domingo, 19 de janeiro de 2014

3400) Tem livro que (19.1.2014)



Tem livro que eu tenho tanta vontade de ler que toda vez que eu vejo uma edição nova eu compro e boto na estante; aumenta as minhas chances de conseguir ler algum dia.  Tem livro que você compra no lançamento, pega o autógrafo do autor, mas quando começa a ler pensa que era melhor ter trazido para autografar um exemplar do livro que você mais gosta.  Tem livro que começa de um jeito mas a certa altura já virou uma história tão diferente que você imagina como pensaria no livro se tivesse desistido da leitura antes de presenciar daquela reviravolta.  Tem livro que você sabe que já leu: vê os riscos e as anotações feitos por sua própria mão, mas não recorda uma só daquelas frases que sublinhou. Tem livro que tem história legal, o projeto gráfico é legal, mas botaram o desafortunado do texto numa fonte que tanto tinha de elegante quanto de ilegível.

Tem livro “cult” que a gente espera trinta anos até ver um exemplar; compra, leva, e não lê, porque sem ter lido já sabe de cor.  Tem livro tão grosso que a gente começa a pensar: “Isso é um livro pra ler pelo resto da vida”, e o tamanho do volume nos dá uma ilusão de longevidade. Tem livro que cada vez que é relido pode ser cada vez mais subdividido em interpretações. Tem livro que você compra esbagaçado, retalhado, mutilado, e leva pra casa e cuida, você cuida daquele exemplar como cuidaria de um cachorro faminto e doente, se gostasse de cachorros.

Tem livro com ingredientes que a gente gosta, é de um autor que a gente aprecia, mas a gente nunca consegue passar da página dez. Tem livro que eu li pela primeira vez em edições defeituosas, com “cadernos” trocados, o que equivale a trocar os rolos de um filme de celulóide no cinema, e só li a história direito vinte anos depois.  Tem livro que é como uma música que a gente está ouvindo, livro que é como uma história que está acontecendo, que é como um jogo, um quebra-cabeças, tem livro que é como se fosse uma carta de uma pessoa desconhecida que conhece você bastante bem.

Tem livro famoso que você lê e não vê nada de mais, e tem livro que na página 3 você pensa, “está começando uma coisa que eu nunca vou esquecer”, e lê até o fim.  Tem livro besta que eu comprei e guardo só por causa da capa.  Tem livro que eu gosto tanto que planejei lê-lo em todas as línguas que consigo. Tem livro que não é importante, mas vive nas minhas prateleiras há décadas, sem ser consultado, talvez com a única função de ser aberto por acaso uma noite e revelar dentro de si um bilhete, um canhoto de ingresso, uma filipeta de show, um recorte de jornal, uma foto; como uma caixa enorme contendo um pequeno diamante.


sábado, 18 de janeiro de 2014

3399) Os Prisioneiros (18.1.2014)



(Ilustração: Mana Neyestani)

No começo do mês fui eleito o MC para os próximos trinta dias. O sorteio não me indicava há tempos, mas vida de agente penitenciário envolve não somente talento para Relações Públicas e Comunicação de Massas, requer também uma resignação filosófica diante do inevitável. Como estou sempre prevenido, joguei na mesa as idéias que tinha esboçado: um festival de música, a eleição para o refeitório (que vem sendo adiada desde o ano passado), um novo profeta messiânico (Neco Chumbinho, que venho preparando há meses com leituras e laboratórios), e, caso seja necessário um confronto de facções, decidi que o ideal seria um entrevero entre os NecroMobs e os Rasga, que andam meio enfarruscados um com o outro por causa de roubos de celulares.

Marcamos três eliminatórias e uma final para o festival de canções, e acertamos com as facções quem ganharia o quê.  No refeitório, sugerimos um rodízio entre as equipes candidatas, três dias de cardápio e execução para cada uma, com cédulas de avaliação distribuídas na saída e postas nas urnas. Neco Chumbinho foi liberado para percorrer as alas a qualquer horário, orando. Tudo isso deve dar uma sacudida no grupo, e dentro de dez dias o primeiro confronto armado estará maduro. No festival de canções teremos torcidas organizadas, faixas, enquetes; fóruns gastronômicos e nutricionistas na luta política pelo refeitório. Para meu orgulho, o Presídio há muito tempo não dava tantos sinais de vitalidade e espírito participativo.  Começamos a ver nos rostos a exaltação, o entusiasmo, o impulso de realizar coisas. “Você conseguiu chamá-los aos brios”, elogiou o Diretor, sempre cheio de retórica.

