terça-feira, 20 de novembro de 2012

3035) Prisão perpétua (20.11.2012)



(foto: Tim Gruber)


Ser condenado à prisão perpétua soa como um final feliz, ou pelo menos como um mal menor, um alívio, para um sujeito que, num país como os EUA, esteve perto de ser condenado à morte. Só que prisão perpétua não existe, visto que não existe vida perpétua. Os que recebem esta pena são condenados, na verdade, a um envelhecimento vagaroso, a perder de vista, dentro das paredes de uma prisão. Imagine um sujeito de 35 anos que cometeu um crime e foi condenado à prisão perpétua. Se tem a sorte de ir para uma prisão mediana, há uma boa possibilidade de que ele chegue aos 85 anos. O que acontece, então?

Falei em prisão mediana porque esse problema é mais presente nos EUA do que no Brasil.  Aqui, depois de 30 anos o cara é solto, mesmo que tenha sido condenado a 458 anos, como acontece às vezes pela soma das penas. Se no Brasil houvesse prisão perpétua, não duvido que a maioria seria jogada dentro de um porão, fechavam a porta do alçapão e botavam um arquivo morto em cima.  A próxima pessoa a ver aqueles detentos seriam os arqueólogos de 2300.

Há aqui (http://bit.ly/QRw575) uma matéria arrepiante de James Ridgeway sobre prisioneiros senis em cadeias norte-americanas. O próprio jornalista tem 75 anos e diz que isto facilitou seu acesso aos presos. A reportagem traz histórias de presos com Parkinson ou Alzheimer, sendo cuidados pelos companheiros de cela (banho, asseio, alimentação, etc.) porque ninguém lhes dá atenção. Outros presos idosos, ainda capazes de se locomover sozinhos, sofrem na hora do bandejão ou do banho de sol, porque são escorraçados pelos jovens e nunca conseguem o que precisam.

Em 1981, havia 8 mil prisioneiros com mais de 55 anos nas cadeias dos EUA. Em 2010 eram 125 mil, e em 2030 a projeção é de 400 mil. Isto se deve a uma combinação de sentenças mais pesadas e expectativa de vida (remédios, etc.) maior. Ridgeway argumenta que prisioneiros liberados após os 50 anos só voltam a ser presos em 2% dos casos. Um estudo acompanhou 469 presos por crimes violentos que foram libertados depois de ficarem velhos; nos 13 anos seguintes, apenas 18 voltaram à cadeia, e somente 1 por crime violento. Aliás, o custo de um prisioneiro idoso é de US$ 68 mil por ano, o dobro do que custa um preso jovem.

Estabelecer um limite máximo de encarceramento, como no Brasil, talvez seja simplesmente estar mudando o problema de lugar, mas se existe uma chance razoável de um sujeito, depois de 30 anos de cadeia, voltar a se integrar à sociedade civil, essa chance deve pesar nas escolhas.  Mas isto são problemas de país civilizado. Aqui no Brasil, a Lei joga os criminosos num porão e deixa que a Natureza se encarregue do resto.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

3034) Emmanuelle (18.11.2012)





Faleceu aos 60 anos, em outubro, a atriz Sylvia Kristel, a Emmanuelle dos filmes eróticos mais famosos da década de 1970. Estava envelhecida e cansada após uma luta de dez anos contra o câncer.  A imagem que fica é a da mulher esguia, elegante, frágil, sensualmente passiva, que nos filmes de Just Jaeckin se submetia a lições de erotismo ministradas por um homem mais velho, as quais incluíam ser levada a um antro de ópio e oferecida aos homens de lá.  Emmanuelle fez sucesso reproduzindo a pornografia tradicional numa narrativa não limitada às cenas de sexo, e com um revestimento sofisticado e cosmopolita, para tentar reduzir a vulgaridade e a brutalidade associadas ao gênero, principalmente pelas mulheres.  O conceito de pornografia soft tentava somar dois públicos, o de pessoas ansiosas para ver sexo explícito na tela do cinema e o de pessoas que só admitia ver esses filmes se embalados num celofane chic de paisagens, ambientes ricos, diálogos vagamente existenciais, etc.

