Sergei Bubka, o desafio do autor é tentar ir um pouco mais longe do que foi na vez passada.




quinta-feira, 12 de junho de 2014

3523) Pessoas desaparecidas (12.6.2014)



(ilustração: José Oiticica Filho, 1953)

Por mim, podia ser um gênero literário à parte. Nítido, com um conjunto de situações essenciais, de premissas capazes de abrir para o autor um infinito de possibilidades para a exploração de lugares, pessoas, tipos, situações bizarras ou patéticas.  Estou me referindo ao Romance da Pessoa Desaparecida, que tanto pode acontecer do ponto de vista dos que procuram esse indivíduo quanto do ponto de vista do próprio desaparecido, em sua nova condição.

Desaparecer significa sumir sem deixar rastro nem notícia, sumir sem ser mais alcançado por nenhuma das pessoas com quem se tinha vínculos (família, amigos, trabalho).  Às vezes, a pessoa aproveita uma circunstância fortuita para trocar de identidade e se fingir de morto (O Passageiro: Profissão Repórter, de Antonioni). O conto “Wakefield” de Nathaniel Hawthorne (que incluí na minha antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges) fala de um homem que some de casa e fica vigiando a esposa durante anos, às escondidas.

Não vou incluir, neste capítulo, pessoas que foram simplesmente assassinadas e seu corpo nunca foi localizado.  Meu interesse é por pessoas que tomaram a decisão de sumir, sumiram, estão vivas e incógnitas.  Sumiram por dívidas, por desespero, por problemas familiares, por aventura, por desorientação mental, não importa. É a famosa pessoa que sai para comprar cigarros e nunca mais se sabe dela, que pegou um ônibus e não chegou ao destino, que limpou a conta no Banco e evaporou-se.

O romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende cria sua variante: uma mulher começa a tentar localizar, numa cidade que mal conhece, uma pessoa de quem só sabe o nome e que parou de dar notícias à família.  E nessa busca, ela própria, que está vivendo uma vida meio troncha, de expectativas cortadas, numa meia-idade meio sombria, percebe que para tentar achar um desaparecido é preciso desaparecer também. 

Nossas cidades são cheias de desvãos, de espaços baldios, de territórios públicos para onde são empurrados milhares de pessoas sem rosto e sem nome diante do mundo.  Quem entra naquele espaço torna-se tão invisível quanto um porteiro, um ascensorista, uma doméstica. É o mundo dos sem-teto, dos sacoleiros, das pessoas que dormem em rodoviárias ou salas de espera de hospitais, que lavam e secam a roupa nas fontes das praças. Quem são?  Não sei, nunca parei para conversar com esses ETs.  Podem ter desaparecido como a Luísa Porto de Drummond,  como a Anastasia da família do czar, ou simplesmente como alguém que quis deixar para trás um nome sujo na praça, um rosto desprezado por alguém, uma vida que chegou a um beco-sem-saída e o jeito foi pular o Muro.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

3522) Doukipudonktan (11.6.2014)



(Zazie no Metrô, Cosac Naify, 2009)

Raymond Queneau, um dos meus autores mais queridos (ver aqui: http://tinyurl.com/lprpneb) escreveu de tudo e refletiu sobre tudo. Um dos seus assuntos preferidos era a diferença (para ele gigantesca) entre o francês escrito e o falado.  Francês é uma língua invocada, cheia de partículas enigmáticas, letras mudas, hífens e acentos e sinais diacríticos eriçados em todas as direções. Parece aqueles apartamentos de viúvas idosas e chiques, repletos de bibelôs, adereços, quinquilharias ornamentais preservadas a todo custo.

Queneau sugeriu a criação de um “neo-francês”, depilando o idioma de todas essas franjas descartáveis. Não colou, claro. É mais fácil a Vigilância Sanitária de lá proibir certos queijos. Queneau comentava a tendência do francês a uma “coagulação fonética” em que os sons tendem a se fundir e as letras a se multiplicar. No texto “Écrit em 1937” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1965), ele faz longos comentários sobre este tema e conclui: “On népa zabitué, sétou. Unfoua kon sra zabitué, saira toussel.” (Estas palavras exóticas, ditas em voz alta, serão entendidas por quem as ouvir; é o neo-francês fonético, mandando a etimologia às favas.)

