sábado, 12 de abril de 2014

3471) "Sérgio Samba Sampaio" (12.4.2014)


Para os muitos jovens ele é um nome desconhecido, porque suas músicas não tocam mais nas rádios FM nem na TV.  Estão na Internet?  Sim, estão, mas achar algo por acaso na Internet é o mesmo que achar uma agulha de vitrola num palheiro de irrelevâncias.  Para os mais ligados em música brasileira, ele é o autor da uma das marchas-rancho-pop mais cantadas dos anos 1970, “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”. Para quem prestou mais atenção na sua obra, principalmente no seu inquietante primeiro álbum (que teve esse mesmo título), Sérgio Sampaio (1947-1994) foi um desses cantores-compositores surgidos na época da ditadura, cheio de talento imprevisível, de uma simplicidade poética que o colocava meio próximo de Luiz Melodia e Odair José, de uma pegada roqueira que o levava para a praia de Raul Seixas (de quem foi parceiro no projeto “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista”), de uma nunca apaziguada angústia existencial que o fazia ainda tão jovem ter algo do torvelinho dark e inescapável de Torquato Neto ou Nelson Cavaquinho.

Deve ser difícil encontrar os álbuns de Sampaio, mas sua audição pode ser complementada pela leitura de um precioso livrinho de análise do primeiro deles, de Paulo Henriques Britto: Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua (Ed. Língua Geral, 2009).  Mas o que muitos não sabem é que ele também era compositor de sambas saborosos e sincopados, pontuados por breques e refrões daqueles que grudam no ouvido.

Coube a um paraibano recuperar os sambas desse capixaba. Chico Salles, natural de Sousa e radicado no Rio há mais de 40 anos, é forrozeiro, sambista e cordelista de primeira água, e nas horas vagas de seu trabalho autoral fez o álbum Sérgio Samba Sampaio, produzido por Henrique Cazes e José Milton, com participações especiais de Zeca Pagodinho, Raimundo Fagner e Zeca Baleiro (este último, aliás, autor de outra compilação póstuma do poeta, Cruel, 2005). 

Nesse disco precioso encontrei tesouros que nem lembrava que sabia de cor, como “Cala a boca, Zé Bedeu” (“Mas que mulher danada / essa que eu arranjei / ela é uma jararaca / com ela eu me casei...”), composto pelo pai do artista. Tem o partido alto de “O que pintar pintou”, tem o criativo jogo de palavras de “Polícia, Bandido, Cachorro, Dentista”, o samba-canção de separação “Nem assim”...  Sérgio Sampaio era a cara dos anos 1970, meio Novos Baianos em sua mistura de rock e samba, mas sempre com um travo de angústia que era só seu, umas melodias com ziguezagues inesperados, um apreço pelas rimas toantes.  Sua obra inteira ainda merece um estudo mais profundo, proporcional à emoção que ele ainda desperta em quem o viu surgir e depois desaparecer.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

3470) "True Detective" (11.4.2014)




(Marty Hart e Rust Cohle)

A série True Detective, encerrada recentemente na TV a cabo, conta a investigação de crimes seriais na Louisiana, envolvendo elementos ritualísticos e satânicos. Os protagonistas são dois detetives, Marty Hart, um pai de família convencional, que convencionalmente trai a mulher a-dar-com-o-pau, e Rust Cohle, um semi-junkie niilista com fascinação por crimes rituais.  A história total abrange 17 anos da vida dos personagens e pode ser resumida assim: Hart e Cohle investigam os crimes, descobrem o criminoso, mas não se contentam e querem investigar mais, pois suspeitam de uma rede muito maior de fanáticos que sacrificam crianças e mulheres. A rivalidade mútua os leva a brigar, e Cohle larga a polícia. Muitos anos depois, crimes parecidos são descobertos, e dois novos policiais interrogam Hart e Cohle (os dois já enormemente mudados) para saber os detalhes da história, e solucionar a dúvida principal: se o criminoso foi apanhado anos atrás, como se explica que crimes idênticos tenham voltado a acontecer?