O obituário do The Economist lembra que as cenas de sexo de Kristel eram quase sempre em “flou”, diluídas visualmente por cortinados, vapor dágua, etc., e que a mãe da atriz, quando finalmente conseguiu ver o filme que fez a fama da filha, perguntou: “Mas era só isso?”.  O mesmo texto lembra que o filme foi proibido em alguns países: Brasil, Espanha, Japão e o mundo árabe. As várias continuações que o filme teve (inclusive na TV) foram, pelo que me lembro, diluindo em banalidade a proposta inicial.

Um dos grandes problemas da narrativa erótica (romance, cinema, etc.) sempre foi o modo de abordar e conquistar o público feminino. A pornografia tradicional tem por lei ir direto aos finalmentes, ao intercurso sexual nu e cru, sem preliminares, sem preparativos, sem fricotes.  Nos cinemas pornô, se um casal no filme passar um minuto conversando alguém protesta logo: “Bora, rapaz! Quero ver serviço!”  A lógica do espectador é que pagou para ver aquilo que não vê nos outros filmes.  Pra ver gente conversando ele não precisa ir naquele cinema.

Já as mulheres são capazes de aceitar até cenas bastante “hardcore”, desde que haja preliminares, e que o sexo pelo menos pareça associado a um tipo mais amplo de envolvimento, e não se limite à mecânica brutal das genitálias. O sucesso de 50 Tons de Cinza, escrito aliás por uma mulher, é um passo à frente na consolidação de um dos gêneros de mais futuro no mercado: pornografia explícita feita para mulheres, revestida dos álibis necessários e partindo daí para explorar fetichismo, sadomasoquismo e tudo o mais. Emmanuelle paira sobre todas essas alcovas literárias e cinematográficas.


sábado, 17 de novembro de 2012

3033) A família (17.11.2012)





Estou acompanhando, como já falei aqui, a série de TV Breaking Bad, da TV a cabo. Foi criada por Vince Gilligan, um dos responsáveis por Arquivo X, outra das poucas séries que cheguei a acompanhar. “BB” é a história de Walter White, um professor de química que aos 50 anos descobre que está com câncer e talvez tenha um ano de vida.  Walter se apavora, menos por si do que pela família.  A esposa, Skyler, trabalhou como contadora e pensa numa carreira literária; logo ela descobre que está grávida. O filho de 15 anos, Walt Jr., tem uma forma atenuada de paralisia cerebral, e anda com ajuda de muletas. É esperto, entende tudo, mas precisa de cuidados especiais.  O que será da família, quando Walter morrer e deixar de ser o seu provedor?  Walter decide fabricar metanfetamina, que ele (um nerd CDF até não poder mais) consegue fazer com 99% de pureza química. Ele dá um banho na concorrência e em pouco tempo açambarca o mercado do sudoeste dos EUA, perto da fronteira com o México.

Para salvar a família, Walter cria uma escalada de crimes, violência, tráfico, com uma tragédia pessoal se sucedendo a outra.  É uma dessas histórias onde as boas notícias são somente que alguém escapou de uma emboscada ou que um chefão do tráfico fez uma proposta milionária pelos serviços científicos do “químico nota 10”.  Walter e a mulher ficam num separa-volta-separa que não tem fim, e ele sempre dizendo que tudo que faz (ela vem a saber de parte da verdade, lá adiante) é para proteger a família.  E ela uma vez lhe diz: “Pois eu estou aqui para proteger a família desse homem que quer protegê-la”.

Obama, Romney, tantos. Toda campanha norte-americana tem que pedir a bênção no altar de Santa Família, aquilo que Stálin chamava “a célula-mater da sociedade”. Que neste sentido tanto faz ser comunista, capitalista, democrática ou mafiosa.  Brincando com a palavra MÁFIA encontrei o anagrama FAMIA, que só faz sentido no Nordeste. A família é um grupo a quem você deve uma fidelidade religiosa, robótica, inquestionável. Obama disse no discurso de vitória, referindo-se à população: “Nós somos uma família americana, e nos ergueremos juntos ou tombaremos juntos, como uma só nação ou uma só pessoa”. 

