quinta-feira, 21 de julho de 2011

2614) Penelopismo (21.7.2011)



(Penélope desfazendo sua Tapeçaria, por Leandro da Ponte Bassano)

Penélope, esposa de Ulisses na Odisséia. Rodeada de pretendentes. Marido demora anos para voltar da guerra. Viúva bonita e rica. Verdadeiro “chama” para gregos desocupados. Palácio de Ítaca cheio de candidatos ao golpe do baú. Ela insiste: marido vivo, vai voltar cedo ou tarde. Bola uma desculpa: não pode casar porque está bordando tapeçaria. Quando acabar o trabalho, casa. Passa a tecer de dia, destecer de noite.

Tapeçaria de Penélope é todo trabalho que demora a ser concluído, levando a supor que alguém o está desmanchando na calada da noite para evitar que ele um dia chegue ao fim. Virou um clichê da imprensa. O Chinese Democracy do Guns’n’Roses, que as revistas chamavam de “o disco mais caro da história do rock”, passou anos dando despesas (de 1994 a 2007). Lançado em 2008, não sei se compensou a espera, porque ignoro solenemente o Guns’n’Roses. Outro exemplo é a antologia de FC The Last Dangerous Visions, que o organizador Harlan Ellison prometeu para 1973. Reuniu uma porção de contos de autores diversos e até hoje não a publicou. Isto já gerou brigas, processos judiciais e até um livro-libelo do autor Christopher Priest (The Book on the Edge of Forever), descascando Ellison.

O penelopismo pode ter as origens mais variadas. O filme Chatô de Guilherme Fontes nunca ficou pronto (dizem os jornais) por descontrole orçamentário. O “livro novo” de Ariano Suassuna (continuação do Romance da Pedra do Reino) nunca fica pronto porque todo dia Ariano tem uma idéia, faz correções à mão e depois tem que redatilografar as mil páginas do texto (que outro motivo pode haver?). Caso clássico de romance que ficou incompleto e mesmo assim foi publicado é O Processo. Kafka escreveu o começo e o fim, e ficou um tempão trabalhando no meio do livro, sem nunca concluí-lo. Jorge Luís Borges (o primeiro tradutor argentino de Kafka, em 1938) observou, com a perspicácia habitual, que é da própria natureza de um livro labiríntico como O Processo que o autor jamais conclua a sua redação: “A crítica lamenta que nos três romances de Kafka faltem muitos capítulos intermediários, porém reconhece que esses capítulos não são imprescindíveis. Eu tenho para mim que essa queixa indica um desconhecimento essencial da arte de Kafka. O ‘pathos’ desses romances inconclusos nasce precisamente do número infinito de obstáculos que detêm e voltam a deter seus heróis idênticos. Franz Kafka nunca os terminou, porque o primordial era que fossem intermináveis”.

Alguns desses penelopismos são involuntários, ou seja, o autor tem a intenção sincera de finalizar aquele troço algum dia, simplesmente não está conseguindo. Devem ser raros os casos de penelopismo verdadeiro, de alguém que não quer terminar aquilo de jeito nenhum. Por insegurança quanto à recepção dos leitores? Por excesso de perfeccionismo? Porque o prazer de estar fazendo é mais importante do que o alívio por ter feito?

quarta-feira, 20 de julho de 2011

2613) A criação através de um erro (20.7.2011)




O erro é muitas vezes um auxiliar da criação, porque nos leva a dizer ou fazer coisas que normalmente jamais nos ocorreriam. 

Nem todo erro é criativo e talvez a imensa maioria deles seja uma simples atrapalhação que é preciso voltar atrás e corrigir; mas cabe a quem cria estar atento para as colaborações do Acaso, e saber incorporá-las quando vale a pena. 

Um engano trazido pelo Acaso pode fazer surgir uma informação nova, enigmática, inquietante, num lugar onde antes havia apenas um obeso Lugar Comum, bocejando e lixando as unhas.

Reza a lenda que William Burroughs estava em Tânger enviando para seus amigos Jack Kerouac e Allen Ginsberg, pelo correio, os fragmentos de textos que iriam compor seu primeiro romance. Quando terminou, fez uma ligação internacional para os EUA para conversar com Kerouac, e pediu-lhe uma sugestão para o nome do livro. A ligação estava péssima; Kerouac sugeriu Naked Lust, “Luxúria Nua”. Burroughs entendeu Naked Lunch, e o livro tornou-se famoso até hoje como “Almoço Nu”. 

