domingo, 8 de setembro de 2013

3286) As fases de Saturnino (8.9.2013)




Na infância, Saturnino teve um momento em que, onde estivesse, agia como uma antena capaz de dissipar tanto a formação de trovoadas quanto a de discussões. Fazendo uma pergunta a um, interrompendo outros, pedindo algo a um terceiro. Bastava-lhe isso para controlar a quantidade de luz que vinha do céu e (uma frase que ele leu uma vez numa revista) “o clamor furioso dos elementos”. Ou seja, para evitar que festas degenerassem em confrontos, discussões regredissem a sopapos.

Depois Saturnino teve um período em que desacertou o passo com o planeta. O emprego que arranjou na oficina gráfica de um jornal (daqui a pouco vai ser preciso explicar o que é isso) exigia que ele pegasse à meia-noite e largasse às oito da manhã, com meia hora para almoço. Seu dia passou a ser assim: acordar, ver o por-do-sol, a noite, a madrugada, o nascer-do-sol, ir pra casa, sono até o próximo entardecer. Ele fazia cálculos permanentes, como um turista no estrangeiro convertendo moedas em cada transação que faz ou que planeja.

Até Picasso teve um período azul, de modo que Saturnino teve uma fase decadente. Decadentismo sofisticado, carregado de ideologia e de floreios literários. Experimentou de tudo, riscou cada nome numa lista de muitas páginas. Encenou bacanais de cem pessoas, num palácio da costa de Dubai. (Se bem que o decadentismo de Saturnino nunca pisou descalço o asfalto quente dos fatos: as descrições acima são colhidas nos palavrosos diários que manteve durante essa época, quando tentou escrever contos em francês.)

Veio por fim uma coisa que ele, anos depois, iria chamar O Borrão. Uma coisa sem forma, que cada vez que era lembrada era distorcida e adulterada, e carimbada assim ao ser guardada de novo. O Borrão foi um período de oito ou dez anos subsequentes ao anterior. “Nada aconteceu”, disse ele depois numa entrevista, “a não ser que eu fiquei vivo cada minuto desses anos.”

Depois do Borrão (diz seu primeiro biógrafo) veio um período que para Saturnino não é nada especial, mas ele, o biógrafo, chama A Avataridade. É a condição das pessoas capazes de deixar atrás de si uma figura, uma fisionomia, um jeito de andar e de falar, um jeito talvez de vestir, ou de que forma se divertir, ou se amar. Antigamente perguntava-se se o cinema tinha alma. Hoje pergunta-se: Saturnino é uma pessoa, é uma sucessão de pessoas, é uma sucessão de personagens? Ele é como as megaestrelas pop, os políticos confraternizadores e dionisíacos, os rostos da publicidade ou do talk-show  - os quais são avatares, sims, com uma vida mais rasa mas com maior perspectiva de permanência a longuíssimo prazo do que a carne fraca que os criou.

3285) Pedro Cancha (7.9.2013)



Um dos melhores filmes do recente VIII Comunicurtas, em Campina Grande, foi o documentário de Luciano Mariz, Cancha – antigamente era mais moderno, sobre uma das figuras mais lendárias de Campina, Pedro Souto Guimarães, o famoso “Pedro Cancha”. É um documentário que mergulha sem receio no mundo do personagem, dando-lhe asas para voar na própria imaginação, além de ter um equilíbrio de alta qualidade em direção de arte, fotografia, iluminação, edição.

Em 1967, o costureiro recifense Marcílio Campos sugeriu que num clima tropical o uso do saiote seria uma boa opção para os homens – mais arejado, mais higiênico. (E, como cantou Luiz Gonzaga sobre a minissaia feminina, “facilita”.) Uma teoria que já tinha sido defendida por Gilberto Freyre e por Flávio de Carvalho (que em 1956 desfilou de saiote pelas ruas de São Paulo). A matéria deu o que falar em Campina, mas o episódio modernista/paulista andava esquecido. A turma do Calçadão propôs: E se a gente saísse na frente, com alguém usando isso? Campina, como se sabe, sente-se na obrigação de estar sempre na vanguarda de tudo.