Hart (Woody Harrelson) é um daqueles policiais-modelo de um milhão de filmes, caras durões, sem frescura, sem teorias, interpretados por Richard Widmark ou Kirk Douglas. Rust Cohle (Matthew McConaughey) é de outra natureza. Um sujeito calejado, atormentado, que diz ter perdido a filhinha pequena anos atrás (não dá detalhes), e por isso torna-se obcecado por matadores de crianças (um pouco como o Fox Mulder de Arquivo X, que julga ter tido a irmã abduzida por alienígenas). O duplo arco narrativo (passado e presente) converge para uma situação em que dois ou três desfechos são plausíveis. Um deles acontece. Gente reclamou que era previsível. Eu achei que ia dar outro; mas acabei preferindo que terminasse como terminou. O final que eu imaginei seria cruel demais.

Louisiana é um estado anômalo nos EUA, com influência francesa, caribenha, negra, tudo misturado. É a pátria dos vampiros e bruxas de Anne Rice, e locação de muitas histórias de vudu e feitiçaria. Curiosamente, há poucos negros em True Detective.  O satanismo que campeia naquelas quebradas escondidas no mato é um satanismo do “white trash”, o lixo-humano branco, geneticamente deformado por séculos de semi-incesto dos miseráveis, misturado à mentalidade sádica e torturadora dos lordes escravagistas.  E instituído por uma organização que envolve xerifes, políticos, pastores evangélicos; é “o lado tenebroso da Força”, o retrato-de-dorian-gray onde se acumulam todos os crimes e pecados de uma América que se exibe ao mundo limpa, imaculada, conservadora e cristã.  Quem sabe o mal que se oculta no coração dos homens?  Rust Cohle sabe.


quinta-feira, 10 de abril de 2014

3469) A Vida e os Tempos de Ribebê Trancaz (10.4.2014)



Cap. 1 – De como Ribebê Trancaz desembarcou certa tarde em Brasília de um voo da Avianca, vestindo um terno da “Taylor and Stewart” e trazendo consigo três smartphones e uma pasta de documentos com dois cadeados. 

Cap. 2 – De como ele foi direto para o restaurante Piantella, onde sentou vizinho à mesa onde almoçavam dois ministros e logo-logo lhes vendeu a idéia de uma base espacial secreta a ser construída em algum lugar entre o Bico do Papagaio e Brasília, e o pitch foi tão bem sucedido que durante o petit gâteau já manipulavam a alta do cimento. 

Cap. 3 – De como Ribebê decolou novamente, e, sentado por acaso junto a um neurocirurgião, maravilhou-se com essa coincidência que o obrigou a confidenciar um segredo cuidadosamente guardado, o de que um laboratório da Noruega acabava de produzir um coagulante específico para a rede vascular cerebral, e diante da esteira de bagagens trocaram cartões de visita e apertos de mão efusivos.

Cap. 4 – De como ele desembarcou na Cidade do México e foi direto reunir-se com o Núncio Apostólico, a quem apresentou um documento de cardeais brasileiros pronunciando-se sobre uma tecnicalidade metafísica qualquer, e apesar da resistência inicial do Núncio saiu de lá com sua assinatura no documento e um convite para visitar sua casa de veraneio em Acapulco.  

Cap. 5 – De como Ribebê desceu no Recife e havia à sua espera um carro que o levou ao estúdio do artista ghoul420: aquários com leishmaniose, pregos enferrujados, copo de cólera, sêmen congelado com HIV; “o direito a escolher a morte”, disse o artista, e Ribebê assinou o patrocínio da expô inteira a percorrer Genebra, Paris e Milão.  

Cap. 6 – De como Ribebê Trancaz tirou três dias de folga e relax na Tailândia (“seeeei...”).  

Cap. 7 – De como Ribebê voltou à carga em Toulouse (França), usando uma megacorp aeroespeacial como mula para produzir um sistema de malotes transgeográficos entre a Provença medieval e o Nordeste mais medieval ainda.

Cap. 8 – De como, numa reunião urgente em Zurique, Ribebê foi acusado de malversação de fundos durante um pau-na-mesa da diretoria, mas defendeu o bastião com bravura, conseguindo um voto de confiança dos acionistas e a instauração de duas comissões de inquérito contra os que o acusavam.  

