sexta-feira, 16 de novembro de 2012

3032) Luiz Wanderley (16.11.2012)





Seguindo uma dica de Gerdal José de Paula, incansável pesquisador da MPB, relembrei as canções de Luiz Wanderley (1931-1993), um dos forrozeiros que fizeram sucesso na minha infância e adolescência, e depois foram esquecidos (inclusive por mim). Wanderley era alagoano, e quem não ligou o nome à pessoa deve lembrar de um dos maiores sucessos dele, principalmente na voz de Tim Maia: “Coroné Antonio Bento” (com João do Vale). O link fornecid0 por Gerdal (http://bit.ly/XBLGhF) é da gravação original da música, em que a noiva se chama Mariá (e não Juliana), e há mais uma estrofe, que Tim Maia não cantou: “Meia-noite o Bené se enfezou/e tocou um tal de rock and roll /os matutos caíram no salão/não quiseram mais xote nem baião/e que briga se falasse em xaxado/foi aí que eu vi que no sertão/também tem uns matutos transviados."

LW fazia parte da linha litorânea e coquista da música nordestina; era mais Jackson do que Gonzagão. Suas cantigas têm ritmo seguro e marcado, versos de embolada, breques bem quebrados, melodia ágil e variada que sua voz segura e melódica valoriza.  “Saudade de Leopoldina”, “Ai que vontade de comer goiaba”, “Bode cheiroso”, “Coco do Gogó da Ema”, “Baiano burro nasce morto” (“O pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto / baiano burro garanto que nasce morto”. Esta última canção serviu de modelo para “Mineiro sabido” (1960); este clip de chanchada dá uma idéia do jeito mungangueiro de Wanderley (http://bit.ly/UEOrs7).

Os anos 1960 viram a pororoca gigantesca entre o baião, que predominava em nossas rádios, e a invasão do rock norte-americano. Uma canção como “Rock do Sedaka” (que atribui a invenção do rock a Neil Sedaka!) é uma sátira divertida dessa época (como já era “Coroné Antonio Bento”), inclusive com piadas para “Elvis Prego” (http://bit.ly/W5EkOj). Veja-se também “Carolina”, talvez uma resposta brasileira ao “Corrina, Corrina” que Ray Peterson tornou famosa em 1960 (http://bit.ly/QEcU55). 

Grande parte do parentesco melódico entre o rock e a música nordestina (coco, baião) veio dessa época em que as duas se misturaram no mercado fonográfico e radiofônico do Rio, atacado ao mesmo tempo, em dois flancos desguarnecidos, pelo Nordeste e pelos EUA. Raul Seixas, Alceu Valença, etc. insistem nessa identidade profunda entre as duas. Sinal de que os ritmos populares, rurais, do interior profundo, foram desviados rumo à partitura e ao acetato, pela guitarra, lá, e pela sanfona aqui. Transformados em música urbana, música cantada nas capitais e repercutida em tempo real para os sertões de lá e de cá, são agora a síntese entre a força milenar do interior e a energia moderníssima da cidade.


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

3031) Vamos salvar a Grécia (15.11.2012)




(O Desprezo, de Godard)


Numa entrevista que deu este ano à imprensa, Jean-Luc Godard sugeriu uma solução pouco ortodoxa para a crise econômica da Grécia. Como se sabe, a Grécia entrou para a União Européia como aquelas enormes famílias suburbanas que mal arranjam um dinheirinho vão morar num condomínio de luxo. Eles descobrem que viver num condomínio de luxo é muito bom para os que desfrutam do luxo, mas nem tanto assim para os que pagam o condomínio. A Grécia tem certamente uma elitezinha, uns “aristos” que multiplicaram por dez suas posses e suas contas na Suíça, mas o povo grego está pagando caro pelo sonho de ser rico.

Godard tem uma solução. Ele nos lembra que os gregos nos deram a filosofia, a lógica, o encadeamento conseqüencial de raciocínios e argumentos, e que tudo isto está cristalizado na palavra “logo”, como a usamos em “penso, logo existo”. Esta palavrinha nos permite conectar conclusões do pensamento. E Godard sugere que comecemos a pagar direitos autorais por ela, já que é uma criação do pensamento grego. Vivemos numa sociedade em que é preciso pagar cada vez que utilizamos as palavras ou as idéias de alguém. Então, comecemos pelo começo de tudo – a Grécia Antiga!