Depois, pressionado para explicar à imprensa (esta loura de microfone em punho, sempre carente de explicações) o significado do título, disse: “Significa aquele momento, congelado no tempo, em que todo mundo enxerga o que está na extremidade de cada garfo”.

Muitas vezes o erro é de leitura feita às pressas e resulta numa frase diferente da que de fato estava impressa. Uma vez, procurando algum livro na minha estante, vislumbrei de relance um título numa lombada, A Borboleta é a Morte. Fiquei intrigado, porque não me lembrava de ter nenhum livro assim chamado. 

Durante alguns segundos imaginei um romance policial, talvez de Dorothy Sayers ou de Celia Fremlin, em que uma misteriosa borboleta funcionaria como ameaça de morte iminente ou como pista provocativa deixada por um assassino. Ledo engano! Era o saboroso livro de Alberto Manguel, A Biblioteca à Noite.

Uma vez eu ia de ônibus por uma rua qualquer quando vi, pichado num muro: “Desajuste ama”. Achei parecido com certas pichações que a rapaziada fazia em Olinda anos atrás, como “Se você me ama, deixe um recado na cama”. 

Fui em frente. Dias depois, no mesmo ônibus, na mesma rua, lembrei e resolvi conferir. Ah, que anticlímax. A frase era apenas “Jesus te ama”.

Eu vinha num carro com uma turma de amigos e ao passar diante de uma igreja um deles comentou: “Que coisa esquisita nessa igreja! Missa dos Infernos!”. Tive uma visão fugaz de um ritual satanista, cruzes invertidas, imagens de Belzebu. Sosseguei apenas quando olhei pela janela do carro e pude ver que se tratava apenas da “Missa dos Enfermos”, celebrada ali periodicamente. 

Igual alívio senti quando meu filho leu num muro: “Mercenários - Armados”, e depois percebeu que era apenas “Marceneiros – Armários”. Às vezes entrevemos uma palavra que nos é pouco familiar, e nossa tendência é ver, no lugar dela, uma palavra mais freqüente no nosso repertório do dia-a-dia.





terça-feira, 19 de julho de 2011

2612) O melhor amigo do homem (19.7.2011)





Rex, abre a janela e se estiver fazendo um dia bonito dá três latidos. Beleza. 

Rex, vai na cozinha. Tem uma chaleira com água, em cima do fogão. Torce o botão com a boca, aperta o acendedor com o focinho. Deixa que o resto em mesmo faço. 

Uaaaaah. Agora vou tomar meu banho. Rex, depois vai no meu quarto e forra a cama, visse?

Rex, vê só as ironias da história. Pacote de biscoito? Obrigado. A humanidade desperdiçou bilhões de dólares tentando fabricar robôs de metal, com juntas articuladas, circuitos eletrônicos, garras preênseis de alumínio e titânio, na esperança boba de que essas catrevagens conseguissem nos ajudar nas tarefas cotidianas. Quebraram a cara, não foi? 

Me passa aqui a geléia. Valeu. Pois é, podem servir para montar carcaças de automóveis em Detroit ou Betim, mas eu mesmo é que não queria uma daquelas aranhas niqueladas tilintando por dentro da minha casa. Não tenho empatia com máquinas. Máquina não sente a dor de uma topada, e por isso é indiferente às nossas. Máquina pensa como inseto. 

O ser humano precisa de um ambiente mamífero à sua volta. Pega aqui o jornal, bota no balde de lixo, o de lixo de papel pra reciclar. Obrigado.

Rex, leva os pratos pra pia e liga meu notebook enquanto eu escovo os dentes. Acho que o ser humano se encantou demais com essa besteira de instrumentos. Acha que todo o trajeto evolutivo do ser humano tem que ser por aí. Besteira. 

O antropóide primitivo usou um pedaço de pau ou de osso pra quebrar algum galho, deu certo, e daí em diante ele só conseguiu enxergar a evolução social em termos de pedaços-de-osso-artificiais. Feito aquele macaco de 2001, Rex, aquele que você late sempre que vê na tela. Do osso para a espaçonave. Um milhão de anos de equívocos. Pega ali meu celular na mesinha de cabeceira.

