sexta-feira, 29 de junho de 2012

2909) Antonio Silvino (29.6.2012)






Uma foto tem circulado nas redes sociais, mostrando dois homens de terno, frente a frente. São eles o presidente-ditador Getúlio Vargas e o ex-cangaceiro Antonio Silvino, que recebera indulto após 23 anos de cadeia, por bom comportamento (havia sido condenado a 239 anos). Diferentemente de Lampião, que em vinte anos de cangaço nunca foi preso, Silvino cumpriu pena, alfabetizou-se na prisão, converteu-se ao protestantismo  e trabalhou em vários tipos de artesanato até receber o indulto de Vargas. São duas histórias diferentes, dois finais diferentes.  Lampião, que era 23 anos mais novo, morreu numa emboscada na gruta de Angicos em 1938.  Silvino, aprisionado em 1914 (antes mesmo de Lampião entrar para o cangaço) morreu em 1944, na casa de uma prima, em Campina Grande. (Quando eu era menino, várias vezes me mostraram a vilazinha humilde onde ele findou seus dias, em frente à Praça Félix Araújo, esquina com a Arrojado Lisboa).

A carreira de Silvino está documentada nos folhetos de Francisco das Chagas Batista, que cobrem suas aventuras até 1912.  Uma ótima avaliação deles está em Memória de Lutas de Ruth Brito Lemos Terra (Global, 1983), onde ela compara a abordagem de Chagas Batista, mais documental, com a de Leandro Gomes de Barros, mais fantasiosa e romantizada. Tal como Lampião, Silvino foi exaltado por poetas e escritores como um guerreiro nobre e ético. Em As Infâncias de Quaderna, de Ariano Suassuna, é ele quem resgata o menino Quaderna, raptado por ciganos, e o devolve à família; em Menino de Engenho, José Lins do Rego reconstitui uma visita do cangaceiro ao coronel José Paulino, que o recebe à mesa, com todas as honras.

Foi, aliás, o próprio Zé Lins que em 1938 levou Graciliano Ramos a visitar Silvino na prisão, antes do seu indulto.  Numa crônica no Jornal de Alagoas (18-9-1938, aqui: http://bit.ly/NI7SRl), Graciliano faz um retrato elogioso do ex-cangaceiro, onde ficam evidentes os preconceitos de raça e classe que ambos inconscientemente compartilhavam. Diz ele: “Antonio Silvino é um homem branco. Seria mais razoável que fosse um representante das raças inferiores, que, no Nordeste e em outros lugares, constituem a maioria da classe inferior. Mas é um branco, e se for examinado convenientemente, não dá para bandido. (...) Homem de ordem, indispôs-se com outros homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos para lá das grades. Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média”. Sertanejos escritores, políticos ou cangaceiros que respiravam o mesmo ar, as mesmas idéias.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

2908) O Quarto do Pânico (28.6.2012)




Recebi (não, desta vez não é piada) uma circular eletrônica enaltecendo a utilidade do Quarto do Pânico, e me propondo uma avaliação sem compromisso. Para quem não sabe, o nome desse produto vem do filme com Jodie Foster, em que ela e a filhinha se trancam nesse cômodo para escapar de ladrões que invadem sua casa.  Por causa do filme, o nome pegou, o que aliás não acho muito bom em termos de marketing – deviam chamar de “Quarto Salva Vidas”, “Quarto de Segurança”, algo com um astral mais positivo.  O tal cômodo é um aposento blindado, no interior da casa, onde os moradores podem se refugiar e se trancar por dentro na hipótese de um assalto.  O quarto tem blindagem para resistir até a armas de fogo pesadas.  Tem energia com “No Break”, independente do resto da casa.  Tem câmaras que monitoram as partes internas e externas da casa, para que a família, ao se esconder ali, possa ver o que está acontecendo à sua volta.  Tem linhas de comunicação (rádio, celular, etc.) com várias alternativas para pedidos de socorro à polícia, aos vizinhos ou a uma empresa de segurança previamente contratada.  Tem oxigênio, água, comida, tudo que as pessoas possam precisar para passar um tempo razoavelmente longo até que os assaltantes desistam ou o socorro apareça.

