domingo, 17 de novembro de 2013

3346) Mistérios do Facebook (17.11.2013)






(by Eduardo Salles)



Uma das coisas mais fascinantes das redes sociais é o fato de que, quando temos um número grande de seguidores ou amigos, temos direito a vislumbres rapidíssimos e enigmáticos da vida de pessoas que conhecemos só superficialmente, ou que nem fazemos idéia de quem são. 

Parece uma lei-não-escrita dessas redes que cada um de nós é livre para postar o que bem entender; mas, devido ao excesso de exposição pública, é melhor não ser demasiado explícito. 

Vai daí que as redes sociais são um terreno fértil para a Insinuação, a Indireta, a Vagueza Proposital, a Alfinetada Sutil, a Cotovelada de Quem Não Está Mais Aqui, a Ameaça Pública Velada, o Queixume Com Destino Certo...

Você vai correndo a tela, olha aqui, olha acolá, e de repente se depara com alguém que posta: “Muita gente pensa que só quem cai pra baixo é a chuva, mas não perde por esperar!”. 

Como sou um cara meio paranóico, tudo que leio penso que é comigo, até as quadras de Nostradamus. Aí, verifico direitinho quem é a pessoa, peço ao Facebook para exibir nossa amizade, acabo me tranquilizando. Não é comigo. 

Mas quando retorno à página, um sujeito de má catadura acabou de postar: “De falsos intelectuais este Facebook está cheio, mas tudo bem, isso me dá motivos para gargalhadas, e faz bem à saúde!”. Recuo, desconcertado. Que mal fiz eu ao barbudo para ele me chamar de pseudo-intelectual? Meia hora para me auto-dissuadir, para me refazer.

Você se distrai com as postagens de uns e de outros, este aqui indicando um clip de erros de continuidade no cinemão blockbuster, outro mostrando um número ao vivo de Django Reinhardt, outro com a lista dos dez gols mais bonitos na votação da Fifa... O mundo vira um parque de diversões inofensivo, ou uma confeitaria onde as guloseimas são de graça e não empanturram. 

Mas de repente, surge aquela postagem lacônica de alguma senhora: “Uma certa pessoa deveria tirar o cavalinho da chuva pensando que está com a bola toda. Não está não, mas vai descobrir da pior maneira possível”. Meu dia desmorona. O que foi que eu fiz a essa postante? Nem reconheço o nome! 

Clico, verifico a foto, a verdade é que nunca a vi mais gorda, tenho até vontade de comentar seu post dizendo isso, mas se ela já está belicosa é capaz até de levar a mal.

O que me salva são os mistérios positivos. Uma moça posta: “Tiiinnn-tiiinnn... Gente, não caibo em mim (é caibo que se diz? Xapralá!), estou com uma novidade ma-ra-vi-lho-sa mas por motivos óbvios não posso tornar público ainda. # felizdavida”. 

Continuo sem saber quem é, o que será que lhe aconteceu; mas a luz alheia também nos ilumina, e por essa noite vou dormir feliz.








sábado, 16 de novembro de 2013

3345) Lord Byron's Night (16.11.2013)



(foto: Dani Barcellos)

Estive na 59a. Feira do Livro de Porto Alegre, para dois compromissos dentro do evento Tu Frankenstein, dedicado à literatura fantástica. O primeiro, um bate-papo com Duda Falcão e João Pedro Fleck, organizadores do evento, e os tradutores César Alcázar e Guilherme Braga. O outro, um desafio curioso. Como sabem os fãs da literatura de terror, em 1816 os poetas Lord Byron e Percy Shelley (este com sua noiva Mary) se encontraram na mansão do primeiro, às margens do Lago Genève (ou Lago Leman), na Suíça. Numa noite chuvosa, eles e mais alguns convidados propuseram uns aos outros o desafio de cada um escrever uma história de terror. Algum tempo depois, surgiram dois clássicos da literatura fantástica: O Vampiro, de John Polidori (um dos amigos presentes, e médico pessoal de Byron) e Frankenstein, ou o Moderno Prometeu de Mary Shelley.