O problema é que precisavam de um voluntário para usar a indumentária, e quem teria coragem? Alguém lembrou de Pedro Cancha, que morava em Zé Pinheiro e era dono do cabelo mais comprido da cidade, numa época em que cabeludo era insultado e escarnecido nas ruas (eu mesmo o fui, inúmeras vezes), e mesmo apedrejado e perseguido. Pedro Cancha era rude, brabo, musculoso, e tinha um cabelo maior do que o de Benito de Paula. Foi procurado. Topou. Alguém correu em casa e trouxe um saiote da mulher ou da filha. Levaram Pedro para a escada da redação do “Diário da Borborema” (onde eu trabalhava). Fotografaram-no em “contre-plongée”, de baixo para cima (a foto está no filme).

No dia seguinte o jornal saiu com a foto de Cancha na capa, e esgotou edições sucessivas. Mais uma vez, Campina se equiparava às grandes capitais! Foi organizado um desfile em carro aberto pela Maciel Pinheiro, diante de uma multidão dividida (como toda multidão) entre o aplauso entusiasmado e a vaia rancorosa. Pedro, de saiote, em pé no carro, gritava: “Juventude campinense! O mundo está mudando! Viva a liberdade!”. Algo assim.

Vieram novos tempos e novas modas, e o assunto foi morrendo. Em 1997, trinta anos depois do histórico desfile, Rômulo Azevedo fez uma reportagem de TV sobre o fato, e redescobriu Pedro Cancha, ainda morando em algum lugar remoto de Campina Grande. Recordaram o fato, comentaram, e por fim Rômulo perguntou o que ele achava do “mundo de hoje”, tantos anos depois. E Pedro Cancha respondeu, desalentado: “O passado era mais moderno”.





quinta-feira, 5 de setembro de 2013

3284) Carlos Fernando (6.9.2013)




(Carlos Fernando, no carnaval do Recife)

Meu último encontro com Carlos Fernando foi em 2009, no Recife, no aniversário de Aluísio Maluf, numa roda de violão que entrou pela madrugada, todo mundo tocando sambas e forrós puxados do fundo do baú, e Alceu Valença regendo a roda num coral cantando “Pressentimento” de Elton Medeiros: “Ai, ardido peito, quem irá entender o teu segredo?...” Foi uma bela noite de farra, e Carlinhos, com sua voz rouca e olhar encatitado, ficava entre uma música e outra, de dedo em riste, verbalizando manifestos estéticos em favor de um determinado ritmo ou esculhambando com a falta de memória do país, “ninguém conhece mais uma música linda como essa!”.

Carlos Fernando é o autor de “Banho de Cheiro”, gravado por Elba Ramalho (“Eu quero um banho de cheiro, eu quero um banho de lua, eu quero navegar...”), um dos seus sucessos que tocaram mais insistentemente nos últimos trinta anos. Compôs algumas das canções mais lindas de Pernambuco, em parceria, principalmente, com Geraldo Azevedo e Alceu. Mas foi, acima de tudo, um defensor do frevo, não somente o frevo como música instrumental para se fazer o passo nas ruas e nos bailes durante o Carnaval, mas o frevo como um dos gêneros atemporais, não-sazonais, da Música Popular Brasileira.

Acho que foi Capiba quem disse uma vez que o frevo poderia ser algo como o jazz, um tipo de música vibrante, complexo, envolvente, que poderia ser composto, tocado e dançado no mundo inteiro, independentemente de nacionalidade ou época. Carlos Fernando não tinha uma formação musical complexa – na verdade, era mais letrista, embora tivesse um senso melódico muito apurado. Seu frevo não era o frevo instrumental das orquestras, era o frevo de canções com letra, no modelo de Capiba e Nelson Ferreira. O seu projeto Asas da América (1979-1999) foi uma das maiores iniciativas de um só artista em defesa de um gênero que já houve na MPB. Compondo, produzindo, escolhendo cantores e arranjadores, Carlinhos botou Chico Buarque, As Frenéticas, Alcione, Jackson do Pandeiro + Gilberto Gil, Caetano Veloso, para cantar frevo. Gravou Tadeu Mathias, Terezinha de Jesus, Lenine & Lula Queiroga (talvez a primeira gravação conjunta dos dois), Flaviola e outros artistas nordestinos que surgiam na época.

