domingo, 26 de fevereiro de 2012

2803) Filme de computador (26.2.2012)




(o trailer no YouTube)

Como fazemos nossas escolhas estéticas? Muitas delas são escravas de um certo racionalismo, claro. Num romance há de existir um mínimo de continuidade entre o que escrevemos até agora e o que vamos escrever imediatamente em seguida. Mas digamos que o coleguinha está tentando editar um videoclip com a ajuda de um banco de imagens. Quais são os critérios? Cor... textura... movimento... Coisas assim; além do sentido “literário” das imagens. Algo por aí.

Pois bem, “seus problemas acabaram”. Eve Sussman criou um projeto experimental chamado “whiteonwhite:algorithmicnoir”, que utiliza um computador, 3 mil videoclips, 80 narrações de voz e 150 trechos musicais. Quando o programa roda, ele vai examinando esse material e selecionando áudio e vídeo de acordo com seus próprios critérios (projetados por seres humanos, é óbvio). Cada clip tem “tags” ou referências que filtram o material inteiro e limitam as escolhas da próxima imagem – se uma imagem tem por exemplo a tag “Branco”, ele concentra sua escolha nas imagens com a mesma “tag”, e em seguida reinicia o processo. A música e a narração são montadas por processos semelhantes. No festival Sundance, onde o projeto foi testado, a audiência tinha a opção de olhar dois monitores, sendo que um deles reproduzia o processo “interno” de escolha e o outro mostrava a edição final, a sequência de imagens escolhidas.

Puristas e luditas se erguerão em defesa da criatividade humana, da emoção humana, etc. e tal, e parecem esquecer que grande parte do nossso trabalho é feito exatamente assim. O que talvez nos diferencie do projeto de Sussmann seja apenas a extensão do arquivo, porque um diretor de filme deve ter em sua memória (consciente e inconsciente) algumas dezenas de milhões de imagens codificadas por algumas centenas de milhares de “tags” que lhe sugerem o que escolher em seguida.

E não só no cinema. Pensem na poesia menos descritiva, menos racionalista. Pensem em Jorge de Lima e sua Invenção de Orfeu: “De manhã estrelas verdes / na inocência do ar coleado, / intranqüilas e veementes. / Ao zênite e areia em sede, / asas das hastes pendidas, / as nuvens-castelas altas / como painas amealhadas”... Que processo determina essas escolhas verbais, escolhas que nenhuma imposição racional nos obriga a fazer? Por que estas palavras, e não outras? Talvez os computadores, corretamente utilizados, possam nos trazer um novo tipo de surrealismo, tão legítimo quanto o de Jorge de Lima e de Benjamin Péret, que possa ser aplicado à poesia, ao filme, à música, às modalidades de arte sequenciais e não-narrativas. A tecnologia a serviço da intuição e do acaso.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

2802) Plagiarismo (25.2.2012)



(Quentin Rowan)

A arte secreta do plágio produziu recentemente mais um episódio curioso. Em geral plagiários se defendem dizendo que não conheciam a obra original e tudo foi coincidência; ou que estavam homenageando o artista de cuja obra se apropriaram; ou que era uma experiência de metalinguagem. Não foi o caso de Quentin Rowan, que lançou em 2011 um romance de espionagem, Assassin of Secrets, sob o pseudônimo de Q. R. Markham. Poucos dias depois do livro ir às lojas começaram a pipocar nos blogs e na imprensa denúncias de que o romance continha parágrafos inteiros copiados de outros livros. Edward Champion, do websaite Reluctant Habits, apontou 34 exemplos de plágio nas primeiras 35 páginas do livro. Críticos (e os editores do livro, claro) começaram a jogar trechos no Google e encontrar exemplos onde apenas os nomes próprios e pequenos detalhes técnicos tinham sido alterados, trechos de livros de Robert Ludlum (autor da Supremacia Bourne), Charles McCarry, James Bamford, Geoffrey O’Brien e de autores como John Gardner, que estão (com consentimento dos herdeiros) escrevendo novas aventuras de James Bond, após a morte de Ian Fleming.