O desafio gaúcho, chamado informalmente “Lord Byron’s Night”, consistiu em colocar 18 escritores para passar uma noite em claro dentro da Biblioteca Pública de Porto Alegre (que está fechada para restauração), sem poder sair, sem conexão de Internet, da noite do sábado até o amanhecer do domingo, com o compromisso de cada um entregar, no fim do prazo, um conto de terror. Temas e ambientação foram deixados a cargo de cada um; a única exigência era que a Biblioteca aparecesse, fosse como local da história (em parte ou no todo), ou por conter uma livro ou documento que iria desencadear o enredo, etc. No andar térreo, um bufê com sanduíches, salgados, refrigerantes, café e cerveja – para manter todo mundo inspirado e desperto.

A Biblioteca é mais antiga, mas o prédio atual, em reforma, é de 1922, e tem paredes, tetos e decoração extremamente interessantes. Iluminação indireta criava um ambiente soturno. O grupo de escritores incluía os argentinos Federico Andahazi (autor de O Anatomista) e Gustavo Nielsen, o francês Alexis Aubenque, os norte-americanos Sean Branney e Christopher Kastensmidt (este radicado no Brasil há 12 anos), e os brasileiros Felipe Guerra, João Pedro Fleck, Duda Falcão, Marcelo Amado, Celly Borges, Guilherme Braga, Cesar Alcázar, Carlos Patati, Bráulio Tavares, Simone Saueressig, Felipe Castilho, Max Mallmann e Carlos André Moreira. Os contos deverão ser reunidos numa antologia com lançamento previsto para a 60a. Feira, daqui a um ano.

Foi uma rara sensação passar a noite escrevendo, cercado pelo tlec-tlec de 17 notebooks, com pausas de hora em hora para um café e um bate-papo com os colegas, e produzir, das 21 horas às 3 da manhã, um conto de 3.200 palavras, num regime de total improviso (eu não sabia o que ia escrever até digitar a primeira frase).


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

3344) Viva Millôr! (15.11.2013)




(Quinho)



Millôr Fernandes foi escolhido como homenageado da Flip, Festa Literária de Paraty, um dos mais importantes eventos literários do país. E logo começaram os aplausos, de um lado, e os apupos, do outro. 

Vou logo avisando que estou do lado dos aplausos, e olha que eu participei de um abaixo-assinado defendendo a escolha de Lima Barreto para essa homenagem. Não deu Lima; deu Millôr. É justo?

Na rejeição de alguns a Millôr há uma defesa da “literatura propriamente dita” contra a sua contaminação por outras atividades. 

Entre nós, literatura significa romance, conto e poesia. Para ser grande escritor é preciso ter sido grande numa dessas três áreas. Tanto que aí estão os homenageados anteriores: romancistas/contistas (Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Machado de Assis, Graciliano Ramos), poetas (Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade. Carlos Drummond), com a ressalva de que alguns se destacaram também em outras áreas. 

Restam os casos do dramaturgo Nelson Rodrigues, mas este também foi um romancista de peso; e do sociólogo Gilberto Freyre, mas pode-se argumentar o impacto cultural e o brilho estilístico do que escreveu.

Millôr não foi romancista, nem contista, nem poeta. Foi autor de crônicas, epigramas, parábolas, anedotas, aforismos, versinhos de ocasião. Foi excelente tradutor, e dramaturgo de sucesso. Foi um dos nossos melhores artistas gráficos, mas isto “não é literatura”. 

Tinha opiniões claras (de muitas das quais discordo, aliás) e corajosas. Ganhou inimizades porque vivia alfinetando os balões da vaidade de muitos figurões e mostrando que eram feitos de 1% de plástico e 99% de vazio.

A grande contribuição de Millôr não foi na área da ficção nem da poesia, e sim na área da linguagem. Na área da fala-escrita, dos jeitos de dizer. Poucos manejaram a língua brasileira com a mesma versatilidade e habilidade dele. Como outros jornalistas, pegou uma língua pesadona, balofa, e deu-lhe leveza e graça de bailarina ou de craque de futebol. 

Foi um dos maiores fazedores de frases num país que é fértil nesse tipo de talento; e se alguém disser que frase não é literatura é porque pensou no assunto pela primeira vez neste momento.