Carlos Fernando faleceu semana passada, no Recife, aos 75 anos. Seu último trabalho, acho, foi a compilação 100 Anos de Frevo – É de Perder o Sapato, um CD duplo de 2007. Precisando checar alguns nomes e datas, procurei um verbete sobre ele na Wikipédia: não existe. Quem nos salva são os estrangeiros. Visitem este saite em espanhol, as Asas estão todas lá: http://bit.ly/17vsyRX. 


3283) A fofoca (5.9.2013)



(Andreas Paul Weber, O boato)

A fofoca corresponde a uma atitude mental infantilóide e maligna, de quem se auto-gratifica com pequenas maldades (porque até as grandes maldades exigem algum tipo de grandeza). 

A fofoca tem duas faces. Uma é a fofoca verdadeira: você descobre alguma coisa negativa (comprometedora, constrangedora, problemática) sobre alguém e espalha essa informação, pelo prazer mórbido de ver exposto em público o deslize ou o desvio de conduta de alguém com quem não simpatiza. (Ou mesmo de uma pessoa qualquer – muitas fofocas são propagadas com indiferença para com a pessoa que está sendo alvejada, apenas pelo prazer de prejudicar alguém, como quando a galera jogava um plástico cheio de mijo na arquibancada do Maracanã).

Outra face é a fofoca inventada.  Talvez seja melhor chamá-la de “fase”, porque parece ser um estágio que vem depois do outro, uma espécie de pós-graduação. O prazer de estragar (ou pelo menos atrapalhar) a vida alheia é tão grande que o fofoqueiro não pode ficar à espera de que alguma coisa denunciável aconteça. Parte logo para a invenção, e quando é assim, sai de baixo que vem tijolo.

A fofoca se reflete naquela figura jurídica chamada de “calúnia, injúria e difamação” (existe aliás uma distinção, entre estas categorias, que até hoje me escapa.). Nasce de um prazer perverso e sem proveito externo, como o de um garoto que se diverte trocando o conteúdo do saleiro e do açucareiro, escondendo a carteira do pai, queimando insetos com álcool, afrouxando o degrau de uma escada. Tem gradações de seriedade que vão desde a travessura e a peraltice até o crimezinho sádico, que pode indicar uma psicopatia qualquer.

A fofoca, praticada com requintes de premeditação e de estratégia, é uma forma de tiro pelas costas. É o passatempo de mentes mesquinhas que por autodefesa querem amesquinhar tudo à sua volta. A reação do sujo que só sossega quando prova que o "limpo" é um mal-lavado.

Não é de admirar, então, que haja toda uma imprensa voltada para esse tipo de atividade: os paparazzi que registram desde celulites até adultérios, as colunistas que revelam a intimidade alheia sob pretextos cada vez mais tênues, os comentaristas políticos que vivem plantando insinuações ou indiscrições para adquirir um poder que não obteriam de outra forma, as colunas de olho grande e boca pequena cochichando meias verdades a meia voz. 

A fofoca é, a rigor, um subproduto da vida helmíntica, parasitária, de quem se nutre da existência alheia e fica mais feliz com um fracasso alheio do que ficaria com um triunfo próprio. Ninguém está a salvo dela, ninguém tem a certeza de que nunca será sua vítima ou seu praticante.








quarta-feira, 4 de setembro de 2013

3282) Hitchcock e Buñuel (4.9.2013)






Os dois pertencem à mesma geração (Hitch nasceu em 1899, Buñuel em 1900) e o cinema dos dois, apesar das enormes diferenças, tem alguns pontos em comum que vale a pena observar. 

Hitchcock revelou-se na Inglaterra e migrou para Hollywood, onde tornou-se aos 40 anos um dos maiores diretores do seu tempo. 

Buñuel era espanhol, fez cinema de vanguarda na França, trabalhou anonimamente anos a fio nos EUA, virou diretor profissional no México, voltou com mais de 60 anos à Espanha e à França para fazer uma série de obras-primas.

