domingo, 27 de abril de 2014

3484) Motes e glosas (27.4.2014)




A arte de dar motes para que alguém crie uma glosa parece hoje ser exclusiva dos que vivem no meio da poesia popular.  

Pra quem não sabe do que se trata: o mote é um tema que se propõe ao poeta, em geral sob a forma de um ou dois versos que fornecem um assunto a ser desenvolvido até completar uma estrofe de dez versos, que segue um esquema de rimas obrigatório.  

Desse modo, glosar um mote é fazer uma parceria momentânea, em que você me lança um desafio, fornecendo essas linhas (que deverão ser o final do verso, da estrofe) e eu aceitarei o desafio, improvisando na hora outros versos que desenvolvem o assunto até chegar nos versos que recebi.

Isso é a cara do Nordeste? É a cara do Brasil antigo, um Brasil que já houve, e que no Nordeste se manteve vivo, ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro. 

No conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899) Machado de Assis mostra estudantes cariocas propondo a um amigo o mote “Podia embrulhar o mundo / a opa do Elisiário” (meu comentário sobre o conto, aqui: http://tinyurl.com/nlqsjep).  

No capítulo XII (“Um episódio de 1814”) de Brás Cubas ele descreve o Dr. Vilaça, “glosador insigne”, num ritual semelhante ao que vejo ainda hoje em qualquer mesa de glosas em Campina ou no Pajeú: 

“Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.”

E hoje, procurando outra coisa nas Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (1955) de Vivaldo Coaracy, encontro este episódio saboroso: 

"Eram as freiras [do convento] da Ajuda carinhosamente benquistas pela população carioca que as tinha em alta estima. Não as impediam a clausura e a sua devoção de serem alegres. Por ocasião de certas festividades religiosas, atiravam elas, pelas janelas, rebuçados, biscoitos e outras guloseimas aos grupos que se formavam em frente ao mosteiro. Nem só doces e balas jogavam. Com frequência atiravam pelas grades do locutório papeluchos em que vinha escrito algum mote, em desafio a ser glosado por qualquer poeta presente. E nunca faltavam vates para, entre aplausos ou apupos, improvisar as glosas sugeridas”.

O Rio já cultivou esses hábitos, que nós da Paraíba consideramos tão sertanejos. Mas a roda do tempo não para. Veio a ordem... veio o progresso... e o sertão virou mar.





sábado, 26 de abril de 2014

3483) William Castle (26.4.2014)



Quando eu era menino, ele era chamado por grande parte da imprensa “o rival de Alfred Hitchcock”. Seus filmes, mais até do que os de Hitchcock, eram verdadeiros eventos. Para mim ele e Hitchcock (eu era fã de ambos) eram cineastas parelhos, nivelados, uma dupla parecida, que fazia uma concorrência saudável – algo como Lucas & Spielberg, ou como Coppola & Scorsese. 

Foram precisos alguns anos de estudo para eu perceber a diferença essencial. Hitchcock foi (talento à parte) um dos mais ricos e poderosos diretores do seu tempo. William Castle era um diretor de filmes B, que compensava em esperteza o que lhe faltava em poder político. Em termos práticos, estava mais próximo de um Roger Corman (o rei do filme de terror barato) do que do diretor de Rebecca.

Seu centenário está sendo comemorado neste mês de abril, sem muito alarde, porque só os fãs de filmes de terror se lembram dele.  Seus filmes só passam nos corujões a cabo, enquanto que Os Pássaros (1963), de Hitchcock, reestreou com cópia nova e publicidade no mês passado. 

Em vida, a publicidade era o instrumento preferido de Castle. Quando ambulâncias foram estacionadas na frente dos cinemas que exibiam O Exorcista em 1973, isso virou notícia. Castle havia feito o mesmo com Macabro (1958), que inclusive dava a cada espectador uma apólice de seguro de vida para o caso de alguém morrer de medo durante a projeção.