Para salvar sua família, Walter White é capaz de crimes arrepiantes, ainda mais quando, às vezes, se baseiam apenas numa omissão mais maquiavélica do que qualquer ação. Sua família é mantida sólida e aparentemente feliz às custas da destruição da família ou da pessoa física de quem quer que se atravesse na sua frente.  O rosto careca de Walter e seu cavanhaque mefistofélico parecem estar dizendo a quem se atravessa na sua frente: “This is America”.



sexta-feira, 16 de novembro de 2012

3032) Luiz Wanderley (16.11.2012)





Seguindo uma dica de Gerdal José de Paula, incansável pesquisador da MPB, relembrei as canções de Luiz Wanderley (1931-1993), um dos forrozeiros que fizeram sucesso na minha infância e adolescência, e depois foram esquecidos (inclusive por mim). Wanderley era alagoano, e quem não ligou o nome à pessoa deve lembrar de um dos maiores sucessos dele, principalmente na voz de Tim Maia: “Coroné Antonio Bento” (com João do Vale). O link fornecid0 por Gerdal (http://bit.ly/XBLGhF) é da gravação original da música, em que a noiva se chama Mariá (e não Juliana), e há mais uma estrofe, que Tim Maia não cantou: “Meia-noite o Bené se enfezou/e tocou um tal de rock and roll /os matutos caíram no salão/não quiseram mais xote nem baião/e que briga se falasse em xaxado/foi aí que eu vi que no sertão/também tem uns matutos transviados."

LW fazia parte da linha litorânea e coquista da música nordestina; era mais Jackson do que Gonzagão. Suas cantigas têm ritmo seguro e marcado, versos de embolada, breques bem quebrados, melodia ágil e variada que sua voz segura e melódica valoriza.  “Saudade de Leopoldina”, “Ai que vontade de comer goiaba”, “Bode cheiroso”, “Coco do Gogó da Ema”, “Baiano burro nasce morto” (“O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto / baiano burro garanto que nasce morto”. Esta última canção serviu de modelo para “Mineiro sabido” (1960); este clip de chanchada dá uma idéia do jeito mungangueiro de Wanderley (http://bit.ly/UEOrs7).

Os anos 1960 viram a pororoca gigantesca entre o baião, que predominava em nossas rádios, e a invasão do rock norte-americano. Uma canção como “Rock do Sedaka” (que atribui a invenção do rock a Neil Sedaka!) é uma sátira divertida dessa época (como já era “Coroné Antonio Bento”), inclusive com piadas para “Elvis Prego” (http://bit.ly/W5EkOj). Veja-se também “Carolina”, talvez uma resposta brasileira ao “Corrina, Corrina” que Ray Peterson tornou famosa em 1960 (http://bit.ly/QEcU55). 

Grande parte do parentesco melódico entre o rock e a música nordestina (coco, baião) veio dessa época em que as duas se misturaram no mercado fonográfico e radiofônico do Rio, atacado ao mesmo tempo, em dois flancos desguarnecidos, pelo Nordeste e pelos EUA. Raul Seixas, Alceu Valença, etc. insistem nessa identidade profunda entre as duas. Sinal de que os ritmos populares, rurais, do interior profundo, foram desviados rumo à partitura e ao acetato, pela guitarra, lá, e pela sanfona aqui. Transformados em música urbana, música cantada nas capitais e repercutida em tempo real para os sertões de lá e de cá, são agora a síntese entre a força milenar do interior e a energia moderníssima da cidade.


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

3031) Vamos salvar a Grécia (15.11.2012)




(O Desprezo, de Godard)


Numa entrevista que deu este ano à imprensa, Jean-Luc Godard sugeriu uma solução pouco ortodoxa para a crise econômica da Grécia. Como se sabe, a Grécia entrou para a União Européia como aquelas enormes famílias suburbanas que mal arranjam um dinheirinho vão morar num condomínio de luxo. Eles descobrem que viver num condomínio de luxo é muito bom para os que desfrutam do luxo, mas nem tanto assim para os que pagam o condomínio. A Grécia tem certamente uma elitezinha, uns “aristos” que multiplicaram por dez suas posses e suas contas na Suíça, mas o povo grego está pagando caro pelo sonho de ser rico.