Diz Godard: "Se formos obrigados a pagar dez euros à Grécia cada vez que usarmos a palavra 'logo', a crise acabará em um dia, e os gregos não precisarão vender o Partenon aos alemães. Temos no Google a tecnologia para rastrear todos esses 'logos'. Podemos até cobrar das pessoas pelo iPhone. A cada vez que Angela Merkel disser aos gregos 'nós emprestamos todo esse dinheiro a vocês, logo vocês precisam nos pagar de volta com juros', ela será obrigada, logo, a pagar primeiro aos gregos pelos royalties."

Godard é cruel com os algozes e com as vítimas. Ou melhor: ele mostra o quanto este mundo fraturado pelo dinheiro é cruel com ambos. A Alemanha se julga um Monte Olimpo de estabilidade e conforto, e se irrita com a presença física dos migrantes ou com a presença econômica das nações amigas, de pires na mão, pedindo ajuda. Pois é... Por que tanta coisa na nossa civilização é compartilhada gratuitamente, mas em alguns domínios é preciso pagar, pagar, pagar?  E nós, que cultivamos uma coisa metade profissão metade paixão, temos que dizer a toda hora, a todo mundo: Você vai ter que pagar pelos meus livros, meus filmes, minhas canções. Vai ter que pagar pelas minhas idéias, opiniões, críticas, conselhos. Vai pagar pelas minhas perguntas e pelas minhas respostas. Vai pagar pela minha conversa, pela minha companhia, pela minha presença. Vai ter que pagar pelo abraço, pelo beijo, pelo sexo, pelo olhar. Vai pagar assim tão caro, somente pra me ouvir e ver?



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

3030) O verso indelével (14.11.2012)





A religião diz que a alma é uma essência capaz de se anexar a um corpo material e manifestar-se através dele. Isto pode não ser verdade no campo metafísico, mas é mais ou menos o que acontece no campo literário, em níveis sucessivos de complexidade. Veja-se por exemplo o caso de uma obra literária. Ela consiste em um texto, que é a alma, e que pode se traduzir nos “corpos” mais diferentes: um livrinho de bolso, uma edição de luxo, um arquivo PDF guardado num pendraive, um arquivo “.doc” gravado num CD, um folheto de cordel, um disco de vinil com o texto lido em voz alta.  Cada uma destas instâncias físicas é radicalmente diferente das outras, mas todas são capazes de reproduzir, por meios distintos, o objeto linguístico a que chamamos de texto literário (e que pode ser um poema, um conto, um romance, etc.).

Isso não se deve à arte literária em si, e si a algo muito mais básico, a própria estrutura da linguagem. A linguagem consiste em alma e corpo, ou seja, espírito e matéria, ou seja, idéia e palavra.  Nós usamos a palavra “livro”, os ingleses “book”, os franceses “livre”, e assim por diante; e todos esses conjuntos de fonemas falados ou de sinais escritos remetem à mesma idéia abstrata. É incrível que esses sinais consigam evocar em cada pessoa uma idéia equivalente. Acho que só ocorre porque há poucas coisas que a gente pratique tanto quanto a linguagem. Mas... todos concordamos sobre o significado de livro, mesa, garfo, TV, parede; mas quando começamos a discutir palavras mais abstratas (democracia, liberdade, amor, etc.) é que vemos o quanto esses termos são meras convenções, e como às vezes usamos a mesma palavra mas estamos pensando em coisas muito diferentes.

Dias atrás escrevi aqui sobre a permanência da enunciação poética num verso escrito por Drummond, por exemplo. Dias depois, no tablóide literário curitibano Cândido, vi um poema de Alexei Bueno também dedicado ao poeta de Boitempo, onde ele diz: “Mas não, quanta mentira... O que houve um dia / nada o pode anular, nada esvazia / a fôrma do poema, quando o poeta / deixa-a, médium de si, clara e repleta”. 