Castle assustava os espectadores ligando motores que faziam vibrar a poltrona durante a projeção, fazia um esqueleto pendurado no ar passar sobre as cabeças da platéia, distribuía óculos especiais para ver os fantasmas vistos pelos personagens do filme, interrompia a projeção antes da cena culminante para que os espectadores medrosos fossem embora (com devolução do dinheiro)... 

Não, não vi nada disso no Cine Capitólio – funcionava apenas em salas escolhidas nos EUA, mas o mundo inteiro comentava.

É dele um dos filmes que mais me aterrorizaram na infância, Força Diabólica (The Tingler, 1959), com Vincent Price, descrevendo uma espécie de centopéia que se desenvolve na coluna vertebral das pessoas amedrontadas (causando o famoso “frio na espinha”) e que só pode ser morta se a pessoa gritar a plenos pulmões. Quando Vincent Price, no final, se vira para a câmera e manda gritar, o que vocês acham que o cinema inteiro fazia?

Castle, que se divertia tremendamente inventando essas coisas, trouxe de volta ao cinema aquelas tecnologias mambembes de quermesse, do tempo de Georges Méliès, e recriou nos anos 1950 aquele terror inocente dos espectadores que pulavam para o lado quando o trem dos irmãos Lumière se aproximava da câmera.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

3482) Tempestade de espadas (25.4.2014)



A Storm of Swords é o terceiro volume das “Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin, em que se baseia a série de TV Game of ThronesA quarta temporada começou este mês, já com episódios de grande violência, puxadas de tapete de deixar de boca aberta o espectador, diálogos cortantes e imagens de alto impacto. Sempre temos que levar em conta, nessas adaptações, a enorme diferença entre a página escrita e a imagem filmada.  Uma coisa é você escrever o melhor diálogo do mundo na página: a única coisa de que precisa é um leitor inteligente o bastante para perceber o que o dialogo diz. Outra coisa é ver esse diálogo entregue a atores que no momento de falar aquelas palavras se tornam parceiros de criação, para o bem ou para o mal. A regra básica diz: um mau ator pode estragar o melhor diálogo, um bom ator pode pegar uma frase banal e enriquecê-la de significado. O ator é o ponto final da cadeia criativa, pode valorizar ou destruir tudo que foi feito antes.

Game of Thrones conta com bons atores, e mais do que performances excepcionais (são todas no nível B+ da TV) tem atores corretamente escalados para os papéis. Isso valoriza os ótimos roteiros, porque na TV não existe a preparação gradual de tensões dramáticas, os monólogos interiores, o acesso aos pensamentos íntimos dos personagens, que dão consistência aos livros. Martin é um escritor exuberante, não em termos de estilo, mas de imaginação dramática. Ao contrário da maioria dos romances de fantasia heróica, onde tudo parece “escrito nas estrelas”, seus livros nos dão a impressão de fazerem correções de rumo o tempo todo. Com cem páginas de intervalo, muda a balança do poder, mudam os interesses políticos, mudam as alianças pessoais, muda o caráter ou a disposição íntima dos personagens. E tudo se encadeia, porque numa terra onde só há duas leis, a política e a espada, ninguém tem certeza absolutas, principalmente quando são os personagens com certezas absolutas (leia-se: princípios morais inabaláveis) que são abatidos como carneiros.

Assassinatos em festas de casamento, sexo incestuoso em pleno velório, massacre de inocentes só pra mandar um recado a alguém, tortura, estupro: dito assim parece que o seriado é uma câmara de horrores, mas na verdade tudo isso não é mais violento do que uma guerra sertaneja ou uma tragédia shakespeariana. Game of Thrones é uma espécie de Macbeth elevado à sétima potência, e foi descrito por alguém como “O Poderoso Chefão na época do Senhor dos Anéis”.  O jogo dos tronos é o jogo do poder, e ninguém até hoje ganhou esse jogo de mãos limpas, seja de sangue, seja de dinheiro.


quinta-feira, 24 de abril de 2014

3481) Os jovens acomodados (24.4.2014)



(foto: Klaus Pichler)

Um artigo de Bruce E. Levine (aqui: http://tinyurl.com/k6zrjsz) discute o conformismo, a passividade e a acomodação por parte da juventude dos EUA, que já foi mais combativa, mais disposta a lutar por causas sociais. Os oito sintomas e causas que ele aponta são locais, mas alguns podem ser extrapolados para outros países, como o Brasil.