A instalação (é cara, viu?) geralmente aproveita um espaço já existente (closet, banheiro, etc.) que não perde a utilidade no dia-a-dia normal, mas fica acessível para que as pessoas cheguem rapidamente a ele, se fechem por dentro, e acionem o socorro. O Quarto do Pânico é a versão contemporâneo dos abrigos nucleares dos anos 1950-60, quando, principalmente nos EUA, havia o pânico de uma guerra atômica. Muita gente cavou porões e os equipou com ar condicionado, água, mantimentos, gerador de eletricidade, etc., para se esconder em caso de guerra. Devia haver condições suficientes para que a família esperasse a queda dos níveis de radioatividade lá fora (meses? anos? não sei).  Bob Dylan fez uma canção famosa ironizando esse medo, “Let Me Die In My Footsteps”.

Hoje não temos mais medo da URSS, nem sequer da Al-Qaeda: temos medo dos humilhados e ofendidos das nossas periferias urbanas, que cedo ou tarde perdem a paciência e, como o “cobrador” de Rubem Fonseca, vêm exigir uma parte do muito que temos, parte que eles consideram ser-lhes devida.  O Quarto do Pânico é, depois dos edifícios com câmaras de segurança e dos condomínios com guardas armados na guarita, o último refúgio de uma culpa que nos envergonha, mesmo quando não a assumimos. Nossa casa será como a “Casa Tomada” de Cortázar, pouco a pouco invadida por alguém cujo rosto não temos coragem de encarar. 

quarta-feira, 27 de junho de 2012

2907) Um pequeno tesouro (27.6.2012)








Era tia-avó da minha esposa, e morava sozinha num casarão, numa capital nordestina cujo nome não preciso revelar. Quando tive que deixar São Paulo e passar uma semana lá, para trabalhar numa auditoria, minha mulher telefonou-lhe sem me consultar e as duas resolveram que eu me hospedaria na casa dela (a tia aproveitaria para me conhecer e, segundo minha mulher, “dar a nota”). Ficar na casa de uma pessoa de 70 anos não estava nos meus planos. Não que pretendesse cair na farra. Mas depois de um dia duro de trabalho, discutindo, argumentando, a única coisa que me interessa é tomar um banho, e depois dois uísques, sozinho, em silêncio, na beira da piscina do hotel. Mas esposa é esposa, e lá fui eu.

Dona Frederica me surpreendeu, não apenas por aparentar bem menos idade, mas porque na primeira noite em que voltei encontrei-a escutando música diante de uma garrafa de Dimple e um balde de gelo. Sentei ao lado e enveredamos numa longa cadeia de associação de idéias envolvendo boleros cubanos, orquestras tropicais e a arte da dança de salão, que ela me confessou não praticar há vinte anos, desde a morte do marido. Na segunda noite lá estava o Dimple, e desta vez conversamos sobre horóscopo, tipos psicológicos; ela contou “causos” saborosamente escabrosos ocorridos com amigas de juventude. Na terceira noite, Dimple e cinema (ela adorava musicais da Metro).

E assim foi, até que em minha última noite lá ela falou da mãe, e que a mãe lhe deixara um pequeno tesouro. Eu gostaria de vê-lo?... Diante da inevitável resposta, trouxe à sala uma caixinha laqueada, com cheiro de perfume antigo. Abri-a. Dentro era forrada de veludo, e havia uma folha de caderno amarelecida, dobrada, e sobre ela um anel de prata com pedra vermelha. Ela me disse que a mãe lhe dera a caixa ao morrer, sem mais explicações além de “É meu tesouro”. “É valioso?”, perguntei. “Mandei examinar, disseram que é bijuteria”, disse ela; “certamente tinha valor sentimental”. Retirei o papel do fundo da caixa, desdobrei-o. Era uma folha de caderno manuscrita, em tinta esmaecida e caligrafia equilibrada, com algumas poucas correções; o rascunho de um poema, dizendo algo como “No tempo de meu Pae, sob estes galhos...”. Perguntei o que era, ela deu de ombros: “Lembrança de um professor que ela teve, ao que parece. Valor sentimental”. Guardei o presente, devolvi-o, filosofamos um pouco sobre o sentido da palavra tesouro, sobre o sentido da palavra valor. “Veja como são as coisas”, disse ela, “isto aqui não tem valor nenhum, mas eu não venderia nem por mil reais”. Servi as duas últimas doses, brindamos e no outro dia vim embora.