Cap. 9 -  De como ele desceu em Brasília num jatinho japonês fretado, convocou uma entrevista coletiva, e no meio da discussão foi finalmente identificado, localizado e preso pelos encarregados do Pinel, de onde fugira um mês antes numa madrugada de temporal, após nocautear o psiquiatra-residente sueco e furtar-lhe um terno, três smartphones e uma pasta de documentos com dois cadeados.


quarta-feira, 9 de abril de 2014

3468) Hiper-Mistério (9.4.2014)



Suponhamos um romance policial em formato eletrônico. O livro total tem (digamos) 70 capítulos.  O leitor, ao "entrar no livro", clica e vê o começo de um capítulo, com título, sem número.  Ele lê.  No fim da página, um link, escrito: “Próximo”. Ele clica (ou encosta o dedo, ou pisca o olho, sei lá como vai estar isso daqui a uns anos). O clique nesse link escolhe (aleatoriamente) o capítulo seguinte. Cada capítulo acessado pelo leitor vai sendo arquivado, de modo que ele possa a qualquer momento rever a lista dos capítulos que lá leu. E reler, se quiser. (Depois de lidos, ficam como que grudados uns aos outros: é impossível voltar atrás e modificar o passado).

Acontece que a história básica, a trama central da história, é contada em 15 capítulos, que (sem que o leitor saiba) estão numerados em sequência. Nestes capítulos de “1” a “15”, estará a história a ser contada.  Eles estão linkados entre si de tal forma que o 2 só pode ser acessado depois que o 1 foi lido; o 3 depende igualmente do 2, e assim até o final.

Os 55 capítulos restantes serão "capítulos prescindíveis", como os de “Rayuela” de Cortázar.  Todos terão alguma informação extra, de caracterização, ambientação, revelando detalhes dos personagens, etc., sem mexer no enredo em si.  O processo de salto para o próximo capítulo tem embutido um “lance de dados” para que cada leitor, depois de ler o cap. 1, possa ler outros aleatórios antes de ler o 2.  Todos lerão os capítulos de 1 a 15 nessa ordem – mas entremeados com capítulos intermediários, sorteados pelo processador.

Após a leitura do 1, que será o mesmo para todos os leitores, poderá ser sorteado qualquer um, menos os de 3 a 15 (da história básica, que só poderão ser lidos depois de ser lido o 2). Digamos que saia o 44.  No clique seguinte, voltam a ser possíveis todos, menos o 1, o 44 e os de 3 a 15.  No terceiro clique, sai o 18.  No próximo, portanto, serão possíveis todos os números, menos 1, 44, 18 (já lidos) e os de 3 a 15.  Portanto, esse leitor lerá o livro assim, p. ex.: 1 – 44 – 18 – 29 – 2 – 45 – 16 – 3... Outro lerá talvez: 1 – 23 – 65 – 43 – 2 – 38 – 3 – 57 – 19 – 4...  E assim por diante.

Se os capítulos “do enredo”, de 1 a 15, demorarem a sair nos primeiros cliques, irão se acumulando para o final; ao surgirem bem próximos um do outro darão a sensação de que a narrativa se acelera. Se, ao contrário, forem sorteados com frequência na fase inicial da leitura, parecerá que a história começou acelerada e a partir de um certo ponto o "autor" começou a divagar.  Seria legal imaginar que tipos de história poderiam render melhor, submetidos a uma estrutura assim.


terça-feira, 8 de abril de 2014

3467) José Wilker (8.4.2014)



(a última foto dele)

Minha primeira imagem de José Wilker é ainda uma das mais fortes: o Tiradentes que ele (então um ator jovem e desconhecido) interpretou no filme Os Inconfidentes de Joaquim Pedro, em 1971.  Um Tiradentes sem barba, intenso, vibrante. O filme é um dos melhores filmes políticos daqueles anos difíceis, e isto ajudou a marcar na memória a presença do ator.  Depois vieram papéis clássicos, de grande sucesso, em O Homem da Capa Preta (um Tenório Cavalcanti rude, irascível, imprevisível) , Dona Flor e seus dois maridos (Vadinho das candongas, o malandro arquetípico, e nu ainda por cima), além das novelas que o consagraram, como Roque Santeiro, que juntamente com Vadinho deve ser seu personagem mais famoso, o que mais ficou na memória do público. Acho que meu preferido é o Lorde Cigano do Bye bye Brasil de Cacá Diegues: sardônico, espertalhão, naïf, mambembe, imperturbável, é um dos grandes personagens picarescos do nosso cinema.