Godard tem uma solução. Ele nos lembra que os gregos nos deram a filosofia, a lógica, o encadeamento conseqüencial de raciocínios e argumentos, e que tudo isto está cristalizado na palavra “logo”, como a usamos em “penso, logo existo”. Esta palavrinha nos permite conectar conclusões do pensamento. E Godard sugere que comecemos a pagar direitos autorais por ela, já que é uma criação do pensamento grego. Vivemos numa sociedade em que é preciso pagar cada vez que utilizamos as palavras ou as idéias de alguém. Então, comecemos pelo começo de tudo – a Grécia Antiga!

Diz Godard: "Se formos obrigados a pagar dez euros à Grécia cada vez que usarmos a palavra 'logo', a crise acabará em um dia, e os gregos não precisarão vender o Partenon aos alemães. Temos no Google a tecnologia para rastrear todos esses 'logos'. Podemos até cobrar das pessoas pelo iPhone. A cada vez que Angela Merkel disser aos gregos 'nós emprestamos todo esse dinheiro a vocês, logo vocês precisam nos pagar de volta com juros', ela será obrigada, logo, a pagar primeiro aos gregos pelos royalties."

Godard é cruel com os algozes e com as vítimas. Ou melhor: ele mostra o quanto este mundo fraturado pelo dinheiro é cruel com ambos. A Alemanha se julga um Monte Olimpo de estabilidade e conforto, e se irrita com a presença física dos migrantes ou com a presença econômica das nações amigas, de pires na mão, pedindo ajuda. Pois é... Por que tanta coisa na nossa civilização é compartilhada gratuitamente, mas em alguns domínios é preciso pagar, pagar, pagar?  E nós, que cultivamos uma coisa metade profissão metade paixão, temos que dizer a toda hora, a todo mundo: Você vai ter que pagar pelos meus livros, meus filmes, minhas canções. Vai ter que pagar pelas minhas idéias, opiniões, críticas, conselhos. Vai pagar pelas minhas perguntas e pelas minhas respostas. Vai pagar pela minha conversa, pela minha companhia, pela minha presença. Vai ter que pagar pelo abraço, pelo beijo, pelo sexo, pelo olhar. Vai pagar assim tão caro, somente pra me ouvir e ver?



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

3030) O verso indelével (14.11.2012)





A religião diz que a alma é uma essência capaz de se anexar a um corpo material e manifestar-se através dele. Isto pode não ser verdade no campo metafísico, mas é mais ou menos o que acontece no campo literário, em níveis sucessivos de complexidade. Veja-se por exemplo o caso de uma obra literária. Ela consiste em um texto, que é a alma, e que pode se traduzir nos “corpos” mais diferentes: um livrinho de bolso, uma edição de luxo, um arquivo PDF guardado num pendraive, um arquivo “.doc” gravado num CD, um folheto de cordel, um disco de vinil com o texto lido em voz alta.  Cada uma destas instâncias físicas é radicalmente diferente das outras, mas todas são capazes de reproduzir, por meios distintos, o objeto linguístico a que chamamos de texto literário (e que pode ser um poema, um conto, um romance, etc.).

Isso não se deve à arte literária em si, e si a algo muito mais básico, a própria estrutura da linguagem. A linguagem consiste em alma e corpo, ou seja, espírito e matéria, ou seja, idéia e palavra.  Nós usamos a palavra “livro”, os ingleses “book”, os franceses “livre”, e assim por diante; e todos esses conjuntos de fonemas falados ou de sinais escritos remetem à mesma idéia abstrata. É incrível que esses sinais consigam evocar em cada pessoa uma idéia equivalente. Acho que só ocorre porque há poucas coisas que a gente pratique tanto quanto a linguagem. Mas... todos concordamos sobre o significado de livro, mesa, garfo, TV, parede; mas quando começamos a discutir palavras mais abstratas (democracia, liberdade, amor, etc.) é que vemos o quanto esses termos são meras convenções, e como às vezes usamos a mesma palavra mas estamos pensando em coisas muito diferentes.

