Na infância, Saturnino teve um momento em que, onde
estivesse, agia como uma antena capaz de dissipar tanto a formação de trovoadas
quanto a de discussões. Fazendo uma pergunta a um, interrompendo outros,
pedindo algo a um terceiro. Bastava-lhe isso para controlar a quantidade de luz
que vinha do céu e (uma frase que ele leu uma vez numa revista) “o clamor
furioso dos elementos”. Ou seja, para evitar que festas degenerassem em
confrontos, discussões regredissem a sopapos.
Depois Saturnino teve um período em que desacertou o passo
com o planeta. O emprego que arranjou na oficina gráfica de um jornal (daqui a
pouco vai ser preciso explicar o que é isso) exigia que ele pegasse à
meia-noite e largasse às oito da manhã, com meia hora para almoço. Seu dia
passou a ser assim: acordar, ver o por-do-sol, a noite, a madrugada, o
nascer-do-sol, ir pra casa, sono até o próximo entardecer. Ele fazia cálculos
permanentes, como um turista no estrangeiro convertendo moedas em cada transação
que faz ou que planeja.
Até Picasso teve um período azul, de modo que Saturnino teve
uma fase decadente. Decadentismo sofisticado, carregado de ideologia e de
floreios literários. Experimentou de tudo, riscou cada nome numa lista de
muitas páginas. Encenou bacanais de cem pessoas, num palácio da costa de Dubai.
(Se bem que o decadentismo de Saturnino nunca pisou descalço o asfalto quente
dos fatos: as descrições acima são colhidas nos palavrosos diários que manteve
durante essa época, quando tentou escrever contos em francês.)
Veio por fim uma coisa que ele, anos depois, iria chamar O
Borrão. Uma coisa sem forma, que cada vez que era lembrada era distorcida e
adulterada, e carimbada assim ao ser guardada de novo. O Borrão foi um período
de oito ou dez anos subsequentes ao anterior. “Nada aconteceu”, disse ele
depois numa entrevista, “a não ser que eu fiquei vivo cada minuto desses anos.”
2 comentários:
Saturnino,Marciano,é cada nome!
A morte não era um problema, eu fiquei pensando nisso olhando para uma lâmpada elétrica laranjada iluminando a tenebrosa rua escura: se um terrível menino de treze anos matasse toda família, ou se um terrível grupo de vândalos quebrasse as lojas da cidade, mas a rua estava tão pacata que comecei suspeitar da morte.
E se a morte me devorasse aos poucos, como aqueles insetos dando cabeçadas na lâmpada elétrica: vaga-lumes, mariposas, esperanças. Será que a esperança desconhece o interruptor?
Será que eu falo para esses insetos que não é a lua, é uma lâmpada. Não, não vou fazer isso, pois eu não tenho direito nenhum de estragar a sua fé. E esta luz açucarada sabor laranja por cima desse glacê escuro e engordurado da noite, uma sirene soa. Ufa! Eu não saberia o que fazer se houvesse paz, eu teria obrigação de sair de casa.
E esta luz que me faz ver moscas volantes, essas moscas volantes que agora pousam com seu pequeno corpo no meu braço, eu não reconheço mais o meu braço sob as manchas, as minhas mãos estão tão parecidas com patas de moscas. Merda! Estou virando uma mosca e me alimentarão com lixo.
O pior de tudo vai ser, depois de ter virado mosca, poderei escutar as conversas entre psicanalistas ao meu respeito, dirão que isso tudo foi edipiano, eu tentarei me defender dizendo que nasci em um lar adotivo, mas eles não me escutarão, pois a minha voz vai se confundir com os zumbidos das abelhas. Será que no futuro existirão abelhas?
E se aquela luz se apagar? E se tudo continuar escuro? E se desligarem o interruptor, qual dedo terá sido, será o grande dedo de Deus? Mas se não houver nada. Não importará, pois não existirá planeta terra também, pois não poderemos conceber um mundo sem música, estaremos tão ocupados com o sumiço das abelhas que não cantaremos, ou outra futilidade qualquer, tá bom... talvez A Internacional (socialista) se houver esperança.
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