Uma longa matéria no The New Yorker (http://nyr.kr/zZmqk7) traça o patético perfil de Rowan, um garoto filho de pais intelectuais que sempre esperaram dele façanhas literárias. Na adolescência, ele copiava palavras difíceis para inserir em seus contos e poemas; daí para copiar frases inteiras (que achava bonitas) foi um passo. Ajudado por uma memória excepcional, ele sempre lembrava onde encontrar exatamente o parágrafo que precisava (descrição de ambiente, cena de briga, cena de sexo, meditação dos personagens, etc.). Poderia ter dito depois que estava produzindo metaliteratura ou algo assim, mas confessou ao jornalista, com candura: “Há anos eu tenho medo de ser descoberto; acordo no meio da noite e vou me olhar no espelho. (...) Eu lutei contra o plágio do mesmo modo que outros lutam contra o fumo, o vício do sexo, da comida, do jogo. (...) Nunca pensei em oferecer meu livro como uma colagem. Eu queria, sinceramente, que as pessoas pensassem que eu era o autor”.

Ele próprio compara o vício do plágio à cleptomania. Diz que nunca roubou nada em lojas, mas que isso explica por que pessoas com talento literário sentem a necessidade de plagiar. “Cleptomaníacos em geral são pessoas que não precisam furtar, como as madames do Upper East Side ou Wynona Ryder”. Pelo sim, pelo não, a editora tirou o livro do mercado e exigiu de volta o adiantamento de 15 mil dólares pago ao autor. Que agora está trabalhando em um novo romance, sem transcrições, para mostrar que sabe escrever.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

2801) Sonhos (24.2.2012)




(Self, de Michael Morgenstern)

Tem uma história antiga que se refere a um desses monumentos da humanidade, não lembro se era sobre Matchu Pitchu ou a Esfinge de Gizé; alguma coisa gigantesca e enigmática. 

Quando os exploradores europeus chegaram lá, séculos atrás, perguntaram às tribos que moravam perto: “O que é aquilo?”. Os nativos olharam com uma cara de quem estava vendo a tal coisa pela primeira vez e responderam: “Pois é, que coisa estranha aquilo, o que será?”. 

Era um resíduo cultural dos antepassados deles, eles a viam diariamente quando iam levar os camelos para beber água ou coisa parecida, e não tinham parado para imaginar o que era.

Assim somos nós com grande parte das coisas importantes da nossa vida. Por exemplo, digamos que amanhã desembarque na Terra uma frota de espaçonaves cheias de psicólogos alienígenas que falem português (tá bom, vá lá, que falem inglês, que é mais disseminado). 

E que eles nos perguntem: “O que é o sonho? Lá no nosso planeta, quem dorme apaga. Aqui, vocês dormem e ficam pensando maluquices, como quem tomou LSD. Que diabo é isso?” Não saberíamos responder. Temos 258 teorias para explicar o sonho, o que equivale a não ter nenhuma.

A teoria mais recente é do dr. Rodolfo Llinás, um neurologista e fisiologista da New York University. Diz ele: 

“O sonho não é um estado mental paralelo, mas é a consciência propriamente dita, na ausência de estímulos fornecidos pelos sentidos”. 

Em seu livro I of the Vortex: from Neurons to Self (M.I.T., 2001) ele diz que quando as pessoas estão despertas a mente compara automaticamente essas imagens do sonho com o que vê, ouve e sente – os sonhos são corrigidos pelos sentidos. Ou seja: se entendi bem, a mente está o tempo inteiro processando situações, inventando-as, manipulando imagens, fazendo associações de idéias, mas o que ela faz é constantemente interferido pelos sentidos, pelo fato de que estamos acordados, cercados de outras pessoas que nos dizem coisas, nos mandam fazer isso ou aquilo. 

Somos forçados a pensar socialmente, pensar em conjunto, e isto cria um superego de obrigações e compromissos coletivos.