Isto ele compartilha com Lima Barreto: a linguagem simples, direta e riquíssima. Sua originalidade vem da ousadia das idéias expressas em palavras simples. Millôr combateu a prosa enfatiotada e oca, o beletrismo oratório que levou antas e mais antas às Academias e aos manuais escolares. 

Combateu o Monstrengo Pomposo, aquela prosa “capaz de acrisolar no cadinho do vernáculo as emoções candentes que diuturnamente se estiolam na labuta do louvor às Musas...” Vôte.










quinta-feira, 14 de novembro de 2013

3343) Eu me lembro 3 (14.11.2013)




Eu me lembro que a música com que se apagavam as luzes e abriam as cortinas no Cine Avenida era o tema de Charada de Henry Mancini. 

Eu me lembro de ter visto um trote universitário com todo mundo sujo, rasgado, careca, portando cartazes falando em De Gaulle e em pesca de lagostas. 

Eu me lembro do restaurante Bolero, que eu olhava lá da rua e via os guardanapos de linho dobrados dentro dos copos, como se fossem lírios. 

Eu me lembro dos chapeados que carregavam balaios na feira, usando na cabeça uma rodilha de pano sobre um chapéu feito com o couro de uma bola de futebol.

Eu me lembro da manchete gigantesca na primeira página de um jornal: “Amanhã, Lunik revelará se há vida na Lua”. 

Eu me lembro da primeira vez em que eu guardei um chocolate no bolso da camisa da farda do colégio e ele derreteu. 

Eu me lembro das saladas-de-frutas com sorvete da Flórida, e de como a colher era de um metal mais pesado do que as de lá de casa. 

Eu me lembro do coro de “shhh, shhh” no cinema quando aparecia na tela o condor da Condor Filmes, que Aldir Blanc descreveu como “e o urubu sai voando...”.

Eu me lembro de Cauby Peixoto na sacada da Rádio Borborema, cantando “Conceição” a-capella para a multidão que não pôde entrar para vê-lo cantar no palco-auditório. 

Eu me lembro da sinuca Gato Preto, dos quadros nas paredes com páginas de revista mostrando fatos bizarros tipo “Ripley’s Believe it or Not”. 

Eu me lembro  do confeito Gasosa, redondo, cujo papel era azul e branco e tinha o desenho de taças de espumante. 

Eu me lembro de quando minha Tia Adiza me levou para ver um filme de Oscarito no Cine São José, e num dos trailers apareceu uma mulher nua!

Eu me lembro dos primeiros LPs em 33 rotações, e eu gostava porque dava para ler o título da música enquanto o rótulo girava. 

Eu me lembro que no Presidente Vargas quando faltavam uns dez minutos para o fim do jogo abriam-se os portões para a entrada de quem não podia pagar, e a gente chamava isso “a hora dos miseráveis”. 

Eu me lembro quando apareceram os primeiros cinzeiros de sala que ficavam sobre um saco de veludo cheio de areia. 

Eu me lembro da campanha para prefeito entre Severino Cabral e Newton Rique. (Ou “Pé de Chumbo” e “Mão de Seda” para os adversários). 

Eu me lembro de um casarão na Rua Vidal de Negreiros que em 1958 foi o Colégio das Lurdinas e em 1965 foi a sede e concentração do Treze. 

Eu me lembro das bolas de couro Drible, número 3, compradas a Fuba Véi na Casa Esporte; a número 5 era o tamanho profissional. 

Eu me lembro dos meninos descendo a rua Miguel Couto nos carrinhos de rolimã, e que quando vi a primeira foto de um kart achei uma coisa de ficção científica.







terça-feira, 12 de novembro de 2013

3342) Cinema Paralelo (13.11.2013)



(Shane Smith) 

A cada dia que passa eu acho a Rússia o país mais bizarro e mais interessante do mundo. Eu não moraria lá nem com uma bolsa milionária, mas o laboratório de situações terminais em que se tornou o antigo Império dos Czares e antiga União Soviética é um espetáculo fascinante para quem curte “o estranho, o bizarro, o inesperado”.

Vi o documentário Cinema Paralelo (http://bit.ly/PlUJ3I), com cerca de meia hora, sobre o cinema “underground” que floresceu no país nos anos finais da URSS, botou a cara pra fora meio timidamente nos anos Gorbachev, e agora sob a ditadura de Putin está retornando aos subterrâneos onde nasceu e se criou.