Wilker era um ator cerebral, uma explosão contida em cada segundo de gestos precisos, voz cortante, esgares impagáveis.  O excesso de exposição na TV o fez, a partir de certa altura da carreira, recorrer ao piloto automático que acabou sendo a salvação-da-lavoura de tantos atores talentosos de sua geração. Não é fácil um ator de verdade, com densa formação teatral, trocar frases com rapazes e moças cujo talento mal dá para um comercial enaltecendo a fórmula de um dentifrício. A TV brasileira é um pouco como o filme de FC norte-americano, um recorde de desperdício de dinheiro e de talento por minuto gravado. Wilker fez personagens caricatos, com falas constrangedoras, mas ele gravava como quem não está nem aí.  Devia considerar o salário uma espécie de indenização por mau uso do seu tempo de vida, e às vezes parecia que estava fazendo um pastiche de John Malkovich para ganhar uma aposta contra meia dúzia de amigos. Por sorte, seu último papel marcante, em Gabriela (2012) trouxe de volta algo do sarcasmo e do ar sobranceiro que ele dominava tão bem.

Alguns atores dão a impressão, até pela idade avançada em morrem, de que encerraram suas carreiras de maneira feliz e honrosa.  Outros, mesmo com tudo que já fizeram, sempre nos dão a impressão de que o grande papel da sua vida pode muito bem surgir (como já surgiu para tantos) quando todo mundo já os encaminhava para o guichê da aposentadoria. Wilker, aos 66, morreu naquela idade em que poderia estar iniciando um terceiro estágio de sua vida útil; aquele, como já disse um ator, “em que a gente está cansado de fazer Hamlet e começa a considerar a possibilidade de fazer o Rei Lear”.


domingo, 6 de abril de 2014

3466) Shakespeare e a ciência (6.4.2014)



Este ano estão sendo comemorados os 450 anos de nascimento de William Shakespeare (1564-1616) e é claro que pipocam artigos sobre ele o tempo inteiro.  

Achei no saite do The Telegraph (aqui: https://tinyurl.com/yxvgspmu), um texto intitulado “Shakespeare, o Rei do Espaço Infinito”, em que Dan Falk examina os conhecimentos astronômicos do Bardo e sugere que eram muito avançados para sua época, que ainda defendia a visão ptolemaica (a Terra como centro do universo). O poeta de Avon foi contemporâneo de Copérnico (cujo livro De Revolutionibus é de 1543) e de sua teoria do Sol como centro do sistema solar, e há muitos doutorandos ingleses passando pente-fino nas peças em busca de referências.

Falk menciona que o primeiro relato detalhado de um inglês sobre a teoria de Copérnico foi de Thomas Digges (c.1546-1595), que morava a algumas centenas de metros do dramaturgo. Seu filho Leonard Digges era admirador dele, e contribuiu com um texto para o famoso First Folio, a primeira edição das peças shakespearianas. 

Falk lembra que Shakespeare era contemporâneo de Giordano Bruno, John Dee, Francis Bacon, Montaigne e outros homens de ciência cuja obra ele bem podia conhecer, mesmo indiretamente.

Ele observa que Shakespeare tinha oito anos quando explodiu a Supernova de Cassiopéia, de 1572, e que talvez fosse essa a estrela brilhando “a oeste do polo” nas palavras da Hamlet. Em todo caso, essa supernova foi observada por Tycho Brahe, o maior astrônomo da época, na Dinamarca (a supernova ainda hoje é chamada “estrela de Tycho”). 

Brahe morava pertinho do castelo  de Elsinor (local da história de Hamlet). O astrônomo norte-americano Peter Usher vê em Hamlet uma alegoria entre as duas visões cosmológicas do universo, com a vitória final da teoria copernicana.  E observa que dois parentes próximos de Tycho Brahe chamavam-se “Rosencrans” e “Guildensteren”, dois personagens cruciais no desfecho da peça.