terça-feira, 26 de junho de 2012

2906) "Blade Runner" 30 anos (26.6.2012)





Uma coisa fascinante no capitalismo é a capacidade que ele tem de nos fazer comprar a mesma coisa mais de uma vez. Ele cria em nós, primeiro, uma fascinação inesgotável por um produto; depois, nos ensina a fazer minúsculas, sutilíssimas distinções entre aspectos deste produto; em seguida, oferece-nos versões quase idênticas do produto, mas com diferenças suficientes para que digamos: “Quero todas duas!”. Ou todas três, ou trinta. 

Blade Runner (1982), foi um fracasso de bilheteria nos EUA, onde custou cerca de 28 milhões de dólares e rendeu 27. (Rendeu um pouco mais no mercado externo, mas em termos da contabilidade dos estúdios, que precisam de retorno rápido, isso não pesou muito.) Ao completar 30 anos, foi preparada uma caixa especial, custando cerca de 50 dólares, com nada menos de dez horas de cenas extras, e três versões integrais do filme.

Ao todo, existem cinco versões. Primeiro houve a versão original, exibida nos cinemas, e a versão internacional, que é quase a mesma, com a adição de algumas cenas de violência. Em 1992, o diretor Ridley Scott produziu a “Versão do Diretor” (“Director’s Cut”), removendo a narração em “off” e modificando algumas cenas, mas ainda assim não ficou satisfeito (ele é considerado um perfeccionista capaz de enlouquecer qualquer equipe), e em 2007 ele concluiu o chamado “Final Cut”, onde modificou tudo que achou necessário (inclusive chamando a atriz Joanna Cassidy para refazer, 25 anos depois, cenas que tinham sido feitas por uma dublê).  E existe uma quinta versão chamada “Work print”, que seria uma primeira edição do material filmado, com muitas cenas que foram excluídas depois. (Ao que parece, a caixa inclui as versões 1, 4 e 5.)

A cultura de massas é considerada o reino do descartável, do superficial.  Supõe-se que o espectador vê um filme, dá tchau e vai ver o próximo. Pertence ao mundo acadêmico essa disposição para examinar e comparar diferentes versões de uma obra. Quantas teses não já foram escritas comparando a versão em folhetim e a versão em livro de alguma obra de Dostoiévsky ou Dickens? Mas a tendência das últimas décadas é a de estimular a produção dessas versões, em primeiro lugar para vender as duas, é claro, mas com um efeito colateral: a criação de uma faixa crescente do público cada vez mais atenta a detalhes e a variantes. Isto é resultado do videocassete e do DVD, que pela primeira vez deram ao espectador comum a possibilidade de rever uma cena quantas vezes quisesse, parando, voltando, vendo de novo – uma experiência de espectador totalmente diferente da experiência passiva, meramente receptiva, do espectador tradicional do cinema.

domingo, 24 de junho de 2012

2905) "Tango de volta" (24.6.2012)





(Julio Cortázar)

Julio Cortázar foi um constante experimentador de formas narrativas, na estrutura aleatória e ziguezagueante de O Jogo da Amarelinha, na mescla de narrativa literária e notícias de jornal de Livro de Manuel, nos “almanaques” de estrutura verbo-visual como A Volta ao Dia em 80 Mundos.  Mas no interior de seus contos ele sempre estava testando novas maneiras de contar a história.  Uma de suas experimentações mais constantes é com o ponto de vista narrativo. Um conto narra uma história que acontece, mas, quem está contando a história?