O Cinema Paralelo era um tipo de cinema propositalmente malfeito, “trash”, amalucado, surrealista, indecente, grosseiro. A certa altura do documentário de Shane Smith e Eddy Moretti, um entrevistado diz: “A Rússia tem uma arte ‘underground’ extraordinária, e uma arte oficial terrível.”  Boris Yukhananov, os irmãos Igor e Gleb Aleinikov (o primeiro, já falecido; o segundo, hoje diretor da segunda maior estação de TV do país) fizeram filmes chocantes, anárquicos, que Shane define assim: “Gente maluca fazendo filmes malucos baseados em teorias intelectuais ultra-radicais”.

Oleg Kulik é um artista performático que fez parte desse movimento (ele viajou pela Europa interpretando o papel de um cachorro: nu, puxado pela coleira por um assistente). Agora, fundou uma religião, da qual é o Messias: a Religião do Nada. Quem continua na ativa é Yvgeni Yufit, criador do “Necro-Realismo”. No período comunista, não era permitido mostrar a morte, mostrar bundas, mostrar infelicidade. Assim, Yvgeni decidiu colocar todas essas coisas nos seus filmes. Teve filmagens interrompidas, filmes apreendidos, mas de um modo geral ele e seus colegas eram considerados apenas idiotas e malucos.    

Um dos subgrupos mais interessantes é o Cinema Álcool, “Alcho-Cinema”. Segundo Andre Silvestrov, é “um projeto conceitual na fronteira entre arte, entretenimento e álcool”. Seu colega Pavel “Pasha” Liabazov sugere: “E sócio-arte”. Depois, Silvestrov completa: “É uma alternativa à pornografia do Ocidente.” Em que consiste o Cinema Álcool? Eles juntam numa sala um grupo de seis a dez pessoas (sempre homens, ao que parece) e essas pessoas começam a beber e conversar sobre tudo: política, arte, cinema... E não há câmera. Pelo menos no dia em que a equipe de Shane Smith registrou uma filmagem do Cinema Álcool, somente as câmeras dele próprio estavam presentes. Fica a impressão de que é algo na linha do Cinema Espiritual Paraibano dos anos 1960: o pessoal num bar, bebendo e descrevendo o filme que tem na cabeça.


3341) Nossas editoras (12.11.2013)




Todo autor tem problema com editoras, mas esses problemas são de natureza variadíssima, tipo “cada caso é um caso”, e não se resumem ao cansadíssimo clichê do editor gordo, de cartola, fumando charuto e surrupiando os direitos autorais do autor que escreve à luz de velas num sótão gotejante. Não é assim. Os problemas são muito outros.

Contarei dois problemas que tive com a Editora Rocco, à qual aliás sou muito grato por ter publicado três livros meus: A Máquina Voadora (1994), A Espinha Dorsal da Memória / Mundo Fantasmo (1996) e O Anjo Exterminador (2002).  Quando penso nessa editora, mais do que numa empresa penso no papo amigo e inteligente de Vivian Wyler, Ana Duarte, Bebeth Lissovsky, e do falecido e admirável José Laurênio de Melo.

Mas vejam como o mecanismo de uma editora grande pode se tornar uma coisa desajeitada, paquidérmica, kafkeana.

Anos atrás eu precisei de exemplares da Espinha... É praxe contratual que o autor possa adquirir seus próprios livros com um desconto no preço de capa. Digamos que eu precisasse pagar apenas 40% disso; num livro com preço de capa de 40 reais, eu pagaria apenas 16 reais por cada um. Liguei para o depto. comercial da editora, encomendei uns dez ou vinte exemplares, paguei os 16 (ou equivalente). Dias depois, achei numa Siciliano o mesmo livro, com preço de capa de 9,90. Por que o Depto. Comercial não me disse que estava liquidando o livro? Como autor, tenho o direito de saber. Se a Siciliano estava vendendo a R$ 9,90 deve ter comprado por um décimo disto. Mas a editora não me disse nada. Só para que eu pagasse os 16,00 reais por exemplar, bancando o otário? Não é possível.