Clássico é um autor que disse tanta coisa que parece ter dito dez vezes mais.  Sempre há pessoas dissecando seus textos em busca de idéias marxistas ou ecológicas, em busca de segredos sexuais ou profecias apocalípticas. Em Hamlet o príncipe diz que poderia se imaginar “o rei do espaço infinito”, e isso dá uma lente moderna ao olhar que ele ergue para as estrelas. 

O Bardo dá um passo adiante de Camões, que em Os Lusíadas (1572) já havia descrito com olhos mistos de poeta, crente e cientista a “máquina do mundo”, ainda geocêntrica, um sistema de estrelas que, como a cultura Renascentista que o produziu, era um edifício religioso que foi implodido aos poucos pelo edifício científico que cresceu dentro dele.

sábado, 5 de abril de 2014

3465) O tamanho do livro (5.4.2014)



No dia 1º. de abril, entre outras brincadeiras na imprensa, disseram que um grupo de editoras portuguesas, incluindo o grupo LeYa, tinha estabelecido o número máximo de 200 páginas para qualquer livro apresentado por seus autores. A brincadeira tinha uma certa aparência de verdade. Logo ergueu-se o clamor nas redes sociais. “Ditadura!”, bradaram alguns. “Pressão corporativa sobre a criatividade individual!”, disseram outros. E por aí foi.

Pois olhe... fazendo as devidas ressalvas, principalmente a questão da obrigatoriedade (sou contra obrigatoriedades e proibições) eu acho que não seria uma má idéia.  Dificilmente vejo um livro de 400 páginas que não pudesse, com proveito, ser reduzido para 200.  Quando se trata de livro de estreante, então...  Escrever é fácil, ao contrário do que muita gente pensa. A maioria das pessoas não tem facilidade para escrever, mas as que de fato a têm costumam abusar dela. Escrever, pra certos tipos de temperamento, é fácil. Difícil é reler, revisar, cortar excessos.  A maioria dos livros de autores estreantes não peca por dizer pouco, peca por dizer alongadamente, repetidamente, redundantemente, o que poderia ter sido dito de maneira mais compacta e proveitosa (e mais literariamente eficaz) em metade daquela extensão.

O autor estreante parece um pouco com aquelas pessoas que narram qualquer fato com verdadeiras orgias de detalhes. Nossa amiga chega meia hora atrasada para o chope com a turma. O que aconteceu? “Precisei dar uma carona a minha prima e fiquei presa num engarrafamento, pois houve uma batida na esquina do prédio onde ela mora.”  Pronto – já está tudo explicado em duas linhas. Mas tem gente que narra assim: “Olha, eu vinha direto pra cá, mas aí minha prima me pediu uma carona, sabe aquela minha prima, Mércia, uma baixinha que trabalha no Banco? Ela tinha ido lá em casa falar com minha mãe sobre umas poltronas que ela herdou e que mamãe pediu para comprar, então ela foi lá em casa hoje e acabou ficando pra jantar, até porque ela mora sozinha e adora a sopa que mamãe faz. Mas quando eu peguei na chave do carro pra sair ela me disse: Ah, você está indo onde? E eu falei: Tou indo ali no boteco, encontrar uma turma de amigos. E ela: Dava pra você me dar uma carona até em casa? E eu: Tudo bem. Aí ela e mamãe foram terminar os cálculos de quanto custariam as poltronas, porque é um modelo antigo que é difícil de encontrar...”

Sosseguem; fico por aqui. Notem que as duas ainda nem entraram no carro, mas um parágrafo substancial de texto já foi consumido com uma explicação totalmente desnecessária. Tem gente que é assim.  Livros de 400 páginas são escritos assim.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

3464) Chandler e a gíria (4.4.2014)



Gíria é linguagem espontânea, palavras e formas de dizer inventadas por gente de verdade, e não pelo dicionário.  Muita gente pensa que as palavras são inventadas por uma equipe de velhinhos de barba branca e sobrecasaca preta, e que usar palavras que não estão no dicionário é como passar dinheiro falso.  Não é.  As palavras novas são inventadas geralmente por pessoas que nunca abriram um dicionário, mas que têm uma certa agilidade verbal, percepção intuitiva de como o idioma se comporta, e na hora do aperto são capazes de dar nomes a bois nunca dantes batizados.