“Tango de volta” é um dos contos de Queremos tanto a Glenda (1980, publicado no Brasil como Orientação dos gatos). É um conto narrado na 1ª. pessoa, e o narrador, como é de hábito em Cortázar, principia com um longo parágrafo aparentemente caótico em que salta de um ponto para outro entre informações desencontradas, referindo-se a pessoas como se imaginasse que já as conhecemos, comparando fragmentos de informações como se já as tivesse fornecido antes. A esse longo parágrafo segue-se outro que começa, paradoxalmente: “Como sou muito convencional, prefiro pegar desde o começo...”. Segue-se uma história em que uma argentina, Matilde, abandonou o marido no México e voltou a Buenos Aires, de onde forjou um atestado de óbito para dizer que era viúva, casou com um homem rico, teve um filho, e agora vê o primeiro marido rondando sua casa, namorando sua empregada Flora, tentando se infiltrar lá dentro.

O leitor prevê mais uma das bem urdidas histórias de crime de Cortázar. (É engraçado, nunca vi nenhuma delas nas antologias de contos policiais. Rotularam o rapaz de “autor fantástico” e pronto, morreu aí.) Tudo é narrado numa “falsa 3ª. pessoa” do ponto de vista de Matilde, a esposa, e depois de duas páginas já esquecemos que tudo começara com um “eu”. O conto vai até um desfecho violento, e no último parágrafo sabemos quem é o narrador: é o médico ou enfermeiro que chegou à casa logo após o crime, e a história é extraída da empregada, Flora, levando-o a reconstituir tudo que se passou. Acontece que tirando o primeiro e o último parágrafo tudo se passa dentro da mente de Matilde. Pegando os fragmentos de fatos fornecidos por Flora, o narrador romanceia por conta própria o que teria se passado na mente da mulher, seus medos, suas culpas, sua paranóia. É um narrador não-confiável, porque, embora os fatos provavelmente sejam aqueles, o texto está cheio de conjeturas e adivinhações do que Matilde teria sentido e pensado, e que ele não poderia conhecer. É mais uma das muitas experiências de Cortázar sobre um”eu” narrador que nunca é o “eu” narrador da literatura convencional.

sábado, 23 de junho de 2012

2904) O roubo digital (23.6.2012)

















Um artigo de Stuart P. Green no New York Times (http://nyti.ms/KmnlTw) aborda a questão do download não-autorizado de músicas, filmes e livros do ponto de vista do tipo de transgressão que isso constitui.  Para Green, não se trata de furto ou roubo, e esta é a questão crucial.  É um problema de nomenclatura, nada mais, mas dentro do nosso sistema jurídico, e do nosso sistema informal de valores e conceitos, o nome com que tratamos uma ação influencia e direciona nosso exame e nossas decisões futuras.  Se já começamos uma discussão dizendo que a ação tal ou tal é um roubo, vai ser difícil propor, depois, uma maneira de legalizar ou organizar o modo como isso vai ser feito, já que é um “roubo”, uma palavra condenada de antemão.

Dois aspectos são importantes: 1) ao contrário do roubo, o download não priva o proprietário original de um objeto único que ele possuía e não possui mais; trata-se apenas do ato de copiar o objeto e levar a cópia para si; 2) são poucas as pessoas, entre as que fazem essas cópias, que se dariam o trabalho (ou teriam o dinheiro) de comprar o objeto original que o “proprietário” supostamente está oferecendo à venda.  Se as cópias se multiplicam gratuitamente, deve existir alguma maneira de usar essa multiplicação para gerar um pequeno resíduo de renda que, acumulado e multiplicado por milhões ou bilhões, crie um bolo a ser repartido entre os produtores dos objetos culturais.  Ao invés de cobrar 20 reais por disco e vender milhares, cobrar 1 centavo e vender milhões.  Ou cobrar um imposto único e redistribuí-lo, proporcionalmente à contribuição de cada produtor cultural.