Esta semana, recebi a prestação de contas de O Anjo Exterminador, meu livro sobre Luís Buñuel, e vi que os 450 últimos exemplares do livro foram vendidos a alguém por R$ 1,75 (um real e 75 centavos) cada um. Mais uma vez a editora foi burra. Se tivessem me ligado e pedido uma oferta, eu sou tão ingênuo que teria pago talvez 5 reais por cada livro, pensando em vender por dez.

O modelo de ação das grandes editoras, no entanto, dificulta o diálogo direto, as pequenas atenções e gentilezas. Não dá para lembrar de negociar cada detalhe com cada autor, são centenas de autores, às vezes mais de mil. Quando é preciso abrir espaço no armazém, é contraproducente ficar ligando para cada uma daquelas pessoas: “Você se interessa por essas sobras-de-estoque?...” É este o termo técnico para aquele livro sobre o qual você suou e se desesperou em vão durante um ano. É tudo muito rápido, muito atropelado, muito mal feito, muito mal resolvido, muito mal educado.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

3340) Contracapa de PS4 (10.11.2013)



(www.imagesavant.com)

&  no futuro só existirão ciganos, os esperançosos chegando aos territórios que os desiludidos desocuparam na véspera  &  um livro-cebola com páginas esféricas, lidas e descartadas de fora para dentro  &  isso aí só no dia em que fumaça descer pela chaminé  &  há uma conspiração em curso para que os honestos se afastem cada vez mais da política  &  aves de pano negro pousadas no muro, mastigando alguma coisa  &  todo escritor é um rio menor do que os afluentes que recebe  &  um tique nervoso é um bug biológico que desencadeia um loop mental  &  um time de futebol faz anagramas de si mesmo durante 90 minutos  &  uma moeda com uma face falsa e a outra verdadeira  &  uma noite de chuva como esta e ainda mais uma campainha distante que não para de tocar  &  podia pelo menos ter uma janela no elevador, pra gente ver a parede passando  &  e ele com aquela cara de quem esqueceu de fazer backup  &  edifícios cravados na paisagem como pendraives ambiciosos e invasivos  &  o barulho da cidade é como o de um mar indo e voltando  &  se eu fosse esperar que alguém pedisse minha opinião, tinha morrido mudo  &  a limusine é útero high-tech, Náutilus do asfalto, bat-caverna ambulante, alcova para voyeurs  &  conheço um cara que é dono de vinte cinemas e há dez anos não consegue ver um filme  &  o mundo deve ser a lixeira onde Deus joga o que não deu certo  &  um livro onde cada página fosse desenhada como um quadro  &  o doido e o headphone invisível que só ele escuta  &  igarapés holográficos por onde os turistas poderão caminhar sobre as águas sem molhar os respectivos  &  tem gente que basta botar uma peruca e nem lembra mais como se chama  &  cada objeto no mundo tem um Deus e um Diabo brigando pelo seu destino  &  as melhores visões se projetam na membrana impalpável entre o sono e a insônia  &  nenhuma cidade é mais interessante do que seus subterrâneos  &  tem bilionário que nem lembra o que é dinheiro, vive pela adrenalina das disputas  &  por mais rápida que seja uma bala ela está sujeita às influências do vento  &  roqueiros fazendo a saudação nazista e sendo mal interpretados  &  mosquitos que transmitem amnésia, ateísmo, obesidade  &  tem gente que se pudesse acabava o mundo e tirava uma foto ao lado dele  &  devia existir uma engenhoca que produzisse água do mesmo jeito que um isqueiro produz fogo  &  tem gente que me chama a atenção mas ela não vai de jeito nenhum  &  só sabe o gosto de vestir uma roupa nova quem sabe o prazer de usar uma roupa velha  &  poucos honestos pregam a honestidade com tanta veemência quanto certos trambiqueiros  &

sábado, 9 de novembro de 2013

3339) "2001" (9.11.2013)





(foto: skynerd.com.br)


A editora Aleph acaba de lançar uma edição especial de 2001, uma Odisséia no Espaço de Arthur C. Clarke. Na capa de Pedro Inoue, há uma caixa preta tendo no centro o “olho vermelho” do computador Hal-9000, e dentro da caixa o livro propriamente dito todo impresso em preto, inclusive as bordas, reproduzindo o famoso monolito do filme. Além disso, o livro traz textos extras de Arthur C. Clarke, com dois dos contos que serviram de inspiração inicial para a obra: “A Sentinela” (1952) e “Encontro ao alvorecer” (1953).