Um: débito educativo, e o receio que ele provoca. Cerca de dois terços dos universitários têm uma dívida média de 25 mil dólares, sendo que em alguns casos isto chega a 100 mil.  O sujeito que deve tanto ao governo (e lá essas coisas são cobradas pra valer) pensa duas vezes antes de sair à rua com cartazes de protesto. Dois: patologizar o protesto. Entre outras, a “Oppositional Defiant Disorder” (ODD) é uma doença oficialmente reconhecida: o doente “frequentemente desafia ou recusa-se a cumprir exigências ou regras dos adultos, (...) discute com frequência, (...) deliberadamente faz coisas para aborrecer outras pessoas”. Tarja-preta nele, numa cumplicidade entre pais, médicos e escola.

Três: escolas da obediência. Todo o sistema de ensino tem se voltado para fazer o jovem cumprir regras, atingir metas, temer punições, obedecer. As escolas ensinam teorias democráticas, mas são autoritárias em sua prática. Quatro: educação competitiva. Programas como “No Child Left Behind” e “Race to the Top” estimulam a ansiedade e a competição, e minimizam a curiosidade, a espontaneidade de ação, o pensamento crítico.

Cinco: valorização cada vez maior do ensino formal, em detrimento do aprendizado na família e na rua; mentalidade “quem não tem diploma não sabe de nada”. O autor diz que vai longe o tempo de Mark Twain, que dizia: “nunca deixei a escola interferir na minha educação”.  Seis: normalização da vigilância. Os jovens estão achando cada vez mais normal que a vigilância eletrônica permeie sua vida e suas atividades. Pais controlam a vida dos filhos através de CPS e câmeras domésticas, além de vigiar sua vida escolar via websaites. Isso produz nos jovens uma atitude generalizada de “De que adianta?”.

Sete: televisão (que inclui TV, computadores e celulares). Mídias cada vez mais controladas pelas corporações, programações desviando a agressividade e a energia dos jovens para atividades dissipativas que não envolvem críticas ao regime. Oito: religião fundamentalista, consumo fundamentalista. O consumo torna-se “ópio do povo”, produzindo uma população voltada para o culto ao que é produzido e massificado, e a uma vulnerabilidade maior à linguagem, argumentos e técnicas da propaganda.  Poucos espaços da vida do jovem não são ocupados pela máquina ideológica corporativa.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

3480) Dicionário Aldebarã VII (23.4.2014)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Alquonnin”: aquelas discussões explosivas e melodramáticas das quais, no dia seguinte, as pessoas não conseguem lembrar uma frase sequer. 

“Esplangs”: gestos maquinais que fazemos quando estamos distraídos ou preocupados, e que todo mundo percebe, menos nós mesmos.  

“Zirguenns”: moedas que é hábito esconder em diferentes partes da casa, para, ao serem encontradas um dia, proporcionarem um momento de alegria inesperada.  

“Treschiolint”: mini-altar com imagens de divindades que são substituídas por outras quando os pedidos do fiel não são atendidos.

“Handol”: um subalterno que realiza todo o trabalho para que seu superior fique com a fama. 

“Relodans”: todas as pessoas que compartilham a mesma data de nascimento (dia, mês e ano). 

“Huwennoks”: a súbita sensação que temos, quando estamos num ambiente qualquer, de que há um detalhe que nos separa de todo o resto das pessoas presentes.   

“Roduc”: o estado de nervosismo de uma multidão entrando em pânico, ou de uma manada de gado prestes a estourar.