Não é fácil administrar um Presídio como este, com 1.200 detentos das mais variadas tendências. “Não pare e não pense”, é o meu lema, e todo o nosso esforço é para transformar isto aqui num redemoinho de atividade, de novidades, de coisas pelas quais vale a pena lutar, sorrir, chorar, vibrar, viver. Não há trancas nas portas, grades nas janelas; não há guaritas, muros ou portões. A partir da última calçada dos alojamentos estende-se um relvado aberto em todas as direções. A estrada fica a um quilômetro, a cidade a dez. Descobrimos depois de tantos anos que mais fácil do que impedi-los de fugir é impedi-los de desejar a fuga; de imaginar a necessidade de uma fuga.  Claro, dá um pouco mais de trabalho, mas eliminamos a necessidade de repressão, o desgaste eterno de vigiar e punir. Eles são felizes, e nós temos a tranquilidade do dever cumprido. O melhor cárcere é aquele de onde o prisioneiro não quer fugir, e para onde ele voltaria correndo, se fosse levado para longe.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

3398) "Mais um dia de vida - Angola 1975" (17.1.2014)



Pelas praças, ruas e avenidas da capital, principalmente as que convergem para o aeroporto ou para o cais, por entre as casas e edifícios de pedra, começa a surgir uma outra cidade de madeira, uma cidade de caixotes, de contêiners, de todo tipo de embalagem sólida onde os milhares de fugitivos possam embalar e amontoar seus televisores, seus sofás, candelabros, roupas de cama e mesa, porcelanas, flores artificiais. É uma cidade de madeira que brota em poucas semanas, e que vai fazer-se ao mar para sempre. Mais um dia de vida – Angola 1975 (Lisboa: Tinta da China, 2013, tradução de Ana Saldanha), de Ryszard Kapuscinski, é a reportagem dos últimos três meses da guerra civil em Angola, entre a evacuação catastrófica dos portugueses e dos angolanos brancos, e as batalhas finais entre os exércitos do MPLA, da FNLA e da UNITA, que lutavam pelo poder.

Kapuscinski, correspondente de guerra polonês, atuando em vários continentes, já foi acusado de falsear os fatos, mas não de escrever livros insípidos. Ele mostra a crueza da guerra com descrições cruas mas imperturbáveis, mesmo quando afirma que se perturbou quando aquilo aconteceu. Um repórter com estilo suficiente para transformar aquilo num thriller de campo de batalha e ao mesmo tempo no olho investigativo de um polonês sobre a sociedade, a mente e os valores dos angolanos, tanto brancos quanto negros.

Luanda é evacuada, as duas ofensivas convergem para a capital que o MPLA tenta manter sob seu domínio. FNLA ao norte e UNITA ao sul, com tropas sul-africanas, convergem para a capital, e Kapuscinski fica saltando pelo país de jipe, de avião, de comboio, tentando ver com os próprios olhos a situação no front Sul, e voltar a Luanda para transmiti-la por telex. E a cada passo a terrível gratuidade da morte, a morte aleatória, a morte por coincidência, a morte individual desnecessária a qualquer vitória coletiva.