2001 é uma das obras mais conhecidas da FC, graças ao filme, e imagino que tenha sido o único romance do gênero que muita gente chegou a ler (ou pelo menos tentou). Na época em que filme e livro foram lançados, eu tinha de 18 para 19 anos e ouvia o tempo todo comentários como: “Leia o livro, ele explica o filme todo!”. Explica... em termos. Toda a base científica do filme é esmiuçada, no brilhante estilo pensei-em-tudo de Clarke. Superficial na criação de personagens e na psicologia humana, ele é um espantoso pintor de ambientes e situações de grandeza cósmica e precisão científica.

Relendo o livro agora, percebi um detalhe. Os cinco astronautas na missão (embora a ação se concentre em dois) têm nomes que evocam os homens-macacos primitivos do início da história: Hunter (caçador), Whitehead (que lembra o homem-macaco “Cabelo Branco” devorado pelo leopardo no capítulo 1), Poole (que lembra “pool”, poça, onde os homens–macacos disputam a água), “Kaminsky” (uma forma da palavra “pedra” em polonês) e Bowman (arqueiro). Sim, sei que eles ainda não usam arco e flecha, mas a idéia está embutida na transformação do personagem Aquele-Que-Vigia-a-Lua.

A certa altura, depois da crise do Hal-9000, Dave Bowman lembra o que um técnico lhe havia dito, na Terra: “Podemos projetar um sistema que seja à prova de acidentes e estupidez, mas não podemos projetar um que seja à prova de maldade deliberada.” Clarke é um dos autores mais racionais e apolíneos da FC, mas por baixo da euforia racional ele (que não é bobo) reserva sempre um desvão escuro onde está de emboscada o imprevisto, o irracional, o inesperado. Como a própria crise de consciência do super-computador, que quase faz abortar a missão.

Quem chega a Saturno (no livro; no filme, é Júpiter) é um prodígio da alta tecnologia, pilotada pelos astronautas mais frios, sensatos e robóticos da humanidade, e por um computador que acaba revelando instintos de sobrevivência destruidores que não ficam muito distantes dos impulsos dos homens-macacos da primeira parte da história. Quem chega ao espaço é uma equipe onde não se distingue quem é máquina e quem é homem-macaco.


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

3338) Pague o músico! (8.11.2013)




Circula pela web (recebi via Twitter do ilustrador Renato Alarcão) um email assinado pelo músico N. J. White, endereçado a uma tal “Zoe”, de um canal de TV britânico, que, aparentemente, escreveu para ele pedindo a liberação, sem pagamento, de alguma música ou trecho de música de autoria dele, para inclusão em algum tipo de trabalho. Esses detalhes não ficam muito claros, mas não importa. Importa a resposta do músico e seus argumentos. Faço pequenos cortes na mensagem original, que é bem mais extensa, mas o essencial vai aí abaixo.

“Prezada Zoe: (...) Estou de saco cheio desse papo furado, dessa inevitável frase: ‘Infelizmente não temos verba para a música’, como se alguma permanente Lei do Universo tivesse proferido um triste e imutável veredito impedindo você de destinar verba para a música. É a SUA empresa quem determina as verbas. Foram vocês que decidiram não destinar verba para a música. Vivo recebendo mensagens desse tipo, toda semana, enviadas por uma indústria de mídia rica, globalizada.

“Por que é assim? Vamos dar uma olhada em quem somos, eu e você. Eu sou um músico profissional, vivo da minha música. Levei metade da vida para aprender minha técnica, e anos para subir na estrutura da profissão até chegar a um ponto de receber mensagens de estranhos como você. Minha música é uma propriedade conquistada com muito esforço. Já licenciei música minha para alguns dos maiores programas, marcas, games e produções de TV, desde Breaking Bad até Os Sopranos, da Coca-Cola a Visa, da HBO até Rockstar Games. Você teria coragem de abordar um Diretor com um currículo assim, e, com uma simples frase cínica, pedir-lhe que trabalhasse de graça?