“Izannes”: o hábito de encerrar uma conversa com despedidas e logo em seguida lembrar um novo assunto e começar tudo de novo. 

“Lumpas”: exclamações sem sentido que são ditas no lugar de palavrões quando a pessoa está num ambiente mais formal. 

“Moitum”: a coincidência de dois ou três compromissos urgentes aparecerem na mesma hora e ao mesmo tempo. 

“Guembes”: talismã que se pendura ao pescoço apenas um dia por semana, o que deve ser decidido no momento do despertar.

“Trevon”: a boa sensação de cansaço após uma tarefa dura que foi cumprida de maneira satisfatória. 

“Iquinde”: pulseiras e colares feitas de pequenas sementes vegetais, que servem como repelente de insetos. 

“Maironde”: historietas tradicionais compartilhadas por um grupo de pessoas que espera o transporte à beira da estrada. 

“Onfra”: arranjos de jardinagem que são realizados periodicamente para assinalar datas importantes na vida da família.

“Ersala”: o modo como episódios ou pessoas inconvenientes são substituídos por circunlóquios quando precisam ser mencionados em público. 

“Elcadre”: um duelo entre duas pessoas ou equipes em que cada uma possui uma vantagem diferente em relação à outra. 

“Parfil”: flauta rústica que é possível improvisar apenas dobrando qualquer folha de papel, de acordo com um esquema tradicional.


terça-feira, 22 de abril de 2014

3479) O navio fantasma (22.4.2014)



A morte de Garcia Márquez me deu aquela tristeza de saber que nunca mais ouvirei falar sobre “o mais novo livro de Garcia Márquez”.  Geralmente, compenso esse efeito melancólico com a lembrança de que não li a maior parte do que o autor escreveu, então, bem ou mal, quando eu pegar para ler O veneno da madrugada ou Doze contos peregrinos é como se fosse um livro com a tinta ainda úmida.

Fui dar uma relida nos textos dele online e me bati com um pequeno mistério, que aproveito para dividir.  GGM tem um continho curto que é uma beleza, “A última viagem do navio fantasma”, um daqueles contos de parágrafo único que nos arrebatam da primeira à última palavra e se transformam numa pequena epifania literária. É a história de um menino num povoado à beira-mar que vê passar um navio fantasma (que somente ele vê) o qual acaba afundando; isso se repete todo ano, na mesma data, e ele pensa que é a reconstituição sobrenatural de um fato ocorrido num passado remoto.

Não tirarei de ninguém o prazer da leitura dessa joiazinha de apenas 2 mil palavras (dá mais ou menos a extensão de 4 artigos como este), num fluxo de imagens que aqui lembram Ray Bradbury, ali Mario Quintana, mais adiante Marc Chagall ou Fellini. No final (que não revelarei), o menino tem um vislumbre do nome do navio, quando o descreve: “...veinte veces más alto que la torre y como noventa y siete veces más largo que el pueblo, con el nombre grabado en letras de hierro, balalcsillag...”.

Nome esquisito, que parece inventado, não é mesmo?  Mas hoje temos São Google, em cujo altar dou minhas clicadas cotidianas. Lá vou eu perguntar pelo nome. Praticamente todas as respostas se reportam ao conto de Márquez, que é reproduzido mundo afora em várias línguas. Mas no alto da página o Google faz aquela ressalvazinha robótica de sempre: “Você quis dizer ‘halálcsillag?”. Era tão parecido que eu cliquei, pensando, “sim, digamos que foi isso mesmo”.