Um cinema drive-in reexibe sem parar Emmanuelle, a única cópia que ficou em suas mãos. Sem água, sem luz, sem lixeiros nem bombeiros, a cidade arde e apodrece. Ele diz que “embora os dois mundos, o conforto e a pobreza, se encontrem a dois passos um do outro e ninguém esteja a guardar o bairro rico dos europeus, os negros das cubatas de adobe não tentaram mudar-se para lá. A idéia não lhes passou pela cabeça”. Depois, Kapuscinski, na estrada, pergunta a Diógenes, um líder, por que eles andavam em caminhões tão precários quando as cidades estavam cheias de veículos em bom estado, deixados pelos portugueses. O outro responde que esses veículos eram propriedade dos portugueses. Não poderiam tocá-los. E de fato não tocam. Guerreiam com o que têm.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

3397) "Click, Enter e Play" (16.1.2014)




“Minha primeira revista literária foi na Paraíba. Eram os anos 1950, mas chegavam muitos contos pelo correio. Criamos um concurso, prêmios, sorteios.  Por dois anos a revista se pagou, com venda e alguns anúncios. Um dia chegou um conto, 20 páginas bem datilografadas, papel meio caro, paramos tudo para examinar. Se fosse bom, ocuparia o espaço de dois contos padrão. Ficaríamos com um a mais em nossa reserva, que andava escassa.

“Li. Era meio americanizado demais. Rapaz entra na aeronáutica, vai para a guerra a contragosto, no final é morto por um desertor. Mas se passava no Brasil, era bem escrita, pedi a leitura ao saudoso Domiciano Eiras. Ele ligou no outro dia. Tinha gostado, achou as paisagens da ilha deserta o máximo, os piratas sensacionais, mas preferia que “no final ele e a imperatriz ficassem juntos”.  Eu tinha pressa, desliguei intrigado. Ilha?  Imperatriz?

“Misael Lemos foi o terceiro a ler, e disse que era uma história cavernosa e interplanetária, com monstros bizarros que em alguns momentos o tinham assustado de verdade. Perguntei sobre o título. Ele respondeu: “Parece uma indicação técnica, das peças do tempo de Shakeapeare. ‘Click’ é o sinal dado por um contrarregra, e depois o ator entra, e atua.” Era citado na história, que era toda ela uma espécie de encenação.

“Misael mandou o conto para o escritório de Formiga, editor-chefe. Falou que a gente tinha gostado, mas não sabia se tinha entendido direito.  Na noite seguinte, foi lá, e Formiga falou: “Ambientada no Sertão do Rio do Peixe seria uma ótima história de cangaço. Gostei das perseguições, das cavalgadas.” Pousaram o texto na mesa sem discuti-lo: detiveram-se na língua do título, que Formiga dizia ser em inglês, e Misael que o título tornava-se em português em virtude daquele “e”, e as outras três palavras sendo meros estrangeirismos não digeridos.

“A campainha tocou, chegou a pizza que haviam pedido, e após o repasto os dois limparam a mesa, ensacaram o lixo, fecharam a sala e foram tomar uma. Misael disse depois que pensava no conto como um paradoxo divertido e intrigante. Formiga, envolvido com o trabalho, só tentou procurar o datiloscrito dois dias depois. Remexeu a sala uma manhã inteira até lembrar. A pizza, o lixo. O conto, seu envelope com endereço e com o nome do autor, que nenhum de nós lembrava, estava, caso existisse ainda, a caminho de algum lixão sanitário com milhões de toneladas cúbicas.

“Mas isso era nos velhos tempos, de máquina de escrever, papel carbono, estêncil, mimeógrafo, carimbo, linotipo, composição em chumbo... Hoje, com a modernidade, e principalmente com a Internet, nada disso aconteceria.”


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

3396) Um som sem trovão (15.1.2014)




O filme de Kleber Mendonça Filho, O som ao redor, recebeu um dilúvio de elogios ano passado, e, talvez por conta disso, veio em seguida uma segunda onda de opiniões desdenhosas, no tom de “não achei essas cocacola toda”. Eu li pouquíssimo sobre o filme antes de vê-lo agora. Só sabia que era sobre um grupo de personagens espalhados por uma rua do Recife. Os elogios mais vigorosos foram feitos, em email, por W. J. Solha, o coronel Francisco do filme, que me elogiou o trabalho e o produto final, mas sem pistas do enredo. Por que insisto neste ponto? Porque quando a gente lê muito sobre o filme deixa de ter a experiência pura do filme. Ao invés de receber o filme na totalidade de cada momento seu, a gente fica esperando a cena da briga, esperando a cena da trepada, a cena do monstro, a cena da batalha... Resultado: não leio mais. Vou pro filme zerado.