A loucura poderia ser algum desarranjo em que o “input” sensorial deixa de prevalecer sobre o caldeirão borbulhante da mente-em-si. Experiências com LSD seriam um modo artificial de produzir algo semelhante. Quando dormimos, a mente consegue trabalhar em paz, de acordo com suas próprias regras, sem ter que ficar dialogando com o mundo material. 

Já foram feitas experiências em que voluntários num laboratório foram impedidos de dormir. Depois de 3 ou 4 dias eles começam a sonhar acordados. O sistema sensorial afrouxa, enfraquece – e a mente crua toma conta.





quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

2800) Frases longas ou curtas (23.2.2012)



Todos os manuais de escrita nos aconselham a usar frases curtas, na voz ativa e em ordem direta. O leitor deve avançar na escrita sem ter que voltar atrás a toda hora. Isto é uma tendência do jornalismo em geral e da prosa realista norte-americana, duas formas de escrever que às vezes são confundidas uma com a outra, até pelos seus próprios praticantes. Eu não tenho nada contra esse estilo; tentar praticá-lo me ajudou muito a tornar mais clara a minha maneira de escrever. Mas de vez em quando eu penso comigo mesmo, como pensa o escritor Pico Iyer neste artigo (http://lat.ms/ycShNj): “se continuarmos neste caminho, áreas inteiras das nossas sensações e da nossa cognição acabarão se perdendo”.

E ele faz uma defesa da frase longa, de muitas orações encapsuladas umas dentro das outras; a Frase Proustiana, que a crítica reverenciou por tanto tempo e com um entusiasmo tão desmedido, embora compreensível , que ela acabou se transformando numa espécie de modelo cruelmente imposto a jovens escritores que nem sempre, mesmo que admirassem Proust, estavam preparados (ou tinham uma inclinação natural) para exprimir-se da maneira que Proust se exprimia, e desse modo o que era para ser o apogeu da forma de um artista fora-de-série acabou se transformando numa fórmula ideal forçada de cima para baixo, que estragou muitas vocações e carreou para si (e para o escritor que a havia burilado tanto tempo atrás) críticas escarninhas e em grande parte injustas, embora inevitáveis no contexto distorcido que as motivou.

Proust ou Hemingway? O autor do Velho e o Mar virou o símbolo da tendência oposta. O mestre da frase curta e seca, que diz tudo e se detém. O próprio Iyer lembra: “Um escritor de muitos recursos como Hemingway ou James Salter é capaz de colocar inúmeras nuances e sugestões mesmo na frase mais curta e mais direta”. A verdade é que deveríamos ser capazes de dominar as duas técnicas, sem querer emular os dois extremos. Iyer define a frase longa como “a série de orações que é cheia de compartimentos, que é pródiga e abundante em nuances de tom e em sugestões, que tem tanto espaço para a quase-contradição e a ambiguidade e para os lugares da memória e da imaginação que não pode ser simplificada, ou posta em palavras banais, e que permite ao leitor manter muitas coisas na mente e no coração ao mesmo tempo, e descer, como se descesse uma escada em espiral, cada vez mais para dentro de si mesmo e para dentro do que não pode ser tratado em termos de ou-isto-ou-aquilo”. Um talento cada vez mais raro, talvez. Mas que nunca desaparecerá, porque é fonte de beleza e aprofundamento; algo como tocar harpa ou jogar xadrez.

2799) Quando meu tempo (22.2.2012)




Quando meu tempo se esgotar, sentirei minhas veias se esvaziando da banda-larga biológica que as percorre; sentirei as cores do mundo sumindo, a granulação da vista aumentando, até que todas as imagens à minha frente se pulverizarão como um redemoinho de pixels negros numa página branca, e acontecerá com minha memória o quer acontece quando uma carta escrita com pequenos montes de pó de café é levada de camelo através de Saaras e simuns.

Surgirá na ponte levadiça do meu Castelo uma carroça de fibra-de-vidro puxada por quatro pares de robôs andrajosos, enferrujados, resfolegantes, e o cocheiro será um orangotango com implantes cibernéticos no lobo frontal. Ao lado deste, estará um produtor executivo vestindo terno preto, camisa chumbo e gravata preta, com um contrato na mão, uma folha de papel onde os termos finais foram redigidos com pó de café e trazidos à minha porta através da guerra da tomada do meu Castelo.