Fui dar numa página cheia de que? De reproduções da “Estrela da Morte”, a Death Star de Star Wars. “Halálcsillag” (começando por um “H” e com um acento no segundo “A”) é o nome da Estrela da Morte em húngaro (magyar)!  Que coincidência é essa? A Wikipédia em espanhol dá a data do conto como sendo 1968, ou seja, muito antes do filme de George Lucas, e a publicação em livro foi no volume A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, que é de 1972. Não tenho o livro, não sei se nas traduções se mantém esse nome (é nas últimas linhas do conto). A questão é: Por que motivo o nome do navio gigantesco do conto de Márquez é quase igual ao nome da Death Star em húngaro? Hipóteses serão bem vindas.


domingo, 20 de abril de 2014

3478) Ladrão é gente (20.4.2014)



É tanto crime, tanto assalto, tanta violência feia campeando no mundo que as reações das pessoas pipocam por todo canto. Ninguém é tão veemente quanto um cidadão de bem quando vê seus direitos ameaçados.  Nas redes sociais, cada um traz sua receita de como lidar com o problema.  Um pede mais polícia no seu bairro, para que os ladrões vão todos para bairros mais distantes (e os bairros distantes que se danem, afinal ele não conhece ninguém lá). Outro exige educação gratuita e de boa qualidade para todos, o que é uma das melhores idéias da humanidade em todos os tempos, mas como não tem efeito retroativo deixa sem saída o camarada que está tendo os bolsos revirados sob a mira de um tresoitão.  Vem um terceiro e brada: “Vamos pra rua linchar!”, e de fato vai pra rua e lincha, e esta é uma solução tão eficaz que não tarda a surgir um outro grupo para linchar ele próprio, assim como os guilhotinadores franceses morreram todos na guilhotina.

Alguns dizem: “Que é isso... conversa com o ladrão... às vezes ele está ali por mero desespero... explica pra ele que aquilo não resolve...”.  Ouvi uma história de um cara que foi rendido por um ladrão: “Passa a grana!”  Ele meteu a mão no bolso, tirou todo o dinheiro que tinha, mas disse: “Vou te dar, mas isso não vai ser um roubo, eu quero salvar você desse caminho que não leva a nada, toma o dinheiro, é um presente!”.  O ladrão recebeu, desconcertado, e pra não perder a moral falou: “Tá OK, mas então me dá também o sapato.”

Não tem solução mágica, porque mesmo quando a solução serve para um ladrão, não serve pra outro.  Ladrão é gente.  Cada ladrão é um indivíduo, com uma história única e imprevisível, irredutível às estatísticas. A gente pode sair moendo números até concluir que 17,8% roubam porque fumam crack, 22, 1% porque estão desempregados, 7,4% porque são psicopatas... Mas na hora de encarar um indivíduo armado e ansioso, essa tabela serve pra quê? 

Pixinguinha foi assaltado uma vez, puxou conversa e acabou levando os ladrões pra beber num boteco. Sorte dele, porque se fosse o ladrão anterior ou o próximo ele podia ter acabado ali mesmo na calçada, coberto pela foto de um gol. Ladrão travado de crack mata sem saber que está matando. Psicopata mata e larga o dinheiro na calçada, pois não dá valor a dinheiro. Pai-de-família num momento de desespero acaba matando porque ficou com medo da reação da vítima.  Cada ladrão tem uma história; mesmo cruzando o eixo cartesiano de razões marxistas e freudianas, cada ladrão é tão gente quanto a gente, é tão único e imprevisível quanto a pessoa que está assaltando. Claro que nenhum cidadão-de-bem é obrigado a aceitar esta tese.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

3476) Roubado não é bom (18.4.2014)




Continuam se fazendo sentir, Brasil afora, os abalos sísmicos provocados pela decisão do Campeonato Carioca de domingo, quando o Vasco vencia por 1x0 (resultado que lhe dava o título) e o Flamengo empatou no último instante, tornando-se campeão com um gol que, minutos depois, todo mundo viu que foi feito em impedimento. Dizem (eu procurei, mas não achei as imagens) que nas comemorações pós-jogo o goleiro Felipe, do Fla, teria dito: “Roubado é mais gostoso”. Ou seja, ganhar praticando uma injustiça é mais divertido, certamente porque eleva ao quadrado o desespero e a revolta dos adversários. Esse traço de muitos torcedores de futebol (não só aqui; creio que é assim no mundo todo) revela o que o esporte significa para eles. Significa a chance de tripudiar sobre um adversário, de exercer a “hubris”, a arrogância dos vencedores, para quem não basta derrubar o outro no chão, precisar pisar na cara, também.