Há uma cena em que o Dr. Anco está conversando com seu sobrinho João; os dois trabalham como corretores de apartamentos. Anco diz que lhe aconteceu uma coisa extraordinária. “Rapaz, fui mostrar um apartamento a um casal, pois não é que a mulher era uma ex-namorada minha?! A gente namorou um tempo, anos atrás, e o sexo com ela era bom demais, a gente fazia de tudo... Ela agora tá casada, com dois filhos...”  Há uma pausa. João pergunta: “E depois?”. Ele: “Depois, nada. Foram embora. Tu achasse pouco?” João: “Não, não. É ótima a história.”. O filme tem esse perfil, e talvez isso tenha irritado muitos espectadores. Porque ele arma situações que em outros filmes redundariam na cena da briga, na cena da trepada, etc. E não de propósito não redunda em nada.

O filme é meio nelsonrodriguiano, no sentido Zona-Norte-do-Rio do termo. Ambiente e personagens pós-Nelson, como Bia, a mulher que transa com a máquina de lavar roupa, que fuma maconha soprando no aspirador de pó, que dá sonífero ao cachorro. Mas onde Nelson derivava para o expressionismo, o melodrama, o filme se retém, reduz a marcha, mantém tudo num plano meio “filme de apartamento”, neo-realista, sem grandes lances dramáticos. Fica no que Drummond descreveu em “Vida Menor”: “A vida: captada em sua forma irredutível, /  já sem ornato ou comentário melódico, (...) Não o morto nem o eterno nem o divino, / apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente / e solitário vivo. / Isso eu procuro”.  Um naturalismo urbano sem os raios-e-trovões de um Nelson, um Dalton Trevisan, um Rubem Fonseca. Os personagens estão no epicentro tranquilo de um furacão. São os 360o de som em volta que formam um tsunami ameaçador, fechando-se sobre eles, um terremoto que se aproxima, uma guerra a caminho cujos sintomas explodem de repente em cada esquina.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

3395) "Notícia de um sequestro" (14.1.2014)





Na série “Livros Meio Antigos Que Sempre Me Interessaram Mas Só Agora Estou Lendo” posso incluir com prazer este relato de Gabriel Garcia Márquez, de 1996, a época em que a violência na Colômbia atingia proporções quase de guerra civil. Márquez, por um lado, tem uma imaginação “Realismo Mágico”, capaz de infinitos desdobramentos e constantes surpresas.  Sua formação, no entanto, é jornalística, e quando se detém sobre fatos ele parece ser tão objetivo e atento ao detalhe quanto – digamos – um Fernando Morais ou Ruy Castro, dois dos nossos referenciais de história verdadeira contada com rigor de minúcias.

O livro acompanha o sequestro de uma dezena de jornalistas colombianos pela quadrilha de Pablo Escobar, o barão da cocaína que na época tentava pressionar o governo para evitar ser extraditado para os EUA, onde suas chances de escapar à justiça seriam nulas. Os jornalistas eram de famílias influentes (havia a filha de um ex-presidente da República), famosos em todo o país. Ficaram em diferentes cativeiros, vigiados 24 horas por adolescentes drogados e armados, e a narrativa acompanha tanto os reféns quanto as famílias que, do lado de fora, pressionam o governo e os sequestradores em busca de uma solução.

Márquez arma o livro como uma história de suspense. Para nós, não-colombianos, todos aqueles personagens são desconhecidos. Lá, já se sabe (é fato histórico) quem morreu e quem foi resgatado com vida; para um leitor distante, é uma história que está acontecendo pela primeira vez no instante da leitura. Imaginamos a qualquer instante um desfecho trágico para qualquer um daqueles personagens. Sabemos que tudo já aconteceu, mas nossa ignorância do resultado nos ajuda a ler os fatos como se qualquer final fosse possível.