Nosso conceito de comércio cultural (livros, filmes, discos) foi criado em torno da idéia de que: 1) é caro e trabalhoso copiar uma obra; 2) quem tem essa despesa e esse trabalho precisa ser recompensado por isso; 3) essa recompensa geralmente se dá através do direito de explorar comercialmente essas cópias escassas e preciosas.  No momento em que o item 1 perdeu o sentido, o resto começa a perder o sentido também.  Precisamos agora achar um novo conceito de comércio, baseado na idéia de que é facílimo e gratuito reproduzir cópias de livros, filmes e músicas.  Há um oceano de cópias sendo trocadas, oferecidas e aproveitadas gratuitamente, e não adianta considerar isso um roubo, porque daqui a alguns anos vamos chegar a uma sociedade onde, como a Itaguaí de O Alienista de Machado de Assis, 99% da população estará presa e somente 1%  nas ruas.  Quando a vida real, avaliada por um conceito, mostra 1% de regra e 99% de exceção, um dos dois precisa ser substituído. É mais sensato substituir o conceito.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

2903) Zédantas (22.6.2012)




Estou lendo Zédantas segundo a letra I, publicado pelo Memorial Luiz Gonzaga (Recife, 2010), com a longa entrevista da D. Iolanda Dantas, viúva do grande parceiro do Rei do Baião. 

Zédantas (ele gostava que seu nome fosse escrito assim) é autor de dezenas de canções eternas da música nordestina, como “A Volta da Asa Branca”, “Sabiá”, “Vem Morena”, “Forró de Mané Vito”, “Imbalança”, “Xote das Meninas”, “Acauã”, “Noites Brasileiras”,”Siri jogando bola”, “Derramaro o gai”, “ABC do Sertão”, “Samarica parteira”, “Riacho do Navio”... bem, são dezenas. 

Era sertanejo de Carnaíba (PE), e o Riacho do Navio cortava a fazenda de seu pai. Estudou medicina e clinicou no Rio de Janeiro, mas nunca deixou de pensar no sertão o tempo inteiro. Era extrovertido, contador de piadas, imitador de tipos, além de elegante e vaidoso – tinha mais de cem gravatinhas-borboleta. 

No Rio, foi muito amigo de Péricles (criador do “Amigo da Onça”), e de políticos como José Aparecido e José Joffily (que lhe deu de presente um violão).  Era considerado “a alma da festa” onde chegava, com suas piadas e suas músicas.

Quando viajava a Pernambuco, levava um gravador de rolo de 14 kg e trazia de volta para o Rio dezenas de fitas com cantorias, aboios, toadas e forrós, que usava como base para suas composições em seu apartamento na Av. Pasteur, onde acordava cedinho e ficava compondo, olhando a Baía da Guanabara. 

Tocava bem o violão, e o piano com dois dedos, mas tocava de ouvido e a esposa, que tinha estudado, passava as melodias para a partitura, para que ele não as esquecesse. 

O sucesso do baião o colocou em contato com políticos influentes; “Algodão”, p. ex., foi composta  por sugestão do então Ministro da Agricultura, João Cleofas (PE). Uma canção gravada por Marlene, “Piririm”, marca sua única parceria com o outro grande parceiro de Gonzaga, Humberto Teixeira. “Vozes da Seca” foi feito em resposta à campanha popular “Ajuda teu irmão”, para as vítimas da seca de 1953 no Nordeste.

Era médico obstetra, e por causa de dores nas costas tomou muitos remédios à base de cortisona (um medicamento novo na época), que prejudicaram sua saúde. 

Sofreu um ferimento no tendão de Aquiles em 1961, quando passava uns dias no sítio de Luiz Gonzaga em Miguel Pereira (RJ). Fez uma cirurgia que não resolveu o problema, e morreu um ano depois de insuficiência renal, no Hospital dos Servidores do Rio, no mesmo quarto onde tinha morrido José Lins do Rego. 

Foi enterrado no Recife, e seu último pedido foi ser sepultado “com uma cruz de madeira num pé de mororó e um bode lambendo a cruz”. Compositor de imenso talento, e sertanejo até o talo.






quinta-feira, 21 de junho de 2012

2902) O Manifesto Krashnavik (21.6.2012)