Eu estarei sozinho para me defender, mas de arma em punho, e ironicamente a última arma que escolhi para me defender é o multicontrole remoto de onde consigo acessar quatro palácios de governo, seis divisões motorizadas, noventa e duas bibliotecas digitais, o celular privado de dezoito chefes de Estado e os de suas dezoito primeiras damas, as 500 webcams dispostos em 360 graus em torno do Castelo. Penso com ironia que esta super-arma só mereceria este nome se trouxesse embutida uma minibomba atômica que pudesse pelo menos volatilizar toda a matéria em cem metros de raio, dispersando seus átomos como se fossem grãos de café.

Sem desfraldar bandeiras, sem partir grilhões, sem botar muralhas abaixo com trombetas e rajadas, meu tempo se esgotará. Sem frases altissonantes, sem webcams mundo afora, sem incensos e mantras, sem dó nem piedade, meu tempo se esgotará. Se esgotará espremendo-se a si mesmo para que haja significado em cada átomo, em cada átimo, em cada gotinha de suor e em cada gotinha de tinta que minha caneta pingar no papel ou meu dedo gravar em pixel na tela eletrônica.

Quando meu tempo se esgotar estarei ainda com meu corpo neste mundo real, onde ele poderá ser submetido às humilhações messiânicas da Medicina que prolonga agonias; mas a minha mente, envolvida no vórtice-turbilhão com que desaparecerá em si mesma, será capaz de saber e de distinguir, será capaz de entender e de imaginar. Meu tempo terá se esgotado, minha matéria estará se desagregando aos vendavais furiosos da entropia, mas a mente é mais do que a matéria que lhe deu vida. A mente sobreviverá ao corpo, orgulhosa e brilhante; por um milionésimo de segundo, mas sobreviverá ao corpo, quando meu tempo se esgotar.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

2798) Eu não sou robô (21.2.2012)



A imagem do Segurança tremeluzia diante de mim, no saguão virtual. Era um homem de meia idade, terno escuro, olhos orientais. “O senhor está tentando acessar a sua conta de um terminal desconhecido”, disse ele. “Sim”, falei, “estou em viagem, em Bangcoc, preciso fazer uma transferência urgente”. “Seu código visual parece em ordem”, disse ele, “mas vamos ter que fazer um pequeno teste”. “Para quê?”, perguntei. “Para saber se o sr. não é um robô”. “Claro que não sou robô. Por acaso eu me pareço com um tonel de óleo?”. “A palavra robô é usada aqui como categoria abstrata”, disse ele, “e de acordo com o seu perfil de cliente, pois consta em nosso cadastro que o sr. escreve ficção científica”. “Amigo, eu vim à Tailândia receber um prêmio, tenho que trocar isto da moeda daqui para o real, pagar as malditas taxas, e creditar na minha conta no Brasil, porque meu voo para Moscou é à tarde”. “Sem dúvida, e parabéns pelo prêmio, estou conferindo aqui que o sr. é o primeiro escritor brasileiro premiado na Tailândia”. “Beleza, isso mesmo, fico grato, e mais grato ficarei se me deixar fazer minha transferência”. “Primeiro”, disse ele, “vamos ter que fazer um pequeno teste, para saber se o sr. não é um robô”. “Como assim, um robô? Vocês não tem minha imagem no cadastro, meu perfil vocal, essa besteira toda?”. “Senhor, a tecnologia avançou muito. Tem havido infiltrações nos cadastros, e sistemas de pirateamento estão usando robôs para milhões de tentativas simultâneas de acesso às contas. Preciso saber se estou lidando com um ser humano”. “OK, desisto. Faça o teste”. “Como o sr. descreveria o sabor de uma tangerina?” “Meu amigo, isso é uma brincadeira?!” “Sr. Braulio, esta é uma reação típica de um robô. A mudança de assunto”. “Mas o que diabo tem tangerina a ver com transferência bancária, e o que diabo sabor de tangerina tem a ver com robô?” “Um robô não tem experiências sensoriais, gustativas. Eu, por exemplo, sou um robô, e não saberia fazer essa descrição. Sua resposta será transmitida através de mim para quem possa julgá-la”. “Tá bom, tá bom. A tangerina tem um sabor doce, ácido. Um pouco mais adstringente do que uma laranja doce mediana”. “Obrigado.” “Passei no teste?”, perguntei. Ele: “Na verdade, queríamos apenas ganhar tempo enquanto redirecionávamos sua transferência para nossas contas clandestinas”, disse, e erguendo a mão arrancou o rosto. Por baixo dele, havia uma máscara de Guy Fawkes, que sorriu e continuou: “Somos os Anonymous, mané, e escritor que recebe prêmio de governo tem que dar sua contribuição à causa”. Deu um pipôco e sumiu no ar, deixando um cheiro adstringente de tangerina.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