Ambos foram diretores da velha escola, dos roteiros minuciosamente trabalhados, que depois eram executados com rigor. Já vi atribuída a ambos a frase de que o verdadeiro trabalho criador se dá na fase do roteiro, e o resto é mera execução. 

Buñuel muitas vezes filmava apenas um “take” de cada cena (seu assistente chamava a isso “saltar do trapézio sem rede”). Hitchcock acostumou-se a filmar apenas as cenas que queria ver no filme, para evitar interferências dos produtores.

Ambos trabalhavam os atores como elementos da imagem e não tinham muita paciência com atores que queriam saber “as motivações íntimas dos personagens”. Buñuel dirigia quase bocejando. 

São famosas as discussões entre Hitchcock e Paul Newman em Cortina Rasgada. O diretor pedia que ele fosse até a janela, olhasse para fora e fechasse a janela com força. Newman insistia em saber por quê. Hitchcock ficava impaciente e dizia: “Não é da sua conta”. 

Pensavam na composição da imagem. Tratavam o ator como o coronel do sertão, que votava com a cédula dos moradores do sítio e quando um morador perguntou: “Coronel, em quem foi que eu votei?”, ele disse: “Cala a boca, rapaz, o voto é secreto”.

Ambos tinham como fantasia sexual personagens femininas louras, elegantes, aparentemente frias mas capazes de paixões intensas: basta pensar em Kim Novak, Sílvia Piñal, Grace Kelly, Catherine Deneuve, Tippi Hedren... Já vi num saite (que agora não consigo reencontrar) uma comparação magnífica entre as duas “cenas da torre” de El, o Alucinado e de Um corpo que cai. Eram homens fortemente reprimidos e discretos, cujos filmes são uma festa para os psicanalistas.

E gostavam da imagem chocante, inquietante, às vezes inexplicável: uma vaca em cima de uma cama de casal, um cadáver dentro de um monte de batatas, uma agulha de tricô enfiada num buraco de fechadura, um cigarro apagado num ovo frito, um urso à solta numa mansão vazia, uma invasão de pássaros através de uma lareira, uma cabeça humana pendurada num sino, pessoas escalando os rostos gigantescos de um grupo de estátuas, um ataúde deslizando sozinho pelo chão...








terça-feira, 3 de setembro de 2013

3281) VIII Comunicurtas (3.9.2013)




Estive em Campina Grande para participar como jurado da oitava edição do Comunicurtas. É um festival de curta-metragem idealizado e organizado por André da Costa Pinto, com a ajuda de um exército de jovens voluntários que na noite final subiram ao palco para uma foto que, ao que parece, tornou-se de praxe na noite de encerramento. Ao som do Regional de Duduta, dezenas de rapazes e moças riram e acenaram para um Teatro Municipal repleto que os aplaudia.

Na quinta-feira, aconteceu uma reunião do Forum do Audio-Visual da Paraíba, com a presença do Secretário de Cultura, Chico César. Longas (e espero que proveitosas) discussões sobre a necessidade de apoio do Governo a quem faz cinema e vídeo independente no Estado. É a eterna (e necessária) contradição da vida cultural.  De um lado, o fato de que o dinheiro público existe e precisa ser devolvido à população sob a forma de incentivo aberto a todos. Do outro, o fato de que se formos ficar eternamente esperando pelos Governos vamos virar esqueletos de pires na mão à beira do caminho, e que é preciso, sempre, começar a fazer as coisas de graça, sem condições, na base do entusiasmo, senão... nada acontece.

Os filmes e vídeos inscritos mostram imaginação nos roteiros, cuidado na execução, propostas narrativas ousadas. Fotografia e montagem/edição estão num nível muito alto. Não falarei aqui dos filmes premiados; a lista deve ser postada no saite do Festival (http://comunicurtas.com.br/) assim que a galera se recuperar da ressaca. Vivo sempre sonhando com o que Drummond chamou uma vez “o fim sem a injustiça dos prêmios”. Prêmio só tem importância quando a gente ganha. Se a gente não ganhou, é melhor fazer de conta que o prêmio nem existe. Fazer filme pensando em prêmio é perder o foco no filme. Quando o prêmio acontece, ajuda; mas, se não acontece, não devemos permitir que isso atrapalhe.