“Este manifesto é escrito em nome de Istvar Morisev, tecelão de ofício, aldeão de nascimento, alfabetizado aos 71 anos, famoso por seu livro de memórias aos 75, rico aos 80, morto e reconciliado com o mundo aos 90. 
Em nome da luz do verde das encostas de Krashnavik na derradeira tarde do seu tempo de paz, quando um regimento inteiro de ‘kalliks’ em retirada devastou o vale, ateando fogo às cabanas depois de saqueá-las e martirizar seus moradores. 
Em nome da bacia de porcelana em que uma criança era banhada quando foi atropelada por um corcel de guerra pesando trezentas libras e coberto de armadura em couro, bacia que escapou milagrosamente intacta a esse perigo, tendo a criança, por outro lado, não resistido. 
Em nome do oficial que deteve o sabre que se erguia sobre o pescoço curvado daquele homem de bigode negro que tinha sido dado como morto por entre as ruínas fumegantes de sua casa, e mandou acorrentá-lo.
Em nome dos vizinhos de Morisev a quem coube sepultar sua família e guardar como relíquia a bacia de porcelana que pertencera aos seus avós. 
Em nome das marretas de ferro com que ele foi obrigado a quebrar pedras durante anos, longe do vale de Krashnavik, crendo que cada dia seria o seu último.
Em nome da chuva que o refrescou, do sol que o aqueceu, da comida insípida que o manteve vivo, das mulheres que nunca teve, do sono que o trazia de volta à existência, das trinta e oito voltas que o mundo deu em torno do sol e que um dia lhe trouxeram a liberdade.
Em nome do sargento subornado que uma madrugada o libertou às escondidas, dando-lhe sem explicações um cavalo, uma sacola de mantimentos e um papel com um nome e um endereço.
Em nome de Olenka, a professora de álgebra que, depois de anos de busca, assim o libertou e o acolheu em sua casa num subúrbio de Varna, e nos anos seguintes tornou-se sua filha adotiva, mestra e secretária.
Em nome do artesão anônimo que gravou a história da família Morisev na bacia de porcelana que Olenka comprara num antiquário, e cujas inscrições releu para ele, ao longo de muitas noites, fazendo-o chorar pela perda do filho e pela salvação da história.
Em nome dos dias de estudo e das noites em claro à luz de lâmpadas fracas, desenhando letras negras em papel branco e repetindo palavras em voz alta.
Em nome do livro em que contou sua história, a dos seus antepassados, e imaginou, descreveu e celebrou as muitas vidas que poderiam ter sido do seu filho atropelado pelos cavalos dos “kalliks”.
Em nome da arte da palavra, que não muda o mundo mas lhe dá feição e sentido, e é capaz de modificar o passado, eternizar o presente e multiplicar o futuro.”






quarta-feira, 20 de junho de 2012

2901) Tempo real (20.6.2012)




(ilustração: Gio MacCluskey)


"Tempo real". Esta é uma expressão curiosa, surgida, pelo que me consta, com a Internet.  Antes dela tínhamos milhões de coisas acontecendo em tempo real mas não nos sentíamos obrigados a dar um nome a isto. 

“Em tempo real”, na linguagem de hoje, significa um fenômeno qualquer em que transmissão e recepção sejam simultâneos, ou seja, a coisa acontece num lugar e é vista em outro no mesmo momento.  

(Se bem que nada é simultâneo, de acordo com a Física. Há sempre um intervalo, mas em termos da percepção humana é uma fração de segundo tão pequena que para efeitos práticos pode ser ignorada. Para tais grandezas, físicos e matemáticos usam o adjetivo “desprezível”, que sempre me pareceu meio insultuoso.)

Em tempo real significa aquela noite inesquecível em que o U-2 fez um show demolidor num estádio na Califórnia, e eu assisti o show em meu PCzinho no Rio de Janeiro, sentado na minha cadeira giratória, indo buscar cerveja na geladeira. 

Alguém pode argumentar que se o show tivesse ocorrido na véspera e eu o estivesse vendo 24 horas depois (ou 240 horas depois, etc.) minha impressão de ineditismo seria a mesma, e não discuto.  

Aí é que entram as sutilezas do Espírito do Tempo.  O prodigioso não é que a gente esteja vendo aquilo em tempo real, mas que SAIBA que está vendo em tempo real. O prodigioso não é a simples transmissão da informação, mas o pequeno triunfo psicológico que ela nos proporciona, aquela sensação de momentânea onipotência, a sensação de estarmos (a Humanidade inteira, ou pelo menos uma parte importante dela) envoltos num casulo telepático em que tudo nos acontece ao mesmo tempo aqui e agora.  Isto é precioso.