É a descrição exata do fenômeno linguístico, e do poético, por extensão. O verso escrito é “médium de si” no sentido kardecista do termo. Ele recebe uma alma, e a alma que recebe é a dele mesmo. Enquanto não são lidos, aqueles sinais de tinta na página são um verso morto, sem sentido. O sentido só acontece quando ele é lido. O texto escrito é médium de si mesmo, é mídia de si mesmo, é código de si mesmo, sempre pronto para mais uma reiteração do pequeno milagre eletroquímico que se dá no cérebro quando a gente lê um verso.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

3029) "Operação Skyfall" (13.11.2012)





O novo filme de James Bond, dirigido por Sam Mendes, lembra aqueles sanduíches do Subway, que a gente ajuda a preparar.  Há milhões de combinações possíveis, mas todo sanduíche que eu como é parecido com os anteriores, não importa o quanto eu faça variar os ingredientes. Franquias pop são feitas para funcionar desse jeito, e se algum espectador criticar James Bond por ser assim é o mesmo que criticar um baile de carnaval porque tem muita gente pulando.

Daniel Craig trouxe ao personagem de 007 um realismo rude que estava ausente de espiões charmosos como Sean Connery e Pierce Brosnan. Craig tem físico de estivador, cara de caminhoneiro e fôlego de volante do Chelsea.  É um ator com quem (penso eu) muitos ingleses de origem popular se identificam mais do que com os playboys dos filmes anteriores.  Com ele Bond fica mais realista e menos HQ, e neste filme temos (acho que pela primeira vez na série) revelações sobre sua infância, seus pais, a casa em que foi criado (e onde acontece o clímax devastador do filme).  Como em outros filmes recentes sobre heróis pop (Batman, X-Men, etc.) o mito está se perpetuando através de camadas de realismo psicológico e verossimilhança social. 

O roteiro tem as previsíveis perseguições, infiltrações, etc.  Javier Bardem faz um excelente vilão: blasé, traumatizado, melífluo, insensível, meio infantil... Cada cena sua, cada plano, traz uma expressão facial ou uma inflexão de voz que soma outra característica ao personagem.  O bom vilão é aquele de quem podemos esperar qualquer coisa.  Há duas Bond-girls apenas (a morena Naomie Harris, a asiática Bérénice Lim Marlohe) previsivelmente lindas e perigosas. (Não sei se é minha memória que está alterando as coisas, mas este é um dos filmes mais castos de 007, com uma única, breve e elíptica cena de sexo.) Uma novidade interessante é que Q, o tecno-gênio responsável pelos gadgets de Bond, agora é Ben Wishaw, um geniozinho informático.

O filme é repleto de detalhes que já não sei mais se são citações, homenagens, ou simplesmente o sintoma de “pega aquele troço ali naquela prateleira”. A perseguição de carros numa feira livre é igual a todas as perseguições de carros numa feira livre. O vilão é encerrado numa campânula igualzinha à de Hannibal Lecter.  A descida-aos-infernos inicial é puro Batman. O atentado durante a sessão ministerial é puro “Sherlock Holmes” (a versão Robert Downey). A melhor sequência talvez seja a da ilha abandonada, cheia de prédios em ruínas, onde o vilão instala seu quartel-general, uma metáfora visual rica e não-forçada do que é viver num mundo onde quem manda é um vilão de filme de espionagem.


domingo, 11 de novembro de 2012

3028) Os direitos de Faulkner (11.11.2012)



(William Faulkner)


A Sony Pictures está sofrendo um processo por parte dos herdeiros de William Faulkner por causa de uma frase do autor que aparece no filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen.  A frase é a famosa “The past is not dead. It’s not even past” (“O passado não morreu. Na verdade, ele nem sequer passou”.) Quando vi essa notícia, gelei, porque eu mesmo já devo ter citado essa frase mais vezes do que Woody Allen. Toda vez que o porteiro me entrega a correspondência, o primeiro envelope que procuro é o da intimação judicial. 