Eu não acho uma vitória assim mais gostosa. Gostosa é quando o adversário faz um gol em impedimento, e depois a gente vai lá, faz um gol legal e ganha o jogo. Aí sim, é bom de esfregar a vitória na cara do outro. O gol roubado é um privilégio, e eu torço pelos desprivilegiados (inclusive para expurgar meus privilégios de sexo, de classe e de cor; quem foi que disse que agnóstico não crê em pecado original?). Vitória gostosa é virar para 3x2 um jogo que estava 0x2. É ficar com um a menos e derrotar o outro time. É ganhar na casa do adversário.  É precisar de um golzinho durante o jogo inteiro e fazê-lo nos acréscimos.  Ou seja: a vitória é mais gostosa (para mim, e acho que para alguns outros torcedores) quando o privilégio ou a vantagem estão todos do lado oposto, e mesmo assim a gente vai lá e passa por cima.

Nelson Rodrigues (ou seria Mário Filho?) tinha um personagem para quem a vitória só valia se o gol fosse de mão. Há pouco, um saite publicou uma matéria apontando 12 erros de arbitragem em favor do Brasil em Copas do Mundo (acertou em todos). Parece que existe em nós aquele complexo do sujeito que, mil vezes roubado, precisa roubar também para convencer a si mesmo de que não é um imbecil, não é um banana. Roubando, podemos enfim curtir aquele momento breve de esperteza que leva tantos otários mais cedo para o buraco.  

O futebol é um reflexo da nossa sociedade, onde (para alguns) só existe ascensão social através do privilégio.  O gol impedido dá ao torcedor a ilusão (porque se não for ilusão, é o quê?) de que daquela vez o grupo de que ele faz parte estava do lado dos poderosos, dos privilegiados, dos que podem fazer qualquer coisa porque acima deles não há ninguém para puni-los.



3477) Escrever no Brasil (19.4.2014)




Numa discussão sobre ficção científica brasileira, com dois ou três amigos, me queixei do pouco que o Brasil é retratado em histórias de FC nacionais. Todo mundo ambienta suas histórias em outro país ou outro planeta, e histórias ambientadas no Brasil são proporcionalmente poucas. Por que?  Alguém questionou: “Peraí, que dirigismo é esse? Então o escritor é um funcionário, tem que obedecer um Plano Quinquenal de Romances Futuristas?  O autor não é livre pra criar? Tem que produzir dentro de uma fórmula fornecida pelos críticos, ou pelo governo?” 

A crítica é procedente, e concordei. Cada sujeito, quando se senta para escrever, é livre para ambientar suas histórias onde bem quiser. Dei como exemplo eu mesmo: nos 19 contos de meus dois livros de FC, há dois que só poderiam ser ambientados (como são) no Rio de Janeiro. São dois contos sobre um Rio do futuro (“Príncipe das Sombras” e “Jogo Rápido”). O resto, ou é em outros planetas, ou numa cidade que poderia ser qualquer uma. (Há um conto, “Oh Lord, won’t you buy me”, ambientado em São Paulo, mas sua primeira versão, que escrevi nos EUA, era ambientada em Chicago, e o conto era exatamente o mesmo.)

O que acontece é que o questionamento sobre ambientação não deve ser feito aos indivíduos, e sim à uma geração inteira dos autores, depois dos livros escritos.  Cada um de nós, autores, é livre para ambientar suas histórias onde quiser, mas nós, críticos, temos o direito de estranhar se somente uma fatiazinha desses livros brasileiros diz respeito ao Brasil. Não se pode cobrar nada de cada escritor (cada um é livre, repito) mas se o país está conspicuamente ausente dessa produção literária isto é um sintoma cultural que não pode ser ignorado.  O crítico tem a obrigação moral e intelectual de perguntar por que é assim.