2797) A Vida e os Tempos de Tombstone Bill (19.2.2012)



Cap. 1 – De como o menino Bill Hazlitt, aos 7 anos, teve sua família assassinada por sicários a mando de um fazendeiro, e só escapou com vida porque fugiu para o milharal e se escondeu dentro do espantalho. 

Cap. 2 – De como Bill viajou a pé para a região de Tucson, onde moravam seus tios-avós, e ao chegar lá encontrou a fazenda ainda sendo incendiada pelos apaches.

Cap. 3 – De como Bill pegou uma carona num carroção que vinha de Phoenix, sem saber que ali viajavam dois escravos em fuga, motivo de uma emboscada que deixou o carroção em cinzas, os escravos enforcados e Bill sendo adotado pelo chefe da expedição punitiva, o dr. Jedediah Willoughby, que exibiu o garoto à população de Tombstone, descrevendo os maus tratos a que os réprobos o tinham submetido, mesmo com as veementes negativas do menino, o que levou a Sra. Willoughby, presidente da Associação de Mulheres Brancas Pela Paz e Pela Decência, a enfiar-lhe uma echarpe na boca.

Cap. 4 – Vertiginosa sucessão de malfeitos, delitos, crimes e transgressões que Bill praticou, sob o olhar complacente do dr. Willoughby e as recriminações de sua esposa, até se transformar aos 20 anos em Tombstone Bill, terror dos homens da lei e vertigem das donzelas locais.

Cap. 5 – De como T-Bill assaltou o Grand River Bank, em Boulder, Colorado.

Cap. 6 – De como T-Bill torrou o dinheiro todo no saloon ao lado.

Cap. 7 – De como T-Bill se apaixonou pelas coristas Mimi Dupont e Laura Clintwood, e levou as duas consigo enquanto se decidia.

Cap. 8 – De como T-Bill e as moças foram emboscados pela quadrilha dos Arlington Boys, e ele abateu seis inimigos e feriu onze para defender a honra de suas bem-amadas.

Cap. 9 – De como T-Bill e as garotas foram capturados e levados para o rancho dos Arlington, para que o patriarca, Big Bob, decidisse a melhor maneira de compensar aquele inesperado prejuízo.

Cap. 10 – De como Big Bob foi com a cara de T-Bill e decidiu dar-lhe a chance de jogar no pôquer a própria libertação.

Cap. 11 – De como T-Bill, numa noite que entrou para a História, ganhou não só a liberdade mas o dinheiro e a fazenda de Big Bob, tornando-se proprietário de cem hectares de terras férteis, mil cabeças de gado, líder de trinta capangas e marido de Mimi e Laura ao mesmo tempo (pra simplificar).

Cap. 12 – De como T-Bill invadiu Tombstone, desarmou as autoridades, cobriu o dr. Willoughby e esposa de alcatrão e penas, proclamou a cidade uma República Independente, proclamou-se (paradoxalmente) imperador sob o título de Tombstone I, e morreu engasgado com um osso de frango ao achar graça numa piada contada por Big Bob, que ele havia nomeado seu ajudante de ordens.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

2796) Dicionário Aldebarã III (18.2.2012)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Os verbetes abaixo foram recolhidos do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Ansins”: aqueles dias em que, sem motivo aparente, a casa de uma pessoa é visitada sucessivamente por dezenas de amigos e conhecidos que passam algum tempo e vão embora, dando lugar a novos visitantes.