O texto enviado à Sony reclama que a produtora não pediu autorização para citar esta frase, e diz: “O uso desta citação irregular e do nome de William Faulkner nesse filme tende a causar confusões, a causar equívocos, e/ou enganar os espectadores do filme infrator levando-os a supor uma afiliação, conexão ou associação entre William Faulkner e sua obra, de um lado, e a Sony, do outro”. Isto equivale, grosso modo, àquelas cenas em que um pirralho pega o trenzinho do outro para brincar, e o outro imediatamente arrebata de volta o trenzinho e o desce com força na testa do provocador.

Fiquei mais tranquilo quando vi que o filme arrecadou 94 milhões de dólares. O que recebo no Jornal da Paraíba não chega nem à metade disso, de modo que eles provavelmente irão concentrar seus esforços em cima do pobre Woody.  Isto me lembra o episódio de um álbum de fotografias que foi embargado aqui no Brasil pelos herdeiros de Manuel Bandeira, que se queixavam de não ter recebido nem um tostão pelo fato do poeta aparecer em uma das centenas de fotos que havia no álbum.

Se isso é “direito autoral”, amigos, a minha vontade, a cada ano que passa, é arranjar um emprego burocrático (sou bom datilógrafo!) e liberar tudo que escrevi até hoje, desde que seja para uso não-comercial. Qualquer um pode gravar minhas músicas ou imprimir meus textos, desde que ninguém ganhe dinheiro com isso. Direitos autorais são uma coisa muito justa quando exprimem a remuneração de um autor pelo seu trabalho intelectual e físico (sim, escrever envolve esforço físico), e ajudam a pagar suas despesas. Faulkner ganhou o bastante, em vida, para beber tudo a que tinha direito. As frases que escreveu se impregnaram na nossa linguagem diária (até na minha, imagine só, eu que nunca li um só livro dele). A presença da frase de Faulkner não influiu na bilheteria do filme de Allen, que com frase ou sem frase seria exatamente a mesma. Agora... 94 milhões são 94 milhões, né? Acho que vou ver o filme de novo, e vou entrar com um processo se Owen Wilson disser “eu vi o céu à meia noite se avermelhando num clarão”.

sábado, 10 de novembro de 2012

3027) Escrita em grupo (10.11.2012)






Nosso conceito de arte literária é muito impregnado de individualismo. Um livro é a visão pessoal, intransferível, única, daquele autor sobre o mundo.  Se a premissa é esta, qualquer terceirização de esforços pode distorcer, contaminar ou diluir essa visão, introduzindo um ruído indesejável. 

É como ir ver uma conferência de um cientista e vê-lo delegar a seus alunos e monitores uma boa parte dela.

Na literatura de massas, contudo, o Livro é o centro, não o Autor. 

O livro tem que corresponder a uma fórmula ou série de fórmulas (policial, terror, romântico, aventura, espionagem, etc.), e se a fórmula é criativamente revivida pouco importa se o foi por um único autor  ou por uma equipe. 

Um autor dedicado, intenso, pode formar colaboradores sintonizados com suas idéias e seu modo de escrever, e pode supervisionar seu trabalho, sem dúvida, gerando livros não muito diferentes dos que ele teria escrito sozinho se tivesse tempo para tanto.

Quando falamos em obras de arte criadas em equipe, sempre é citado o caso das pinturas de Michelangelo, que ele criava com o auxílio de seus aprendizes. Ele concebia a obra, fazia o esboço geral das figuras (estou especulando – nunca li sobre seu método de trabalho), escolhia as cores, etc. E, o mais importante: se ele via algo que não gostava, ia lá pessoalmente e pintava por cima. 

A pintura possibilita isso. Há quadros famosos por aí com incontáveis camadas de tintas superpostas. Na pintura, o que é cortado não é propriamente cortado, é recoberto.

Mas não me consta (se estou errado, me corrijam) que Michelangelo fizesse esculturas trabalhando coletivamente. As esculturas eram produto dele mesmo. Por que? Porque (acho) se numa escultura um aprendiz desajeitado tira mais pedra do que devia não há como colocar a pedra de volta. Numa escultura, cada pancada do cinzel é definitiva. Escultura (ao contrário da pintura e do livro) não tem Ctrl+Z.