É uma história com intriga política, suspense, violência, fazendo um corte de várias classes sociais (há um contraste patético entre o refinamento inútil dos sequestrados e a rusticidade dos “testas de ferro” dos cativeiros), contada por um narrador onisciente que não pode interferir no enredo: ele vê tudo, mas tudo imovel, porque já aconteceu. Se fosse literatura, seria interessante saber até que ponto seriam toleráveis certos infelizes acasos que ocorreram, e certos destinos trágicos que parecem escritos em implacáveis estrelas. Descontando a crueldade e a tragédia das mortes de fato acontecidas, o destino da maioria dos reféns é um anticlímax. Romancistas e roteiristas de cinema hesitam em encerrar um drama dessas proporções de maneira banal, com pessoas famintas, atarantadas, andando numa rua de periferia em busca de um táxi ou de um telefone.

domingo, 12 de janeiro de 2014

3394) "O Som ao Redor" (12.1.2014)



Gilberto Freyre, um dos mais dedicados investigadores da sociedade pernambucana, intitulou seu primeiro grande livro Casa Grande & Senzala, criando com isto, aliás, uma terminologia que se incorporou a nossa linguagem cotidiana (“O Brasil pode até acabar com a senzala, mas nunca vai se livrar da casa grande”, etc.). Voltando sua mira para o meio urbano, Freyre produziu outro dístico que equaciona em outros termos essa clivagem social: Sobrados e Mucambos. Eu diria que a cultura pernambucana (principalmente cinema, literatura, música) vem nos últimos tempos produzindo um terceiro corte que na falta de coisa melhor eu chamaria Cobertura Duplex & Moradia Popular.

O filme O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho faz esse corte transversal numa pequena área urbana do Recife. É um terreno vasto de patriarcas do açúcar que, como tudo o mais que foi deles, acabou fatiado, loteado aos pouquinhos. Um império vendendo a si mesmo pelas beiradas, como naquela fábula do náufrago que todo dia cortava um pedaço de si mesmo e o jogava aos tubarões, na esperança de que poupassem o principal. No filme, os tubarões quase não são vistos, mas as grades que os mantêm do lado de fora são onipresentes. Todo enquadramento do filme lembra uma palavras-cruzadas. É tanta grade que parece que estamos em Abreu e Lima, não num bairro nobre.

Nobre é o tratamento que esses fidalgos-de-berço dão aos serviçais, quando em condições normais de temperatura e pressão. Certos retratos da aristocracia rural inspirados em histórias de chicotes e feitores ignoram essa maneira tranquila, civil, até descontraída com que os ricos nordestinos (o filme mostra) costumam tratar seus empregados. Quem grita e esculhamba com eles, em geral, são os patrões de classe média.

No labirinto das ruas floresce o mercado-negro da segurança privada, uma guarda-pretoriana a que os combalidos aristocratas entregam seu destino, meio que fechando os olhos a todas as evidências. Jovens ricos vivem de pequenos furtos ou se engajam como pequenos mascates da explosão imobiliária. O velho patriarca (W. J. Solha, bíblico e jagunço) é afável e bonachão, mas, quando prevê uma ameaça a um parente seu, racha-se o verniz, e a escama do dragão reponta, fumega.

São pessoas sem futuro, cercadas em 360 graus de raio por sons inexplicáveis, ameaçadores, recorrentes, irritantes. Um bombardeio de algo que se aproxima, prestes a escalar as árvores e pular os muros das fortalezas. O filme mostra a insônia dessas pessoas, que têm a expressão destruída de quem só quer paz, mas não sabem como interromper a guerra que os enriqueceu e hoje os malassombra.


sábado, 11 de janeiro de 2014

3393) A moeda do tempo (11.1.2014)




(Ilustração: Edward Gorey)


De vez em quando a gente entra nas redes sociais e começa a fazer brincadeiras com os amigos: “Seis posts na última meia hora? Vai trabalhar, vagabundo!”. Há uma mistura de seriedade e de gracejo nisso, principalmente entre aqueles cujo trabalho exige que fiquem o dia inteiro sentados na frente do computador. Escritores, tradutores, jornalistas... Ou mesmo pessoas que têm outras ocupações, mas de tanto em tanto tempo sentam diante do monitor, checam o que os amigos andaram postando, comentam, compartilham, envolvem-se em debates, fazem piadas.