Nunca vi um momento tão positivo para o cinema de Campina Grande, que reflete e amplia, nestes últimos anos, o bom momento que o cinema da capital vem atravessando há mais tempo. Isto para não falar no pipocar de cineclubes e de produção independente em muitas outras cidades do interior. O que falta é multiplicar as opções de exibição (p. ex.: restauração e reativação de antigos cinemas, com programação variada), os cursos e oficinas, os editais voltados para a produção, os festivais e mostras. Parece que finalmente estamos saindo da época do “cinema espiritual” (filmes imaginários contados em voz alta nas mesas de bar) e entrando na fase mais sofrida (porém mais proveitosa) da produção de filmes de verdade, exibidos para platéias de verdade e produzindo consequências de verdade.


domingo, 1 de setembro de 2013

3280) O Quarto Fechado (1.9.2013)







Neste subgênero do romance policial, o “mistério do quarto fechado”, uma pessoa é encontrada assassinada dentro de um aposento trancado por dentro, produzindo um paradoxo: como o assassino pôde entrar, matar e depois sair? 

O especialista deste tema é John Dickson Carr, que também se assinava Carter Dickson, mas ele está presente na obra de autores como Ellery Queen, Agatha Christie, Conan Doyle, G. K. Chesterton, Edgar Wallace e até Ariano Suassuna.

J. D. Carr tem um capítulo famoso no romance The Three Coffins (1935, também publicado como The Hollow Man) em que o detetive, o dr. Gideon Fell, teoriza diante dos amigos sobre esse problema, com a desculpa metalinguística de que “aquilo onde eles estão não é a realidade, e sim um romance de detetive”.

Eu já tinha feito por minha conta (a versão do Dr. Fell é mais rica e longamente comentada) um resumo das soluções básicas que servem de ponto de partida para as variantes.

1) O assassino saiu do quarto, fechou-o por fora e deu um jeito de repor a chave por dentro. 

2) O assassino após o crime trancou tudo por dentro e fugiu por uma passagem não conhecida (porta secreta, etc.) 

3) Não houve assassinato: a vítima se matou, depois de se trancar, e deixou (voluntariamente ou não) indícios que sugeriam assassinato. 

4) O assassino foi um anão, ou animal, ou criança, e passou por uma pequena abertura onde não caberia uma pessoa normal. 

5) O assassino após o crime deu um jeito de trancar por fora a porta ou janela por onde saiu, dando a impressão de que ela estava trancada por dentro.

6) A vítima foi ferida fora do quarto, fugiu para dentro dele, trancou-se, apavorada, temendo que o assassino a alcançasse, e morreu em seguida.  

7) A vítima estava apenas desacordada, e, quando a porta é arrombada, a primeira pessoa que se aproxima do corpo é o criminoso, que só então a fere mortalmente, enquanto grita aos outros que busquem socorro. 

8) A vítima foi atingida pelo criminoso de fora para dentro do quarto, sem que ele precisasse entrar.

Há dezenas de antologias e estudos a respeito. O gênero se torna ainda mais amplo quando se consideram outros tipos de “crime impossível”: assalto num lugar permanentemente observado por guardas, pessoa morta num chão de neve sem pegadas, objeto que desaparece de um cofre trancado, tudo que pareça contradizer tanto a lógica quanto a física. 

O estudo Locked Room Murders de Robert Adey (1991) registra 2.019 contos e romances, e descreve brevemente o problema e a solução encontrada em cada um.

A primeira história do gênero foi também o primeiro conto moderno de mistério policial: “Os crimes da Rua Morgue” de Edgar Allan Poe (1841).








sábado, 31 de agosto de 2013

3279) Seu Deca (31.8.2013)






Ontem estive me lembrando de Dona Zefinha de Seu Deca. Isso foi num desses lugares pras bandas de Tabira ou de Água Branca. Seu Deca vivia duma aposentadoria, de um gadozinho guardado nas terras dum genro, e de farra. Todo dia vinha almoçar em casa e depois ia freqüentar a rapariga, Fátima, uma moça que tinha uma perna maior do que a outra. Levantava da cama às 4 da tarde, hora do carteado na pracinha, onde se reunia com os amigos para deliberar onde iriam beber naquela noite. Dona Zefinha lavava os pratos e chorava, amaldiçoando Seu Deca e todos os homens do mundo, mas morria de medo dele, e com razão, porque Seu Deca apesar de generoso com o próprio dinheiro e escrupulosamente correto em todo procedimento, como ele mesmo dizia, era um sujeito com sangue no olho e de instinto ruim.