No caso da literatura (e, mais recentemente, do roteiro de cinema, da telenovela ou da série de TV), todo trabalho delegado a alguém tem dois VV, vai e volta.  

O autor diz: “Agora você escreve a cena do assalto ao banco. Eles entram, fazem o roubo, trocam tiros, Fulano é morto, Sicrano é ferido e os outros fogem com a grana”. 

O redator  cria a mecânica da ação, os diálogos, os pequenos detalhes, a amarração toda. 

E o autor corrige: “Essa troca de frases é desnecessária... esse tiro em Sicrano é melhor que pegue na perna, não no ombro... não gostei de matarem o segurança, basta desacordar...” e assim por diante. 

Anotem: qualquer criação coletiva pode ser autoral desde que tudo comece e termine pelas mãos do autor.







sexta-feira, 9 de novembro de 2012

3026) Obama (9.11.2012)




Fiquei acordado até as 5 da manhã (o que para mim, admito, não custa muito esforço) até assistir o discurso da vitória de Barack Obama na eleição dos EUA.  E fiquei lembrando de quando fiz a mesma coisa, em 2008. Quatro anos atrás. Era outro mundo. Mudou o mundo, mudei eu, mudou o Natal, mudou Machado de Assis, mudou o rio de Heráclito, mudou Barack Obama, que havia prometido aos norte-americanos “esperança e mudança”. A mudança que houve talvez não tenha sido a desejada, mas as urnas mostraram que a esperança continua. Foi uma escolha entre a insatisfação e a catástrofe. Romney é o representante de uma geração que não liga para o risco de destruir o mundo, contanto que eles continuem bilionários (talvez a última geração de bilionários a existir no planeta).

O destino do mundo depende em grande parte dos EUA e das suas decisões internas, principalmente sobre economia e sobre a questão ambiental. Se Obama não está correspondendo, Romney seria muito pior. Nem falo de outras questões, também importantes para qualquer país: migração, direitos civis, projetos de saúde, desemprego, drogas, violência, aborto, recessão econômica... O mundo tem dois problemas de vida-ou-morte hoje em dia.  O primeiro: nas próximas décadas, pode haver uma crise econômica capaz de zerar a fantasia financeira em que vivemos todos nós. O segundo: pode haver alguma catástrofe ambiental gigantesca, específica, dentro da destruição geral que já está em marcha. Estas duas questões são as mais importantes para o mundo. Obama não nos garante a salvação, mas o partido de Romney iria trabalhar (cegamente, egoisticamente) para piorar ainda mais as coisas.

Thomas Friedman, do NY Times, escreveu que o Partido Republicano estava visivelmente fazendo de tudo para que o governo Obama fracassasse, “para, então, dar o bote e catar os cacos”.  É a atitude que se pode esperar de uma elite de bilionários, milionários (e aspirantes a ambos), para a qual não importa se centenas de milhões de pessoas vão despencar na miséria, desde que eles continuem onde estão. Os problemas dos EUA (ou do Brasil, ou do mundo) não se resumem a isto, mas isto está na raiz de no mínimo metade dos demais problemas. Friedman disse que a vitória de Obama foi devastadora para os republicanos: “um país com quase 8% de desemprego preferiu dar ao presidente uma segunda chance do que dar a Mitt Romney a primeira”. Este resultado de Obama (uma vantagem de menos de 3 milhões de votos) pode significar uma pequena mas decisiva vitória da esperança, um sinal de que os EUA estão se tornando menos elitistas, menos racistas, menos suicidas.


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

3025) Tradução: Paulo Bezerra (8.11.2012)






O paraibano Paulo Bezerra tem sido há bastante tempo um dos melhores tradutores do russo no Brasil, juntamente com o veterano Boris Schnaiderman e jovens como Rubens Figueiredo (“jovem” pra mim é quem é um pouquinho mais novo do que eu). Dias atrás ele recebeu a Medalha Púchkin, condecoração conferida a quem difunde a cultura russa em outros países, e que o próprio Schnaiderman já recebera. Bezerra, que mora hoje no Rio de Janeiro, não pôde ir a Moscou, por motivos de saúde.