Nada impede que essa aparente falta de ocupação esteja sendo exercida nos intervalos de um trabalho duro, e da minha parte nada melhor para descansar de uma hora intensa de escrita ou de tradução do que 15 minutos num Twitter ou Facebook peruando as polêmicas alheias, ou conferindo um clip musical, uma notícia quente. A gente volta ao trabalho com a mente relaxada, pronto para mais uma hora de enfrentamento. (O único prejuízo é do corpo, que continua escravizado ao teclado e à cadeira giratória.)

Estou perdendo meu tempo? Não acho. Perdia muito mais quando tinha TV na sala e no quarto e, sob o pretexto de “descansar a coluna”, me deitava às 3 da tarde nas almofadas, ligava a Máquina de Fazer Doido, e só emergia dali quando começava a novela das 8, porque afinal tudo tem um limite. Cinco anos atrás eu via uma média de 5 a 6 horas de televisão por dia; hoje em geral vejo quatro por semana (um jogo na quarta, outro no domingo, e olhe lá.)

O poeta Carl Sandburg disse: “O tempo é a moeda que você tem para negociar sua vida. É a única, e só você pode dizer como ela vai ser gasta. Tenha cuidado, não deixe que as outras pessoas a acabem gastando, em vez de você”. Chega um momento na vida em que eu olho minhas estantes repletas de tesouros inestimáveis e sei que não vou poder ler aquilo tudo. Eu seria capaz de escrever um livro sobre cada livro que tenho na minha biblioteca; mas não vai dar tempo. Gastei, gastei demais minha moeda, e se alguém vier me censurar minhas noitadas de botequim e violão eu direi que ao contrário, aquilo foi tempo bem investido e bem recompensado. O desperdício, amigo, é o programa de auditório que você fica olhando sem ver, só porque a TV está ligada; o filme bobo que você já viu, ou que está achando chato mas vê mesmo assim; o talk-show com gente cheia de caras e bocas e sem nada para dizer; o pseudo-noticiário de fatos cuja verdadeira versão você acabou de ler num blog confiável. O tempo não é um recurso renovável. Pior do que isto, é uma conta bancária de onde a gente retira um dia por dia, sem nem saber quanto falta para zerar o saldo.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

3392) Festa de Rei (10.1.2014)



No fim de semana passado, fiz uma coisa que só acontece raramente na vida da gente: realizar um sonho de quarenta anos, e ainda ganhar para isso!  O “ainda ganhar” se deve ao fato de que viajei a trabalho, como parte da equipe do documentário Bom dia, poeta, que incluía Alexandre Alencar (direção), Amaro Filho e Cláudia Moraes (produção), Ivanildo Marques e Chapola Silva (fotografia e som). Eu fui como roteirista e entrevistador, além de poeta nas horas vagas.

O sonho de 40 anos foi conhecer São José do Egito, que o pessoal chama (com certa discrepância geográfica) “a Meca da poesia popular nordestina”. Sem a grandiosidade da Kaaba ou das Pirâmides, São José é uma cidade de 30 mil habitantes que respira poesia como Florença respira artes plásticas ou Nova Orleans respira jazz. Está na essência, na medula daquele povo; está no seu jeito de ser, de falar, de pensar, de interpretar o mundo e de estabelecer seus laços recíprocos de amizade e admiração. No mundo da poesia popular, chamamos de poeta (“bom dia, poeta!”) as pessoas de quem gostamos, que admiramos, que desejamos honrar e tratar bem. Nem todos são poetas, é claro, mas um bom leitor de poesia é mais importante do que duzentos poetas ruins.