Seu romance mais famoso, Zazie no Metrô (1959) começa com uma palavra mágica: “Doukipudonktan?”. É a pergunta que se faz o personagem, incomodado pelo odor corporal das pessoas amontoadas na estação à espera do trem. A palavra é a coagulação de “D’où qu’il pue donc tant?”.  Virou um teste para os tradutores.  Em inglês (o romance foi traduzido por Barbara Wright) encontrei “Holyfart watastink?” e “Howcanaystinksotho?” (o segundo é citado num saite, sem atribuição).

 Em português, a tradução lusitana de Alexandre Rodrigues (Círculo de Leitores, Lisboa, 1974) simplifica: “Donde parte este cheirete?”.  Em 1985 saiu pela Rocco a tradução de Irène Monique Harlek Cubic, que diz: “Pômakifedô!”.  A versão mais recente (2009) é a de Paulo Werneck para a Cosac Naify: “Dondekevemtantofedô?”. 


Só a análise dessas versões, das opções possíveis, das escolhas feitas, das pequenas infidelidades e dos volteios criativos, daria um artigo imenso.  Mas é um bom exemplo daqueles momentos em que dificilmente, em cem traduções, teremos duas iguais. A aglutinação sonora e semântica duma palavrinha assim é de tal porte que ela vira um nó indeslindável. É preciso inventar outra palavra, e nesses momentos a tradução se torna meio psicografia. É preciso entender como Queneau pensava, imaginá-lo tendo nascido no Brasil e como ele inventaria em português essa palavra de abertura. Que equivale a um “provocativo movimento”, a uma declaração de princípios, a um manifesto estético e social.



terça-feira, 10 de junho de 2014

3521) Meu São João (10.6.2014)



Meu São João espiritual começou na quarta-feira dia 4, no XIII Forum de Forró em Aracaju.  Três dias de palestras, debates e shows, tendo como homenageados este ano Antonio Barros & Cecéu (PB), Zé Calixto (PB), Edgard do Acordeon (SE) e Rogério (SE).  O Forum se realiza todos os anos na capital de Sergipe, e foi lá, em edições anteriores, que tive a alegria de bater longos papos com Almira Castilho (ex-parceira de Jackson do Pandeiro), Carmélia Alves (a Rainha do Baião), Dominguinhos, Onildo Almeida, D. Iolanda (viúva de Zé Dantas), o pesquisador cearense Nirez, o compositor João Silva e muitas outras pessoas ligadas ao mundo da música nordestina.

O São João para nós, nordestinos, é uma espécie de Copa do Mundo musical que dura um mês inteiro. Uma febre de festas que se estende por trinta dias e que no fim nos larga numa cama, extenuados e felizes.  A festa é a festa e se justifica por si só; mas a vida não é somente a festa. É trabalho também, e não devemos esquecer que quando estamos bebendo e dançando, bem satisfeitos, aqueles músicos em cima do palco estão trabalhando.  Estão se divertindo, também, mas sobrevivem daquilo (ao contrário de nós) e é do interesse deles todos que, assentada a poeira da festa, tenha havido algum tipo de proveito profissional para isso tudo. 

Vai daí que o Forum do Forró é um espaço onde se discutem as questões artísticas e profissionais do forró. O que é o forró?  Quais os estilos musicais que ele inclui?  Quem são os grandes criadores, e que tipo de parâmetros eles deixaram para nós?  O forró pertence ao ano inteiro ou só ao São João?  O forró de hoje ainda é rural ou já é todo urbano?  Como conviver com as “bandas de forró eletrônico” que arrancam cachês milionários das prefeituras do interior?  O que fazer com instrumentistas geniais que não arrastam multidões gigantescas mas são os responsáveis pela manutenção da tradição e pelo alto nível técnico do gênero?

O forró pé-de-serra é como a Lua: míngua, míngua, e quando parece que vai desaparecer começa a crescer de novo.  Já aconteceu antes e vai continuar acontecendo: e mais, a mesma coisa aconteceu e acontece com o cordel, a cantoria de viola, o samba de raiz e tantas outras formas de arte espontâneas e populares que precisam concorrer com formas industriais e planejadas. O São João está começando; que seja um momento de festa e também um momento de reflexão sobre os rumos da festa. Porque a festa é do povo, que fica, e não dos poderes, que passam.  Somos nós, os artistas, cantores, compositores, que devemos tomar a frente para manter vivo esse tipo de música. O resto passará, como já passou.