Dias atrás escrevi aqui sobre a permanência da enunciação poética num verso escrito por Drummond, por exemplo. Dias depois, no tablóide literário curitibano Cândido, vi um poema de Alexei Bueno também dedicado ao poeta de Boitempo, onde ele diz: “Mas não, quanta mentira... O que houve um dia / nada o pode anular, nada esvazia / a fôrma do poema, quando o poeta / deixa-a, médium de si, clara e repleta”. 

É a descrição exata do fenômeno linguístico, e do poético, por extensão. O verso escrito é “médium de si” no sentido kardecista do termo. Ele recebe uma alma, e a alma que recebe é a dele mesmo. Enquanto não são lidos, aqueles sinais de tinta na página são um verso morto, sem sentido. O sentido só acontece quando ele é lido. O texto escrito é médium de si mesmo, é mídia de si mesmo, é código de si mesmo, sempre pronto para mais uma reiteração do pequeno milagre eletroquímico que se dá no cérebro quando a gente lê um verso.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

3029) "Operação Skyfall" (13.11.2012)





O novo filme de James Bond, dirigido por Sam Mendes, lembra aqueles sanduíches do Subway, que a gente ajuda a preparar.  Há milhões de combinações possíveis, mas todo sanduíche que eu como é parecido com os anteriores, não importa o quanto eu faça variar os ingredientes. Franquias pop são feitas para funcionar desse jeito, e se algum espectador criticar James Bond por ser assim é o mesmo que criticar um baile de carnaval porque tem muita gente pulando.

Daniel Craig trouxe ao personagem de 007 um realismo rude que estava ausente de espiões charmosos como Sean Connery e Pierce Brosnan. Craig tem físico de estivador, cara de caminhoneiro e fôlego de volante do Chelsea.  É um ator com quem (penso eu) muitos ingleses de origem popular se identificam mais do que com os playboys dos filmes anteriores.  Com ele Bond fica mais realista e menos HQ, e neste filme temos (acho que pela primeira vez na série) revelações sobre sua infância, seus pais, a casa em que foi criado (e onde acontece o clímax devastador do filme).  Como em outros filmes recentes sobre heróis pop (Batman, X-Men, etc.) o mito está se perpetuando através de camadas de realismo psicológico e verossimilhança social. 

O roteiro tem as previsíveis perseguições, infiltrações, etc.  Javier Bardem faz um excelente vilão: blasé, traumatizado, melífluo, insensível, meio infantil... Cada cena sua, cada plano, traz uma expressão facial ou uma inflexão de voz que soma outra característica ao personagem.  O bom vilão é aquele de quem podemos esperar qualquer coisa.  Há duas Bond-girls apenas (a morena Naomie Harris, a asiática Bérénice Lim Marlohe) previsivelmente lindas e perigosas. (Não sei se é minha memória que está alterando as coisas, mas este é um dos filmes mais castos de 007, com uma única, breve e elíptica cena de sexo.) Uma novidade interessante é que Q, o tecno-gênio responsável pelos gadgets de Bond, agora é Ben Wishaw, um geniozinho informático.

O filme é repleto de detalhes que já não sei mais se são citações, homenagens, ou simplesmente o sintoma de “pega aquele troço ali naquela prateleira”. A perseguição de carros numa feira livre é igual a todas as perseguições de carros numa feira livre. O vilão é encerrado numa campânula igualzinha à de Hannibal Lecter.  A descida-aos-infernos inicial é puro Batman. O atentado durante a sessão ministerial é puro “Sherlock Holmes” (a versão Robert Downey). A melhor sequência talvez seja a da ilha abandonada, cheia de prédios em ruínas, onde o vilão instala seu quartel-general, uma metáfora visual rica e não-forçada do que é viver num mundo onde quem manda é um vilão de filme de espionagem.


domingo, 11 de novembro de 2012

3028) Os direitos de Faulkner (11.11.2012)



(William Faulkner)


A Sony Pictures está sofrendo um processo por parte dos herdeiros de William Faulkner por causa de uma frase do autor que aparece no filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen.  A frase é a famosa “The past is not dead. It’s not even past” (“O passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou”.) Quando vi essa notícia, gelei, porque eu mesmo já devo ter citado essa frase mais vezes do que Woody Allen. Toda vez que o porteiro me entrega a correspondência, o primeiro envelope que procuro é o da intimação judicial. 