A Festa de Rei era a comemoração dos 99 anos de nascimento de Lourival Batista, “Louro” (1915-1992), e um ensaio para a festa do seu centenário no ano que vem. Louro, com quem convivi entre 1975 e 1980, formou, com seus irmãos Otacílio e Dimas, a trinca dos irmãos Batista Patriota, três rochedos imbatíveis contra os quais oceanos inteiros de versos alheios se espatifaram inutilmente. Cada um com suas características; o forte de Louro era o trocadilho, a construção sinuosa e impecável de glosas que entraram para a História, o espírito escarninho e mordaz (principalmente nos desafios com seu grande amigo Pinto do Monteiro), e a alma de poeta, sem vaidade, sem egoísmos. Criou uma família enorme, cheia de artistas, muitos dos quais se revezaram no palco armado em homenagem ao mestre nos dias 4, 5 e 6 deste janeiro.

São José é símbolo de uma região, o Vale do Pajeú, numa área onde Pernambuco e Paraíba se penetram mutuamente, como o símbolo do Yin-Yang, e que engloba Tabira, Itapetim, Teixeira, Tuparetama, Sertânia, Afogados da Ingazeira, Água Branca, Carnaíba, Flores... A Serra do Teixeira e o Rio Pajeú são dois vetores essenciais dessa cultura da sextilha, do cordel, do mote e da glosa; e do repente, do flash instantâneo de percepção que cria uma piada, um trocadilho...  Ninguém entenderá a poesia nordestina sem mergulhar nessa cultura gigantesca e quase invisível. É a ponta de um iceberg, e é maior que o Everest.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

3391) A Biblioteca Perdida (9.1.2014)




(by André Govia)

A cidade de Gesternburg é conhecida por sua catedral gótica, pela exuberância de suas floriculturas, pelos seus restaurantes (para os que apreciam a comida alemã) e pela Biblioteca Wolffring, uma das maiores coleções de obras ocultistas e místicas da Europa. Gesternburg é um porto fluvial, e o ápice de sua vida cultural foi entre os séculos 16 e 17, quando seu clima ameno e a facilidade de transporte fez muitos nobres do império austro-húngaro construir ali seus castelos de verão. A decadência das casas nobres fez com que as maiores absorvessem as menores, e o que aconteceu com os brasões se refletiu nas bibliotecas. Por volta de 1887, o Conde de Wolffring havia comprado todas as bibliotecas do vale.

A morte do Conde em 1914 coincidiu com o deflagrar da I Guerra Mundial. A cidade, miraculosamente, não sofreu nenhuma invasão, mas padeceu com o racionamento de comida. E foi aí que entrou na história o novo Conde, filho único do patriarca. Estrôina, beberrão, indolente, o jovem Conde começou a dilapidar a fortuna do pai, que morrera sem um centavo nos cofres. Como achava que mobília e pratarias tinham maior valor, começou a desfazer-se dos livros. Os fornecedores de pão, carne, vinhos, leite, vitualhas, passaram a ser pagos não com moedas, mas com pesados volumes de Eliphas Levi, de Swedenborg, de Fulcanelli... Os perplexos mercadores passavam esses livros adiante por qualquer preço. A cidade inteira tinha uma vaga idéia de que o Conde possuía volumes preciosos, e durante alguns anos livros passaram de mãos em mãos num complicado sistema espontâneo de escambo, onde contavam pontos o tamanho do volume, o número de páginas, as ilustrações ou iluminuras que exibia, a encadernação.

Desse modo, ao longo de dez ou quinze anos as estantes do castelo de Wolffring foram esvaziadas, enquanto pela cidade inteira espalhavam-se tesouros bibliográficos obscuros ou interditos. Pesquisadores do mundo inteiro costumam hoje hospedar-se em Gesternburg por longos períodos para consultar a Biblioteca Perdida. Para isso, tornam-se amigos de padeiros, encanadores, taxistas, camponeses, manicures, em cujas casas sempre é possível encontrar cofres de madeira bem cuidados onde se guardam exemplares da moeda local: a correspondência de Papus, primeiras edições de Blavatsky e de Valentin Andreae, manuscritos inéditos de Jacob Boehme e de Jan van Ruysbroeck. É possível consultá-los e até fotografá-los, se se recorrer aos serviços profissionais da pessoa sob cuja custódia estão. Este é um fato que tem contribuído para aumentar o fluxo do turismo cultural em Gesternburg neste último meio século. Quanto ao castelo do Conde, foi comido por um incêndio.