Existe uma nuance técnica de diferença entre palavra inventada e gíria; não sei explicar, se alguém puder explicar para mim eu agradeço. Imagino que a gíria seja uma palavra inventada por uma pessoa mas que pega, se alastra, passa a ser usada por dezenas, centenas, milhares de pessoas. Vira um “fato social”. Uma das características da gíria é ser um tipo de linguagem que surge fortemente localizada no tempo e no espaço. Algumas gírias vigoram numa cidade durante anos sem serem absorvidas, sequer conhecidas, nas cidades vizinhas. Algumas formas de falar tidas como nordestinas são (aos meus olhos) meramente do Ceará, ou do Rio Grande do Norte. Nunca as vi usadas na Paraíba.

Alguns escritores são grandes recolhedores de gírias, desde João Antonio e Plínio Marcos até outros mais recentes como Ferrez. Mergulham numa comunidade que pode ser geográfica (um bairro) ou social (o universo dos cafetões, ou dos jogadores de sinuca, etc.) e registram suas formas de falar. Surge daí uma questão interessante: o uso dessas gírias numa obra literária pode ou não lhes dar uma certa permanência que talvez não tivessem sem isso. (As gírias morrem com a mesma facilidade com que nascem.)

Raymond Chandler, que conhecia bem as gírias dos policiais e bandidos que descrevia em seus romances, tem uma opinião interessante a respeito. Dizia ele, em 1949: “O uso literário da gíria constitui um estudo à parte. Descobri que existem apenas dois tipos que se salvam: termos de gíria que já estão incorporados à linguagem, e termos que o próprio escritor inventa. Tudo o mais corre o risco de estar ultrapassado antes mesmo do livro ir para a gráfica”.

Esta é uma questão importante para escritores e tradutores. Livros de vinte anos atrás nos provocam um choque de desconforto quando usam gírias que tiveram uma voga intensa e breve e depois foram descartadas. São como roupas, como penteados, como outras coisas sujeitas ao terrível conceito de “moda”. O que têm de exuberantes, atraentes e inovadoras hoje, têm de ridículas e ultrapassadas amanhã.


quinta-feira, 3 de abril de 2014

3463) Outra entrevista (3.4.2014)




PERGUNTA) Oi Braulio, é um prazer estar neste chat em tempo real. Como foi que você descobriu o cordel? Aarão. 
RESPOSTA) Fala Aarão, tu deve ter um trauma de levar falta na hora da chamada, hem? Bem, eu via aquela fila de folhetos suspensos horizontalmente no ar e alguma coisa me dizia: tem mutrêta! tem mutrêta!  Aí descobri o cordel. 

PERGUNTA) Oi BT, valeu estar aqui, sou seu fã. Por que você enche tanto a bola desse tal de Borges? Hnbem14.  
RESPOSTA) Olha, Hnbem14, eu acho que Borges é um dos maiores xilogravadores que o Nordeste já teve, e que ainda tem, porque se você cruzar a cidade de Bezerros rumo ao sertão vai ver do lado esquerdo da rodovia o ateliê dele; dê uma parada e olhe, que é uma beleza.

PERGUNTA) Senhor Braulio, por que motivo o paraibano é tão discriminado no Sul Maravilha? dezessete700.  
RESPOSTA) Olha, 17, se você aceitar se diminuir por causa de um rótulo qualquer você nunca vai ser maior do que esse rótulo. Minha ordem do dia é mostrar ao mundo que os paraibanos são mais produtivos, mais inteligentes, mais criativos e mais gente boa do que todos os outros povos; claro que não vou conseguir nunca, mas o que conta é o resíduo.  

PERGUNTA) Como é possível que você goste do cinema de um verme catatônico chamado Jean-Luc Godard? ladyL.  
RESPOSTA) Minha querida ladyL, caso seja isso mesmo: o cinema de Godard é um extremo, é para ser usado só em casos extremos, como a primeira e a última tecla do piano; é um marco miliário, é um parâmetro, é um farol; se você ultrapassar aquele ponto, saiba que já não é mais o teclado, não é mais o cinema.