Bem, como eu ia dizendo, não era por aí. Desprezamos a convivência das criaturas biológicas para perseguir essa devaneio bobo de fabricar criaturas de metal. Rex, se ao invés de construir o primeiro simulacro humano tivéssemos feito o primeiro upgrade num cachorro, teríamos queimado um milhão de etapas. 

Tocaram a campainha, vai lá. Se for o síndico bota pra correr. 

Foi preciso uma crise econômica mundial para que esquecêssemos esse delírio de produzir engenhocas. Para que investíssemos em escolas de humanização de animais domésticos, de interfaces semióticas, de socialização em nosso benefício mútuo. 

Era o Sedex? Põe na escrivaninha. Descobrimos que cães, chimpanzés, golfinhos, corvos e muitos outros são um exército-reserva de bilhões de operários, secretários, mordomos em potencial, bastando apenas que lhes sejam dados os benefícios da bio-graduação e da escolarização especializada. OK, vou trabalhar, pode ligar a TV e assistir Os Simpsons

Não troco você pelo R. Daneel Olivaw de Asimov nem pela Rose dos Jetsons. Melhor do que você, Rex, só mesmo Gisele Bundchen de avental, mas machismo hoje é proibido por lei.




domingo, 17 de julho de 2011

2611) Escritores e marketing (17.7.2011)




Fala-se muito que os escritores hoje em dia estão mais preocupados em fazer marketing do que em escrever. Que injustiça com o século. Quem foi que teve pela primeira vez a bela idéia de fazer lançamento de um livro com noite de autógrafos? Um marqueteiro “avant la lettre”. Fico imaginando um autor sisudo como Tolstoi recebendo uma carta de seu agente literário:

“Prezado Leo Nikolayevitch: Tive uma excelente idéia para o lançamento de Guerra e Paz. Ao invés de mandar os exemplares para as livrarias e cruzar os dedos, podemos fazer da aparição deste romance um acontecimento de que toda a Rússia tomará conhecimento, o grande acontecimento de 1869. Primeiro, reservaremos um espaço público, bem conhecido, bem frequentado. Pode ser uma livraria, um restaurante. Divulgaremos através da imprensa que nessa noite você estará presente, em pessoa, e que cada leitor que comprar um livro terá direito a dirigir-se a você e pedir não apenas seu autógrafo, mas uma dedicatória personalizada! Como deve aparecer muita gente, deixaremos uma mesa reservada só para você fazer isto, e se houver muita gente pediremos que se organizem numa fila.

“Pensei em tudo: como você vive se queixando de má memória, a pessoa que vender os livros e passar o troco escreverá o nome do comprador num papel e o colocará dentro do livro, para que você possa fazer aquela encenaçãozinha: “Mas que beleza, que honra tê-lo aqui... esta noite... me prestigiando... meu caro Fiódor Mikhailovitch!!!...’ Sacou? Aproveitaremos para servir um coquetel, provavelmente vinho branco servido naquelas tacinhas de plástico que quando cheias ficam mais pesadas na parte de cima do que na de baixo e se desequilibram com a maior facilidade, principalmente quando colocadas na beira das prateleiras de uma livraria. Creio (um romancista como você me dará razão!) que pequenos imprevistos assim conferem uma sensação de espontaneidade e verdade psicológica ao evento.

“Leo, meu caro... Conheço meu gado! Sei que a esta altura você estará franzindo o sobrolho e erguendo objeções mudas a esta minha estratégia. Mas pense na concorrência, rapaz! A Rússia tá pegando fogo de escritores bons, está cheia de jovens pitbulls das letras rosnando em seus calcanhares, para não falar em futuristas como Maiakóvski, que ainda nem nasceram mas que herdarão a Terra. Você não pode dormir sobre seus triunfos. Temos que usar os poucos recursos de que dispomos, tendo em mente inclusive que Hollywood ainda não filmou o romance e isto inviabiliza meu plano de botar a foto de Audrey Hepburn na capa da edição em pocket. Você diz que seu compromisso é com os leitores? E então? Dê aos seus leitores aquela ilusãozinha de que são amigos seus, de que você, durante os poucos segundos que dura um autógrafo, tomou conhecimento da existência deles. O século 20, meu caro Leo, vai ser de quem convencer a platéia de que ela é mais importante do que o palco. Grave isto. No mármore.”