Todo dia era essa a história, o almoço de Dona Zefinha, a sesta com Fátima, e Dona Zefinha carregando essa cruz à vista da rua inteira. Ela confidenciou a Ceiça de Antão Procópio que ainda era nova (estava longe dos quarenta) e que o marido era um homem bom, mas que por ser muito bom tinha se deixado enfeitiçar por quem não prestava. Ela guardava umas economias e comprou roupas novas. Passou a fazer ela mesma o almoço. (Que até então eram obra de Tonela, a mucama que trabalhava com eles desde que era uma adolescente.)

Talvez nunca se saiba o que Seu Deca notou primeiro, se era a mulher que estava mais bonita ou a comida que estava mais farta. Mesmo no entra e sai da sala para a cozinha Dona Zefinha estava sempre com um vestidinho caprichado. E cada dia espalhava sobre a mesa a bandeja farta com dobradinha, mão-de-vaca, tripa torrada, galinha de capoeira, costela, chambaril, pirão. Era ele comendo e ela atochando comida no prato dele. Ela comia limpando a barba, arrotando, controlando o relógio.

Um dia, por fim, Dona Zefinha estava lavando os pratos quando ouviu um alarido na frente de casa, eram uns meninos à janela da sala, falando todos ao mesmo tempo, um deles dizendo “Seu Deca morreu!”, e outro corrigindo, “Morreu, não, está morrendo!” Daí a pouco o trouxeram, duro, morto, desengonçado. Ela cuidou de tudo, participou do enterro, recebeu calada o que os enteados lhe deram na partilha e foi embora para a casa de uma prima que tinha no Cariri. Chorou com sinceridade, porque nos últimos tempos voltara a gostar dele. Mas também foi a última vez na vida em que ela chorou.

Quanto a Fátima, ficou muito tempo impressionada com essa história de um homem ter morrido dentro dela. Mudou-se para Sergipe depois de alguns meses e nunca mais ninguém ali se lembrou dela, mas mora hoje em São Cristóvão, onde tem o apelido de Meio Fio.


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

3278) Histórias de horror (30.8.2013)




O saite BuzzFeed publicou os resultados de um concurso (http://bit.ly/11sZaxp) feito com leitores do Reddit, para escolher as melhores histórias de horror em apenas duas frases. (Se bem que, dependendo da sintaxe adotada, duas frases podem ocupar duas páginas; basta pensar em Proust ou em D. F. Wallace). Como tudo que envolve micronarrativas, não se deve exigir dessas histórias muita coisa em termos de descrição, caracterização de personagens, desenvolvimento, etc. É vapt-vupt. Um pequeno trecho que sugere personagens, ambiente e ação, contando com a colaboração imaginativa do leitor. Aqui vão algumas das vencedoras (sem nenhuma ordem especial).

1) “Você chega em casa, cansado, depois de um dia duro de trabalho. Estende a mão para o interruptor para acender a luz, mas encontra outra mão em cima dele.”

2) “Meu reflexo no espelho piscou para mim”.

3) “Você ouve sua mãe chamando-o, na cozinha. Quando se dirige para a escada ouve um sussurro vindo do armário dizendo: “Não desça, meu filho, eu também ouvi”.

4) “Os médicos disseram ao amputado que ele poderia sentir a presença de um membro fantasma. Mas ninguém o preparou para aquele instante em que ele sentiu sua mão fantasma sendo tocada por dedos muito frios.”

5) “Fui botar meu filhinho para dormir, e ele pediu: Pai, veja se embaixo da cama tem algum monstro. Olhei embaixo da cama, para agradá-lo, e lá estava ele, trêmulo de medo, sussurrando: Pai, tem alguém na minha cama!”