O texto enviado à Sony reclama que a produtora não pediu autorização para citar esta frase, e diz: “O uso desta citação irregular e do nome de William Faulkner nesse filme tende a causar confusões, a causar equívocos, e/ou enganar os espectadores do filme infrator levando-os a supor uma afiliação, conexão ou associação entre William Faulkner e sua obra, de um lado, e a Sony, do outro”. Isto equivale, grosso modo, àquelas cenas em que um pirralho pega o trenzinho do outro para brincar, e o outro imediatamente arrebata de volta o trenzinho e o desce com força na testa do provocador.

Fiquei mais tranquilo quando vi que o filme arrecadou 94 milhões de dólares. O que recebo no Jornal da Paraíba não chega nem à metade disso, de modo que eles provavelmente irão concentrar seus esforços em cima do pobre Woody.  Isto me lembra o episódio de um álbum de fotografias que foi embargado aqui no Brasil pelos herdeiros de Manuel Bandeira, que se queixavam de não ter recebido nem um tostão pelo fato do poeta aparecer em uma das centenas de fotos que havia no álbum.

Se isso é “direito autoral”, amigos, a minha vontade, a cada ano que passa, é arranjar um emprego burocrático (sou bom datilógrafo!) e liberar tudo que escrevi até hoje, desde que seja para uso não-comercial. Qualquer um pode gravar minhas músicas ou imprimir meus textos, desde que ninguém ganhe dinheiro com isso. Direitos autorais são uma coisa muito justa quando exprimem a remuneração de um autor pelo seu trabalho intelectual e físico (sim, escrever envolve esforço físico), e ajudam a pagar suas despesas. Faulkner ganhou o bastante, em vida, para beber tudo a que tinha direito. As frases que escreveu se impregnaram na nossa linguagem diária (até na minha, imagine só, eu que nunca li um só livro dele). A presença da frase de Faulkner não influiu na bilheteria do filme de Allen, que com frase ou sem frase seria exatamente a mesma. Agora... 94 milhões são 94 milhões, né? Acho que vou ver o filme de novo, e vou entrar com um processo se Owen Wilson disser “eu vi o céu à meia noite se avermelhando num clarão”.

sábado, 10 de novembro de 2012

3027) Escrita em grupo (10.11.2012)






Nosso conceito de arte literária é muito impregnado de individualismo. Um livro é a visão pessoal, intransferível, única, daquele autor sobre o mundo.  Se a premissa é esta, qualquer terceirização de esforços pode distorcer, contaminar ou diluir essa visão, introduzindo um ruído indesejável. 

É como ir ver uma conferência de um cientista e vê-lo delegar a seus alunos e monitores uma boa parte dela.

Na literatura de massas, contudo, o Livro é o centro, não o Autor. 

O livro tem que corresponder a uma fórmula ou série de fórmulas (policial, terror, romântico, aventura, espionagem, etc.), e se a fórmula é criativamente revivida pouco importa se o foi por um único autor  ou por uma equipe. 

Um autor dedicado, intenso, pode formar colaboradores sintonizados com suas idéias e seu modo de escrever, e pode supervisionar seu trabalho, sem dúvida, gerando livros não muito diferentes dos que ele teria escrito sozinho se tivesse tempo para tanto.

Quando falamos em obras de arte criadas em equipe, sempre é citado o caso das pinturas de Michelangelo, que ele criava com o auxílio de seus aprendizes. Ele concebia a obra, fazia o esboço geral das figuras (estou especulando – nunca li sobre seu método de trabalho), escolhia as cores, etc. E, o mais importante: se ele via algo que não gostava, ia lá pessoalmente e pintava por cima. 