sábado, 16 de julho de 2011

2610) Superpoderes (16.7.2011)



Os heróis com superpoderes sempre nos fascinaram. Não há muita distância entre as Metamorfoses de Ovídio e os gibis da Marvel ou DC Comics. Freud escreveu um ensaio muito lúcido sobre o Herói na literatura popular. Quem é, pergunta ele, esse sujeito invencível, que conquista todas as mulheres, surra todos os inimigos, escapa de perigos catastróficos, deslinda mistérios impenetráveis? Ora (responde), é o Ego, é nosso rosto quando nos penteamos ao espelho, é aquilo que queremos ser. (Talvez não “queiramos” no sentido de ter isto como um objetivo concreto; mas fantasiamos sê-lo, para compensar nossas deficiências. Se você não pensar que é James Bond, não consegue azarar sequer a caixa do supermercado. Se você não pensar que é Napoleão, não consegue encarar uma reunião de condomínio.)

O filme Heróis (“Push”, 2009), de Paul McGuigan, mostra um grupo de pessoas com superpoderes desenvolvidos artificialmente por uma agência de espionagem. São tantos poderes que fiquei meio perdido e depois do filme fui consultar o saite. Olha só a lista dos poderes, de acordo com cada grupo:

“Movers”, que podem mover objetos com a força da mente. “Pushers”, que podem controlar os pensamentos de outras pessoas. “Watchers”, que podem ver o futuro. “Bleeders”, que emitem gritos em ultrassom, capazes de romper vasos sanguíneos do adversário. “Sniffs”, que podem rastrear pessoas. “Shifters”, que podem mudar temporariamente a aparência de um objeto aos olhos de outras pessoas. “Wipers”, que podem apagar memórias alheias. “Shadows”, que podem proteger a si mesmos e a outras pessoas próximas contra a detecção (dos Sniffs). “Stitchers”, que podem curar pessoas ou desfazer uma cura já feita.

É uma bela galeria daquilo que Freud apontou, no ensaio The Uncanny (“O Estranho”) como “a Onipotência do Pensamento”, a fantasia infantil de que somos capazes de modificar o mundo material com a mera força do pensamento, somos capazes de materializar idéias, de interferir no mundo físico sem mover um dedo. Os superpoderes do super-herói clássico, o Super-Homem, são da mesma natureza: poder voar, ser invulnerável, ter força descomunal, enxergar através das paredes, etc. A proliferação de histórias do gênero foi ampliando esse repertório. Em Scanners, os heróis são capazes de fazer explodir a cabeça de alguém. Em Jumpers, podem saltar fisicamente de um lugar para outro, bem distante. Se recorrermos ao repertório da Marvel e DC Comics, a lista não tem fim.

Cada superpoder das histórias de fantasia corresponde a uma impotência da vida real; cada um deles é inventado para suprir algo que somos incapazes de fazer. Cada superpoder é a compensação para os pequenos traumas da educação infantil, quando recebemos a terrível notícia de que não somos o Imperador do Mundo, não podemos fazer chover nem parar o sol no céu, não podemos comandar mentalmente o comportamento das outras pessoas, somos incapazes de mexer objetos sem levantar um dedo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

2609) Conversando com golfinhos (15.7.2011)



O personagem do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams viaja pelo universo entrando em contato com as raças alienígenas mais diferentes. Como faz para se comunicar com elas? Simples: ele enfia no ouvido um Babel Fish, um peixe que, por razões mais literárias do que científicas, atua como tradutor universal. Quem tem um Babel Fish enfiado no ouvido entende tudo que um alienígena diz (e faz-se entender, quando fala). A solução foi tão luminosamente simples que existe até um websaite de tradução instantânea (ao qual recorro quando preciso) com esse nome. (Ver: http://br.babelfish.yahoo.com/).

É de Douglas Adams (que está para a ficção científica assim como o Monty Python está para o cinema) esta profunda reflexão filosófica: “No planeta Terra, os homens sempre presumiram que eram mais inteligentes do que os golfinhos porque tinham criado inúmeras coisas: a roda, Nova York, as guerras, etc. – enquanto os golfinhos só sabem ficar fazendo bobagem na água e se divertindo. O que acontece é que os golfinhos sempre acreditaram que eram mais inteligentes do que os humanos, pelas mesmíssimas razões”.