Aos 72 anos, ele é um desses paraibanos de trajetória improvável. Nascido em Pedra Lavrada, aos 18 anos foi para São Paulo, tornou-se operário metalúrgico, entrou para o Partido Comunista, foi estudar em Moscou e estava por lá quando houve o golpe de 1964. Achou melhor demorar-se na URSS e esperar um momento mais tranquilo para retornar.  Enquanto isto, formou-se em História e Filologia, e voltou ao Brasil apenas em 1971. Em Moscou, já realizara suas primeiras traduções (como se sabe, os soviéticos traduziam e editavam em seu próprio país, em tudo quanto era língua, os clássicos do marxismo e da literatura local.)

Numa matéria de Joselia Aguiar da Gazeta Russa (http://bit.ly/Sh2eFb), Bezerra afirma que “aprendeu que o sentido muitas vezes está no ritmo”, e que ao traduzir busca “o ritmo das falas, da oralidade”. Suas traduções de Dostoiévski (para a Editora 34) surpreendem às vezes os leitores antigos, acostumados às traduções brasileiras feitas a partir de traduções francesas. Para esses leitores, a prosa elegante a que estavam acostumados é substituída pelo que Bezerra considera o verdadeiro Dostoiévski, de linguagem “dura e tosca”, e com momentos “de quase intradutibilidade”.

É mais ou menos como se alguém pegasse uma tradução de Graciliano Ramos para o inglês e a usasse para fazer uma versão para outro idioma, sem ter experimentado a prosa “dura e tosca” do original, e sem perceber, portanto, o quando essa dureza gerava dentro de si um novo sentido de elegância verbal, baseada num jeito cru de dizer as coisas sem floreios, em justaposições inesperadas, em sínteses brutais. A façanha de Paulo Bezerra nos traz um novo Dostoiévski, assim como as três versões que temos agora do Ulisses de Joyce nos permitem entrever melhor, nessa prosa triplamente refratada, algo da sonoridade e das significações do original.

Sobre o ato de traduzir, Paulo Bezerra diz: “É maravilhoso e exaustivo, entra-se numa espécie de estado encantatório, hipnose que o faz perder a noção do tempo. Quanto mais trabalha, mais se entrega ao trabalho. O texto arrasta você para dentro, surge uma segunda alma.” Acho que Dostoiévski não descreveria melhor.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

3024) O PCC (7.11.2012)



("Salve Geral")


O PCC, ou Primeiro Comando da Capital, nunca é chamado pelo nome nos telejornais da Globo. É sempre citado como “a facção criminosa que controla os presídios paulistas”, ou algo assim. (Por uma questão de coerência, a TV deveria também referir-se à CBF, por exemplo, como “a organização-com-finalidades-de-lucro que finge administrar o futebol brasileiro”.) Dizem que usar o nome de algo ou alguém significa reconhecer sua existência. Isto é um resíduo curioso do pensamento mágico/supersticioso, das pessoas que dizem “CA” para não atrair o câncer e que em noites de trovoadas não usam a palavra “raio”, usam “faísca”. É o vocabulário do avestruz: se eu não pronuncio o nome, a Coisa não existe.

Não tenho simpatia pelo PCC (nem pela CBF), mas ambos são fenômenos da nossa sociedade, tanto quanto as seitas evangélicas, os partidos políticos e a música tecno-brega. Mesmo sem simpatizar com eles, não podemos fazer de conta que não existem. O blog “Crimes no Brasil” reuniu em 2010 quatro pesquisadores acadêmicos que estudam o PCC e as prisões paulistas, e fez-lhes 16 perguntas, cujas extensas e desconcertantes repostas podem ser lidas aqui: http://bit.ly/9cVtf4. Abaixo, transcrevo alguns trechos.