A pintura possibilita isso. Há quadros famosos por aí com incontáveis camadas de tintas superpostas. Na pintura, o que é cortado não é propriamente cortado, é recoberto.

Mas não me consta (se estou errado, me corrijam) que Michelangelo fizesse esculturas trabalhando coletivamente. As esculturas eram produto dele mesmo. Por que? Porque (acho) se numa escultura um aprendiz desajeitado tira mais pedra do que devia não há como colocar a pedra de volta. Numa escultura, cada pancada do cinzel é definitiva. Escultura (ao contrário da pintura e do livro) não tem Ctrl+Z.

No caso da literatura (e, mais recentemente, do roteiro de cinema, da telenovela ou da série de TV), todo trabalho delegado a alguém tem dois VV, vai e volta.  

O autor diz: “Agora você escreve a cena do assalto ao banco. Eles entram, fazem o roubo, trocam tiros, Fulano é morto, Sicrano é ferido e os outros fogem com a grana”. 

O redator  cria a mecânica da ação, os diálogos, os pequenos detalhes, a amarração toda. 

E o autor corrige: “Essa troca de frases é desnecessária... esse tiro em Sicrano é melhor que pegue na perna, não no ombro... não gostei de matarem o segurança, basta desacordar...” e assim por diante. 

Anotem: qualquer criação coletiva pode ser autoral desde que tudo comece e termine pelas mãos do autor.







sexta-feira, 9 de novembro de 2012

3026) Obama (9.11.2012)




Fiquei acordado até as 5 da manhã (o que para mim, admito, não custa muito esforço) até assistir o discurso da vitória de Barack Obama na eleição dos EUA.  E fiquei lembrando de quando fiz a mesma coisa, em 2008. Quatro anos atrás. Era outro mundo. Mudou o mundo, mudei eu, mudou o Natal, mudou Machado de Assis, mudou o rio de Heráclito, mudou Barack Obama, que havia prometido aos norte-americanos “esperança e mudança”. A mudança que houve talvez não tenha sido a desejada, mas as urnas mostraram que a esperança continua. Foi uma escolha entre a insatisfação e a catástrofe. Romney é o representante de uma geração que não liga para o risco de destruir o mundo, contanto que eles continuem bilionários (talvez a última geração de bilionários a existir no planeta).

O destino do mundo depende em grande parte dos EUA e das suas decisões internas, principalmente sobre economia e sobre a questão ambiental. Se Obama não está correspondendo, Romney seria muito pior. Nem falo de outras questões, também importantes para qualquer país: migração, direitos civis, projetos de saúde, desemprego, drogas, violência, aborto, recessão econômica... O mundo tem dois problemas de vida-ou-morte hoje em dia.  O primeiro: nas próximas décadas, pode haver uma crise econômica capaz de zerar a fantasia financeira em que vivemos todos nós. O segundo: pode haver alguma catástrofe ambiental gigantesca, específica, dentro da destruição geral que já está em marcha. Estas duas questões são as mais importantes para o mundo. Obama não nos garante a salvação, mas o partido de Romney iria trabalhar (cegamente, egoisticamente) para piorar ainda mais as coisas.

Thomas Friedman, do NY Times, escreveu que o Partido Republicano estava visivelmente fazendo de tudo para que o governo Obama fracassasse, “para, então, dar o bote e catar os cacos”.  É a atitude que se pode esperar de uma elite de bilionários, milionários (e aspirantes a ambos), para a qual não importa se centenas de milhões de pessoas vão despencar na miséria, desde que eles continuem onde estão. Os problemas dos EUA (ou do Brasil, ou do mundo) não se resumem a isto, mas isto está na raiz de no mínimo metade dos demais problemas. Friedman disse que a vitória de Obama foi devastadora para os republicanos: “um país com quase 8% de desemprego preferiu dar ao presidente uma segunda chance do que dar a Mitt Romney a primeira”. Este resultado de Obama (uma vantagem de menos de 3 milhões de votos) pode significar uma pequena mas decisiva vitória da esperança, um sinal de que os EUA estão se tornando menos elitistas, menos racistas, menos suicidas.