Coube a Carl Sagan, que está para a ciência assim como o Prof. Pasquale está para a gramática, observar o seguinte: “É interessante notar que, enquanto alguns golfinhos foram capazes de aprender um pouco de inglês (cerca de 50 palavras, que eles conseguem aplicar nos contextos adequados) até agora nenhum ser humano foi capaz de aprender a falar golfinhês”. Ora, este estado de coisas está a ponto de mudar. A linguagem dos golfinhos, que são a espécie animal mais inteligente logo depois (há controvérsias) do homem, está sendo estudada por pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Georgia (Atlanta). O projeto CHAT (Cetaccean Hearing and Telemetry) desenvolveu um equipamento submarino que registra e analisa os sons emitidos pelos golfinhos. Os golfinhos são espertos. São capazes de obedecer corretamente ordens em inglês com diferenças sutis, como “traga o homem para a prancha” e “traga a prancha para o homem”. (Eu diria que eles entendem mesmo esse troço se obedecessem corretamente a algo como “para o homem a prancha traga”).

A tática dos cientistas é exibir objetos e ações e tentar descobrir quais as palavras que os golfinhos adotam para cada um deles, mas Denise Herzing, do projeto CHAT, admite: “Nem sequer sabemos se os golfinhos usam palavras”. Esta me parece a frase mais inteligente e realista de todo o projeto. “Palavra” é um conceito humano, e nem de longe um recurso universal. As abelhas são capazes de indicar a existência, o tamanho e a direção de uma fonte de alimento apenas “dançando” no ar. (Os linguistas afirmam que a dança das abelhas não constitui uma linguagem, e concordo; mas poderia ser a base para se criar linguagem que não usasse palavras). Talvez os golfinhos usem sons, movimentos e contextos, criando um número de combinações suficiente para suas necessidades de comunicação.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

2608) Perguntas ao futuro (14.7.2011)



O ser humano é provinciano por natureza. Sua província natal é a humanidade, é o oceano de idéias, emoções, sentimentos e valores que, bem ou mal, criam o ambiente mental em que ele consegue se sentir à vontade. Somos humanos, e tudo que é humano não apenas não nos é estranho, como é a única coisa que somos capazes de compreender sem que alguém precise bater em nossa cabeça com um rolo de amassar pastel. O que nos distingue uns dos outros é apenas o maior ou menor perímetro com que definimos esta humanidade, daí o fato de chamarmos de “provincianos” os moradores de cidade pequena que não conseguem entender os costumes da cidade grande, embora não digamos o mesmo dos habitantes de cidade grande que não entendem os costumes de cidade pequena. Por que? Porque esses conceitos são criados na cidade grande, para benefício e louvação dos seus.

Sempre me interessei por histórias de viagem no tempo, em que um sujeito de nossa época, mediante um prodígio qualquer, vai parar no futuro. Em narrativas assim, metade da minha curiosidade vai para esse mundo futuro imaginado, e metade vai para o protagonista: quem é ele, o que pensa, como vai se comportar, como vai reagir. É sintomático que, no momento em que o sujeito percebe que chegou ao futuro faça perguntas como “quem é o atual Presidente da República”, partindo do princípio, é claro, de que o sistema presidencialista vai ser mais duradouro do que as Pirâmides.

Um conto de Angélica Gorodischer, no livro La cámara oscura (2009), fala de um personagem que entra em contato com figuras do passado, e comenta: “François de la Rochefoucauld me levava a passear pelo bosque e me perguntava sobre o século 20 coisas com as quais eu não estava muito familiarizado. Não lhe interessavam nem os aviões nem os mísseis nem a televisão, mas queria saber como eram recebidos os escritores nos salões e se o terceiro filho de uma família nobre era militar ou podia escolher outra atividade; e eu não sabia nada sobre isso”. Sempre julgamos os outros mundos a partir dos critérios e das expectativas do nosso. Daí que um sintoma típico da ficção científica ingênua seja esse constante projeção do passado sobre o futuro. Alguém pega uma máquina do tempo, chega ao Brasil do ano 3500 e começa a perguntar pelas favelas, pelos escândalos parlamentares, pelos “reality shows” e pela Copa do Mundo de futebol.