PERGUNTA) Oi Trupizupe, beleza, quanta coisa meu velho, sensacional ver isso, a Internet, o mundo, a juventude, cacete, tudo bom demais, e você aqui, arrasando. Valeu! Aqualung71. 
RESPOSTA) Eita, tás aqui também?  Beleza digo eu, você não sabe metade do montante. Grande abraço e te cuida.  

PERGUNTA) Meu caro Braulio, pode-se servir a dois senhores, o rock-and-roll e o cordel? Unhadegato. 
RESPOSTA) O artista serve apenas a uma senhora, a Poesia; e esse grupos a servem também, cada qual em seu templo, que um do outro não distam mais que alguns passos. 

PERGUNTA) Boa noite. O senhor acha que o senhor representa bem a Paraíba, longe da Paraíba? Brejeira10. 
RESPOSTA) Olhe, Brejeira10, eu acho que represento bem todo mundo, qualquer que seja o filtro de escolha: os paraibanos, os poetas, os nascidos em ano terminado com zero, os branquelos destros, os virginianos, os tigres chineses, o escambau. Minha obrigação moral é não envergonhar nenhum desses grupos, sempre levando em conta que uns são bem cheios de si, e outros nem percebem que existem.




quarta-feira, 2 de abril de 2014

3462) "Pacto de Sangue" (2.4.2014)



Para alguns historiadores do cinema, este é o filme que começou (ou pelo menos cristalizou numa forma nítida, pois antecessores havia muitos) o filme policial “noir”, que (como tantas outras coisas da cultura pop) os norte-americanos inventaram e os franceses descobriram. Double Indemnity (1944), baseado num excelente romance de James M. Cain, foi dirigido por Billy Wilder, e roteirizado por Wilder e Raymond Chandler. Foi um período em que o chamado Código Hays imperava em Hollywood, passando um pente-fino moralista nos roteiros e nos filmes prontos. Contando uma história sórdida de adultério, traição, ganância e assassinato, o filme conseguiu driblar a censura e mostrar um lado da América que a América, em plena guerra, saturada de propaganda democrática e triunfalista, não fazia questão de revelar.

Este filme talvez seja a mais bem sucedida das contribuições de Chandler para o cinema (ele viria a negar com veemência que tivesse restado algo seu em, por exemplo, Pacto Sinistro de Hitchcock, embora seu nome apareça nos créditos).  O filme tem pequenos detalhes seus, como por exemplo a tornozeleira (“anklet”) de ouro usada pela personagem de Barbara Stanwyck; um detalhe presente no romance A Dama do Lago e ausente no livro em que o filme se baseou. Pacto de Sangue tem também a única imagem preservada de Chandler: ele faz uma aparição hitchcockiana numa cena em que o protagonista, interpretado por Fred MacMurray, caminha por um corredor.

No mais, o filme é uma antologia de efeitos fotográficos magistrais: contrastes de claro/escuro, composições em linhas paralelas, superposição de tons de cinza, ângulos expressivos, presença subliminar de sombras e de reflexos. O “noir” norte-americano deve muito ao expressionismo alemão que fez parte da formação do diretor Wilder, um estilo que ele retomaria depois em Crepúsculo dos Deuses e outros filmes. O mundo desses filmes é uma espécie de caverna repleta de reflexos, imagens duplas ou distorcidas, linhas que se entrecruzam como flechas num campo de batalha, corpos aparentemente sólidos que se desfazem ao saírem do cone de luz de uma lâmpada...  O filme noir é um filme realista na superfície (nada acontece ali de fantástico, nada de impossível pelas leis naturais) mas é um realismo totalmente subjetivo, soma do mundo exterior iluminado e nítido e do mundo mental dos personagens, que nele se projeta sobre a forma de “clima”; daí ser uma forma especial de expressionismo. Realistas são as cenas de escritório de Fred MacMurray com os colegas; expressionistas as cenas dele com a mulher fatal que o arrasta para o crime e a morte.