Talvez tenhamos sentido algo assim quando nos deparamos pela primeira vez com o telégrafo; com o rádio; com o telefone; com a televisão; mas isto nunca ocorreu com tanta intensidade. Quando estou num chat, tipo frase-vai, frase-vem, com algum amigo que está na Europa ou na Ásia penso: “Ora, isto não é mais extraordinário do que um telefonema”. 

Mas telefonemas são uma comunicação um-a-um, e a Internet nos proporciona isto multiplicado por multidões incalculáveis. E reparem bem na poesia do nome.  Todo tempo é real, não é mesmo? Quando leio uma peça de Ésquilo, foi real o momento em que foi escrita, é real o momento da leitura, bem como é real o intervalo de 2.500 anos que nos separa.  Hoje, porém, temos um real simultâneo, e não um real esgarçado no tempo. 

Como se o fato de outros seres humanos estarem pensando na mesma coisa no mesmo instante tornasse essa coisa mais espessa, mais socialmente verdadeira, mais humanamente real.  E, em última análise, é isso mesmo que acontece.

    


terça-feira, 19 de junho de 2012

2900) Harry Stephen Keeler (19.6.2012)



(esquema de uma "webwork" de Keeler)

Existem artistas que a gente admira mas não curte, e artistas que a gente curte mas não admira. Há grandes romancistas cuja prosa nos entra por um ouvido e sai pelo outro sem que o sismógrafo do cérebro sofra o menor estremeço. E há romancistas que reconhecemos serem menores, romancistas a quem obviamente faltam certos requisitos, mas que nos despertam um fascínio permanente.  

É o caso de um dos grandes excêntricos da literatura dos EUA, Harry Stephen Keeler (1890-1967), autor de uma obra gigantesca, disforme, muitas vezes canhestra, de vez em quando brilhante, com rasgos estilísticos que fariam encabular um ginasiano e com enredos de uma complexidade que faz Thomas Pynchon parecer um minimalista. Bem – comparar com Pynchon não adianta, porque Pynchon é um keeleriano sem os defeitos de Keeler.  Digamos: Balzac.

Keeler criou um processo, chamado de “webwork”, para compor seus enredos complicados, com dezenas de personagens, centenas de situações entrecruzadas, pistas falsas, confusões de identidade, coincidências e anti-coincidências (=quando algo que deveria acontecer não acontece). 

Escreveu quase 100 romances, e olha que o romance típico dele não tem menos de 400 páginas (muitos, por alguma razão, são traduzidos em Portugal). Mantinha um gigantesco arquivo de recortes de fatos estranhos, bizarros, inesperados, que usava em suas narrativas de crime e de FC. 

Sua homepage (http://bit.ly/bWvEZl) dá exemplos de sua prosa saborosa, inusitada, meio desconexa, em romances como O Enigma da Caveira Viajante, O Rosto do Homem de Saturno, O Caso dos 16 Feijões, O Mistério do Periquito de Madeira, O Homem que Mudou de Pele, etc. Sua volúpia fabulatória não tem paralelo, bem como seus extraordinários sistemas de criação de enredos.

Falei que não admiro Keeler? Falei mal. Poderia dizer, como o Conselheiro Acácio, que admiro suas qualidades mas não seus defeitos. E a verdade é que os defeitos (a prosa muitas vezes canhestra, as situações improváveis e forçadas, os personagens que não parecem pessoas mas meras funções para desencadear peripécias) só são considerados como tal num sistema de valores que visa à produção de uma prosa produzida noutro nível de realidade.  Criticamos Keeler com instrumentos feitos para medir Balzac (que aliás era combatido, em sua época, por críticos que usavam instrumentos pré-Balzac). 

A editora independente Ramble House imprime seus livros por demanda (http://bit.ly/9KpjZy); suas frases inimitáveis podem ser seguidas no Tweeter através de @HarrySKeeler. Era um homem obsessivo, trabalhador incansável, e fundou um império habitado por ele só.