“Temions”: painéis refletores que se usam nas cidades de Aldebarã para projetar a luz solar em recantos das ruas, das casas, etc. onde ela não bate ao longo do dia.

“Riggim”: a sensação de embriaguez causada por uma refeição qualquer ao fim de um jejum prolongado.

“Siltins”: as imitações, cada vez mais diluídas, de algo que teve importância ou fez sucesso no passado.

“Yok-Dangs”: animais domésticos que alguns aldebarãs mantêm em casa para encher de cuidados e de carinhos. “Yok-Wimps”: animais domésticos que alguns aldebarãs mantêm em casa para encher de serviços pesados e maus-tratos.

“Hayands”: pequenas rolhas aromáticas que os aldebarãs colocam nas garrafas de bebida depois de abertas, proporcionando degustação mais sutil e variada das bebidas ali contidas.

“Bezzkoms”: poemas tradicionais em que a primeira palavra de cada linha deve começar pela mesma letra inicial da última palavra da linha anterior.

“Luinn”: o ruído musical que faz uma bacia ou vasilha metálica ao ser retirada de dentro dágua.

“Angrum”: a surpresa que temos ao encontrar por acaso uma pessoa que pensávamos já estar morta.

“Miklon-Lu”: espécie de louça, fabricada a partir da porcelana e da celulose, que é praticamente inquebrável e não faz ruído ao ser manuseada.

“Amdrupp”: roldanas artesanais, com cordas bem finas, que correm horizontal e verticalmente na parede externa dos edifícios, e servem para os vizinhos trocarem recados e pequenos objetos apenas indo à janela.

“Zendel”: a surpresa que temos ao perceber que duas pessoas de quem ouvíamos falar são na realidade uma só.

“Flinken-dy”: os ruídos confusos de gritos, vozes e outros barulhos que nos fazem perceber que alguma coisa anormal está acontecendo num lugar que não podemos ver.

“Liumphs”: conchas acústicas desmontáveis que os poetas ambulantes afixam às costas quando cantam ao ar livre.

“Allybess”: aves criadas no cativeiro e que, mesmo soltas da gaiola depois de grandes, só conseguem voar nas vizinhanças da casa onde cresceram.

“Colludrys”: combinação de alimentos inofensivos mas que, consumidos juntos, podem se tornar um veneno mortal.




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

2795) FC e linguagem (17.2.2012)



(William S. Burroughs)

As fórmulas para escrever bem são como as fórmulas para ser feliz. A gente lê, entende tudo, e fica na mesma. Por que? E por que motivo existem tantas oficinas literárias, cursos universitários de escrita criativa, e assim por diante? A multiplicação (e a variedade) das fórmulas mostra apenas que não existe uma fórmula, mas cada escritor ou crítico foi capaz de perceber uma atitude, um método ou um truque que foi de utilidade para alguém no passado. E o presente continua na mesma, porque o que ajuda alguém a escrever não é uma fórmula; talvez seja a combinação única de uma dúzia de fórmulas que se harmonizam com seu jeito pessoal de pensar e de trabalhar.

Richard Harding David (1864-1916) disse: “O segredo da boa escrita é dizer uma coisa antiga de uma maneira nova ou uma coisa nova de uma maneira antiga”. Pode-se substituir coisa por idéia, e maneira por estilo. Esta frase, curiosamente, ecoa o que dizem muitos teóricos da ficção científica, para os quais temática de FC e técnica vanguardista não combinam. Por que? Porque a dose de novidade na temática FC é muito grande, requer do leitor, a partir da página 1, que se familiarize com outro planeta, outra civilização, outros hábitos, outra tecnologia... Existe uma estranheza fundamental na matéria descrita, e se a essa estranheza soma-se algum tipo de estranhamento na linguagem, o leitor se vê duplamente perdido.