6) “Minha filha não para de chorar e de gritar, a noite inteira. Visito seu túmulo e peço que pare, mas não adianta”.

7) “Depois de um dia duro no trabalho, cheguei em casa e vi minha namorada com nosso bebê nos braços. Não sei o que me deu mais terror, se ver minha namorada morta segurando nosso bebê morto, ou saber que alguém tinha arrombado meu apartamento e colocado os dois ali”.

8) “Cara... pra onde foi aquela aranha?!”

A maioria dessas micro-histórias lida com os temas “família” e “morte”. Um elemento de fragilidade (algo delicado e precioso a ser protegido do Mal) e um elemento de ameaça. Com isto, os autores vão “direto ao nervo”, já que o formato proposto não dá espaço para caracterização de personagens. “Mãe”, “filho”, “namorada”, não são descritos além de sua função. O terror vem com a presença de “duplos”, do prolongamento maligno da vida após a morte, da presença invisível de algo estranho e ameaçador. O curioso é que algumas destas “histórias” já estão em seu tamanho ideal; aumentá-las só faria diluir seu impacto. A micro-história tem sua estética própria, é quase um episódio estático em que o tempo conta pouco. É menos narrativa do que cartum ou fotografia.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

3277) "Phantom Lady" (29.8.2013)




Em algumas histórias de mistério, a grande questão é: Quem matou o milionário? Em outras, a questão é menor, mais modesta e mais grave: Qual o sentido da existência humana?  Um grande ponto de partida para um mistério é quando alguém tem sua vida virada de pernas para o ar, e não consegue convencer ninguém da sua inocência. Um mistério do tipo: “E se um dia algo me acontecesse, e todos os testemunhos em volta dissessem que aquilo não tinha acontecido?” Essa situação básica pode inspirar milhares de variantes. O turista que perde tudo num piscar de olhos em terra perigosa e estranha, p. ex.

Uma variante dessa situação é A Mensagem Misteriosa, ou O Cartão Misterioso. Uma pessoa recebe um cartão em língua desconhecida, e, sempre que pergunta a alguém o que tem ali, tudo que consegue é provocar escândalo, fúria, repulsa... ser vítima de preconceitos, fobias e perseguições... e ninguém lhe explica o que há escrito ali.

Outra variante é O Álibi Fantasma. O Álibi Fantasma consiste na história em que um indivíduo qualquer, para livrar-se de uma acusação, precisa comprovar coisas banais: quem é, o que faz, o que fez, o que lhe ocorreu de anormal. Parece simples... até o dia em que ele precisa de livrar da acusação de um crime e descobre horrorizado que ninguém confirma seu álibi, por variadas razões.

A Dama Fantasma (Phantom Lady, 1942), de William Irish, é um romance onde Scott Henderson, após uma briga com a esposa, sai à noite com uma desconhecida que encontra no bar, leva-a ao restaurante, depois a um show, despede-se sem perguntar seu nome ou seu endereço ... E descobre que alguém matou sua esposa durante a noite, e que seu álibi depende do testemunho dessa mulher, que ele não sabe quem é nem como localizar. 

Tudo é assim. A Dama Fantasma de William Irish (na verdade um pseudônimo de Cornell Woolrich, o autor da história original de Janela Indiscreta de Hitchcock ou A Sereia do Mississipi,  de Truffaut) é uma história clássica de “Ninguém Acredita Em Mim”. Toda a obra de Woolrich/Irish é cheia de armadilhas, identidades suprimidas do dia para a noite, corridas contra o relógio... São pesadelos kafkeanos numa Nova York do pós-guerra, com um senso de clima “noir” inigualável. Seus argumentos parecem aquelas histórias de Philip K. Dick em que o sujeito acorda de manhã e descobre que não existe.

Phantom Lady (filmado por Robert Siodmak em 1944) tem o melodrama sentimental típico de Woolrich, seus heróis quixotescos, seus lances mirabolantes, seu abuso das coincidências, mas esses romances têm um tal clima alucinatório, de pesadelo cósmico, que é mais fácil compará-los a um sonho do que a um livro.