Camila Nunes Dias (USP): “Antes (do PCC) as regras eram impostas – e quebradas – por líderes individualizados que alcançam essa posição a partir da imposição da violência física, do medo e da ameaça, além da formação de pequenos grupos que se utilizavam dessa superioridade física para dominar os mais fracos. (...) O PCC se constituiu como instância reguladora, de imposição e controle do cumprimento das regras, assim como de punição aos transgressores”.

Karina Biondi (UFSCar): “São muitas as mudanças que ocorreram nas prisões após o nascimento do PCC: diminuição no número de homicídios e das agressões entre prisioneiros, fim do consumo de crack e dos abusos sexuais, não se vende mais espaço na cela, não se troca favor com agentes penitenciários em benefício próprio em detrimento de outros, não se fala palavrões. Mas é importante lembrar que essas mudanças não são frutos de leis, decretos ou imposições. Suas propostas nascem de amplos debates e são expandidas e adotadas paulatina e assistematicamente, não sem resistências e diferenciações na condução dessas políticas”.

O PCC é o surgimento de um novo Contrato Social para extinguir, ou amenizar, a selvageria na prisão. Quando você serra uma barra de ferro imantada, o campo magnético se reorganiza em cada um daqueles pedaços. Onde você isolar uma comunidade humana, ela tenderá a se organizar em novas estruturas de poder, convivência, diálogo, repressão, controle de conflitos.


terça-feira, 6 de novembro de 2012

3023) "Gonzaga de pai pra filho" (6.11.2012)





O filme de Breno Silveira deve ter surpreendido quem esperava uma biografia linear de Luiz Gonzaga, sua vida de A a Z. O roteiro traça uma cronologia razoável da vida de Luiz, mas se concentra em sua relação com o filho Gonzaguinha. Pais ausentes, filhos carentes; um drama antigo, que ganha empatia ao envolver dois grandes artistas. Pai e filho foram o avesso um do outro: o migrante sertanejo que conviveu com políticos e coronéis, e o universitário de esquerda criado no morro. A sanfona e o violão, o forró e a MPB, e o fato de que a ascensão do filho coincidiu com o declínio do pai. Essa inversão das posições de poder deve ter ajudado (o filme sugere isso) esse reencontro (não sem aspereza de parte a parte) entre dois homens adultos, cada qual se julgando injustiçado pelo outro.

O filme funciona na razão direta da credibilidade dos atores. Chambinho do Acordeom talvez não reconstitua certos traços psicológicos de Gonzaga (ele parece ingênuo e juvenil demais, e tenho pra mim que Gonzaga era mais esperto, mais macaco-velho do que o que aparece no filme), mas sua simpatia, seu sorriso e seu carisma evocam sem esforço o Gonzaga desse período. Já Adélio Lima, que faz o Gonzaga idoso, tem uma composição mais profunda e mais complexa. É um homem amargo, irônico, vivido, castigado pela fama e pela incessante batalha. Julio Andrade, por sua vez, é um impressionante clone de Gonzaguinha, reconstituindo seu jeito desengonçado, tenso, nervoso, como uma corda de cavaquinho prestes a saltar.

O filme é um melodrama redondo e firme, comparável ao Dois filhos de Francisco do diretor. É a história da luta pelo sucesso e do valor cobrado pelo imposto do sucesso, que não é menor que o do fracasso.  A narrativa se torna meio confusa no aspecto fonográfico quando acompanha os primeiros anos do estouro nacional do baião, mas acho que só os cronologistas profissionais percebem. O enfoque adotado, de deixar a obra em segundo plano, faz os parceiros de Gonzaga terem uma passagem relâmpago pela tela, mas em compensação o casal Henrique e Dina (os pais adotivos de Gonzaguinha) tem sua importância reconhecida.

O problema de todo melodrama é a busca forçada da emoção. O filme poderia ser mais seco e mais calmo em vários momentos, mas há muitos outros em que o diretor parece achar o tom certo, que sugere uma emoção real. Não é fácil recriar em uma dúzia de cenas a complexidade de uma relação afetiva que se deu durante décadas. Exigir isto de um filme é um pouco como Gonzaguinha tentar trazer para uma fita cassete C-60 a história inteira dos seus pais. O resultado é honesto, simpático, apesar da tarefa impossível que se propõe.