Claro que poderíamos questionar isto exibindo muitas obras bem sucedidas de FC que têm uma linguagem no mínimo anticonvencional, como os romances de William S. Burroughs, mas não consigo imaginar toda a FC do mundo sendo produzida com aquela linguagem. A linguagem padrão da FC tem sido o romance tradicional, que é narrativo, descritivo e digressivo. A montagem dos capítulos, a organização dos parágrafos, a pontuação, tudo isso em mais de 100 anos tem se mantido muito homogêneo tanto na FC mais comercial e ingênua quanto na FC mais intelectualizada e inovadora. A sintaxe do romance clássico se expõe e se oferece para ser contaminada pelas doses vertiginosas de novidade e estranheza da história a ser contada, das “dramatis personae” convocadas à ação (alienígenas na raiz da palavra) e dos ambientes que o leitor é forçado a criar em sua própria mente, porque não correspondem a nada que ele tenha presenciado.

A FC tende a ser (embora jamais o seja 100%) um caso de “uma coisa nova de uma maneira antiga”; e isto é parcialmente confirmado pelo seu inverso, a literatura vanguardista, que em geral aborda temas e cenários banais ou minimalistas, para que o impacto da linguagem não sofra a interferência de um impacto de conteúdo.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

2794) K: The Game (16.2.2012)




(The Modern Word)

Recebi anteontem o pacote da TrialAndError Inc., contendo a versão 1.0 de K, o game mais badalado desta estação. Como de hábito, mergulhei direto na experiência do jogo em si, sem consultar o material preparatório. Faço isto porque um game deve se assemelhar à vida, na qual desembarcamos sem ter feito cursinho ou treinamento. E não me arrependi. 

Um exame perfunctório da caixa me deu a idéia de que o jogo se concentrava na obra O Processo, mas no momento em que penetramos naquele labirinto percebemos que (possivelmente) toda a obra de Kafka irá se recriar diante dos nossos olhos, nas ruas de uma Praga em tons alternados de azul-chumbo, sépia-ferruginoso, cinza-grão, mogno-em-chamas.

A peregrinação de Joseph K pelos corredores do poder não se dá sem uma série de confrontos físicos (os dois agentes que o perseguem são especializados em castigos corporais, nos quais o jogador incorre com frequência, aleatoriamente). 

Demorei um pouco até perceber que a morte por degola num terreno baldio é uma possibilidade recorrente neste jogo, e, quando ocorre, é habilmente sucedida por um despertar em que o jogador acorda sob a forma de Gregor Samsa. 

E necessita cumprir uma série de tarefas, e vencer uma série de obstáculos, até conquistar o direito de acordar de novo como Joseph K na manhã de sua detenção, e começar de novo.

O Castelo aparece como um labirinto transdimensional que exige do jogador o máximo de acuidade de vista, reflexos rápidos, perfeita coordenação motora, além da capacidade de travar um diálogo metafísico e consequente enquanto corre ao longo de corredores-moebius sem fim. 

Respostas erradas às perguntas dos prepostos do Conde de West-West aumentam a ambiguidade geométrica dos abismos em forma de fractal.

A sutileza e a indireção estão presentes no jogo: a fase Samsa é um game em primeira pessoa em que não vemos o inseto que somos (não há espelhos na casa), e temos que adivinhar (sofridamente) como ele se locomove, se alimenta. 

Na fase “Colônia Penal” (um dos castigos alternativos para K), não sabemos quais as frases tatuadas na pele do condenado, mas todos poderão lê-las e agirão de acordo (sem nos explicar nada). 

A Muralha da China é outro labirinto interminável, em que é preciso montar citações literárias como tijolos num texto coerente, até fazer surgir na Muralha alguma das portas que levam ao Castelo. 

É um jogo intensamente literário; obras dos autores favoritos de Kafka podem ser lidas ou consultadas nas onipresentes estantes. Um dos universos-de-imersão mais fascinantes e inesgotáveis que a indústria dos games nos proporcionou nesta década de 2050. Cotação: 5 estrelas.