“É o menosprezo pela música, culturalmente impregnado na SUA profissão, que leva vocês a desdenhar o quesito ‘música’ sempre que possível. Vocês pagarão, sem questionar, a qualquer pessoa envolvida numa filmagem, (...). O músico? Ele que trabalhe de graça. (...) Você trabalha numa empresa financeiramente próspera, bem sucedida, reconhecida no mundo inteiro, com um portfólio cheio de sucessos. (...) Vocês têm dinheiro, sim, e fingir o contrário chega a ser um desaforo. E me manda esse pedido esfarrapado, “dê-me seu trabalho de graça”. (...) A resposta é um sonoro e definitivo NÃO”.

White termina a carta dizendo que está remetendo cópias para vários websaites e blogs voltados para a música, e encorajando os colegas a fazerem o mesmo. É o que estou fazendo. Dona TV (etc.), pague o músico! Pague o poeta, o escritor, o ilustrador, o fotógrafo, o ator... Nenhum email dizendo “Não temos verba para roteiro” já foi enviado por uma pessoa que estava trabalhando de graça.


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

3337) Tome uma pela gente (7.11.2013)




De vez em quando um governo proíbe o consumo de uma droga bem popular no país, com as consequências que já se sabe. Cem anos depois, a droga volta de vento em popa, e do Governo que a proibiu só restam bustos de gesso, medalhas comemorativas e nomes de ruas.

Foi o caso da Lei Seca, quando os EUA proibiram que se bebesse bebida alcoólica no país. Durou de 1920 até 1933, e, como disseram vários historiadores, ali nunca se bebeu tanto, e nunca se bebeu tão mal. 

Arthur Machen afirmou: “Proíbam um homem de beber uma bebida alcoólica decente, e em breve ele estará alegremente bebendo álcool puro”. Os norte-americanos beberam álcool impuro durante 13 anos. O uísque era fabricado nas banheiras dos apartamentos, com ingredientes improvisados, e vendido por qualquer preço. 

A Máfia, um obscuro grupo de bandidos imigrantes, tornou-se uma das principais forças do crime organizado no país, graças à fabricação e venda daquilo que o Governo, ao invés de administrar, resolveu proibir. Triste do poder que não pode.

Li a notícia (http://bit.ly/1bshw4N) de que numa reforma realizada num dos edifícios da Universidade de Fairleigh (em New Jersey) foi encontrada uma lata de tabaco contendo uma folha manuscrita, uma verdadeira “cápsula do tempo”.  A lata estava embutida numa das paredes; quando foi aberta, encontrou-se a nota que dizia: 

“Estes banheiros foram remodelados em 1932. E. J. Parsons de Morristown fez os encanamentos, e Edw F Daniher de St Madison fez o revestimento. Outros homens que aqui trabalharam foram: (... – segue-se uma lista de nomes.) Foi durante a Lei Seca, e foi um trabalho feito sem tomar uma dose sequer. Quem encontrar esta nota, se a Lei no. 18 tiver sido revogada, tome uma pela gente”.

A Lei 18 era justamente a que entrou em vigor em 17 de janeiro de 1920, proibindo as bebidas alcoólicas. Atentem para o detalhe subversivo da “cápsula”, porque quem a colocou ali não hesitou em dar os nomes dos envolvidos no trabalho, e, mesmo admitindo que não tinham bebido nada durante aquele período, o teor da mensagem podia ser considerado (e certamente seria, basta imaginar as figuras que lessem aquilo) uma “apologia do uso das drogas”.

Um professor da Universidade local explica que (como sempre) a Lei só serviu para os pobres. Antes da sua promulgação, Ruth Vanderbilt Twombly, da elite local, “fez estocar na região uma tal quantidade de bebida que durou os treze anos da Proibição, e dava festas em estilo Grande Gatsby para mais de 600 pessoas”. 

Os operários não bebiam – assim como os remadores de Ulisses, na Odisséia, não tinham permissão para ouvir o canto das sereias. Quanto mais muda mais continua a mesma coisa.