Um fato assim indica um viés, uma preferência. É mais fácil escrever sobre Marte do que sobre o Brasil?  Para mim, pelo menos é.  Se eu pudesse ambientar todas as minhas histórias em Londres na década de 1890, ô beleza, eu escreveria um conto por semana, porque não existe ambiente literário mais cômodo (pra mim) do que esse.  Doses cavalares de Conan Doyle, Stevenson, Chesterton, James, etc. me deixaram à vontade para passear literariamente por essa cidade (que nem conheço, aliás).  Ambientar no Brasil me leva a uma contaminação de realidade que, pra quem dá importância à verossimilhança externa do que escreve, chega a ser paralisante. É como pedir a um chargista para pintar a Capela Sistina.  O Brasil, como cenário minimamente verossímil, parece estar além da capacidade de muitos autores, inclusive eu mesmo.

(Por distração, este artigo, que é do "Jornal da Paraíba" do sábado 19 de abril, foi postado aqui neste blog no dia 18, sexta. A postagem correta referente à a sexta 18 é "3476) Roubado não é bom".)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

3475) Bilac e o Brasil (17.4.2014)



O Brasil se vê como uma cultura periférica em relação à Europa e EUA, assim como o Nordeste em relação ao Rio e São Paulo.  Existe o fervilhar endêmico de sentimentos nativistas, separatistas, rebeldes, etc., mas o fato deles terem alvo certo comprova a existência do fenômeno.  Isso é errado?  É feio?  É não, rapaz, é a vida.  Na cidade-de-esmeralda distante tudo parece maior, melhor, mais bonito e mais bem feito do que na cidade-de-taipa que nos rodeia. Ouvimos as músicas dela, lemos os livros, sonhamos em conhecê-la. Uns vão tentar a vida lá, alguns dão com os burros nágua, outros descobrem que o tesouro estava enterrado no pé do sicômoro onde cochilavam...  É a vida.

No ensaio O alexandrino Olavo Bilac (1965) Virginius da Gama e Melo passa um pente fino na obra do poeta da Via Láctea. Virginius (para quem não conhece, um dos grandes intelectuais boêmios que a Paraíba produziu), faz um passeio amplo pela métrica, rima e temática bilaqueana, e a certa altura toca num ponto interessante. Cadê o Brasil na obra de Bilac?

Parece uma pergunta ociosa. Por que diabos um poeta brasileiro é obrigado a escrever sobre o Brasil? A pergunta procede, contudo. Bilac defensor do serviço militar obrigatório, fez letra de hino, fez poema ufanista (“Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste! / Criança, não verás país nenhum como este!”). Mas... Diz Virginius: “Basta a verificação dos seus temas principais, temas obtidos ora da mitologia e da história greco-romana, ora do cristianismo primitivo e medievo, além duma evidente inspiração francesa. Há numa visão panorâmica quase o levantamento total dos grandes episódios criadores e informadores dessa cultura latina (...)”.

Folhear os livros de Bilac é passear em Cartago, em Atenas, em Roma; é esbarrar em Xenócrates, em Frinéia, em Cleópatra.  Um épico como “O Caçador de Esmeraldas”, sobre Fernão Dias Paes Leme, é exceção, e mal se distingue do épico dedicado à Escola de Sagres (“Sagres”, que Ariano Suassuna, num ensaio notável, sugere ter influenciado o Mensagem de Fernando Pessoa, publicado pouco depois).  A inspiração de Bilac, diz Virginius, não lhe vinha da vida e sim da literatura: “Era ele, entretanto, pessoalmente, um patriota sincero, e muita fé no nacionalismo fez. Acontecia apenas que, de certo modo, passara sua sensibilidade a existir apenas literariamente. (...) O descritivo estereotipado de Bilac, as paisagens referidas nos seus elementos universal e historicamente comprovados, situam o poeta, nesse campo, numa categoria puramente intelectual, onde as imagens são produto do eruditismo, e não da sensibilidade”.