Há mais de cem anos a FC descreve mundos alienígenas em que seres fisicamente monstruosos e incompreensíveis vivem sob regimes republicanos ou mantêm casamentos monogâmicos. Nossos extraterrestres são sempre feitos à nossa imagem e semelhança. Na maior parte da FC norte-americana os alienígenas têm uma cultura tão parecida com a dos americanos que os etíopes ou curdos pareceriam seres de outra galáxia. São poucos os escritores de FC capazes de descrever um mundo futuro ou extraterrestre capaz de nos produzir uma verdadeira sensação de estranheza, de “alienidade”.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

2607) “O Mar, a Escada e o Homem” (13.7.2011)



(The Truman Show, de Peter Weir)

Entre os sonetos de Augusto dos Anjos, este sempre me chamou a atenção pelas sugestões visuais que contém, criando um clima muito diferente do que se vê nos demais poemas. O soneto começa como um diálogo em que o Mar se dirige ao homem: “Olha agora, mamífero inferior, / À luz da epicurista ataraxia, / O fracasso de tua geografia / E do teu escafandro esmiuçador! // Ah! Jamais saberás ser superior, / Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia, / Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia / Voando ao vento o vastíssimo vapor. // Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”

São nove versos, ou seja, a voz do Mar ocupa os dois quartetos iniciais e invade a primeira linha do primeiro terceto, preparando uma rima riquíssima (“íngreme” / “singre-me”). Ele se dirige ao Homem dizendo, basicamente (pra diluir Augusto precisa de muitos litros de conversa) que ele jamais será superior ao Mar, mesmo sendo capaz de singrá-lo com barcos ou mergulhar nele com escafandros. (E que bela aliteração, com a sugestão visual e pontuda da quilha do barco, este “voando ao vento o vastíssimo vapor”). O Mar se oferece ao Homem como um desafio intransponível ao corpo (o desafio de atravessá-lo) e à mente (o desafio de entendê-lo).

Nesse instante, porém, antes que o Homem possa responder ao Mar, interfere no diálogo um terceiro interlocutor: “E a verticalidade da Escada íngreme: / “Homem, já transpuseste os meus degraus?”. Diferentemente do Mar, que profere uma interpelação relativamente extensa, a Escada limita-se a esta breve pergunta. Mas o resultado é arrasador: “E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços, / ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços / no pandemônio aterrador do Caos!”.

Posso estar delirando, a esta hora da noite, mas este poema me parece fundado na sugestão visual da letra H maiúscula, que reproduz o degrau de uma escada (não as escadas de pedra e cimento dos nossos prédios, mas as compridas escadas de madeira ou de corda de que nos servimos para escalar alguma coisa). Esse H é o de Homem, Hércules, Hélice, Hórrida... Justapostas, essas letras formam uma escada vertical que se contrapõe à superfície horizontal do Mar. Como um eixo cartesiano, um entrecruzamento de dois infinitos inacessíveis ao Homem.

Esta sugestão não me parece descabida, pois em nenhum outro ponto de sua obra Augusto dos Anjos (que aliás usa a palavra “augusto” com certa frequência, de variadas maneiras) chama a si mesmo de Hércules. Simbolismo proposital? Eu chamaria a isto de associação de idéias que beira a escrita automática dos surrealistas: a visão intuitiva de uma escada infinita que sobe ao céu lhe deixa na mente esse ícone da letra H que acaba contaminando seu vocabulário. Augusto deixa-se (num acesso de impotência tão frequente em seus poemas) cair de soluços no caos, por não ser capaz de escalar o infinito vertical da escada nem de explorar o infinito horizontal do oceano.

terça-feira, 12 de julho de 2011

2606) Cenas de batalha (12.7.2011)



Um comentário recente sobre a série de TV Game of Thrones levanta uma situação interessante. A crítica Mo Ryan escreveu: “Fiquei um pouco desapontada em ver que a maior parte dos personagens estão envolvidos numa guerra que não chegamos a ver”. E Alan Sepinwall observou: “Idealmente teríamos a certa altura algumas batalhas épicas, como em Braveheart, mas é preciso respeitar as restrições de tempo e de orçamento. Essas sequências custam uma fortuna, ocupam grande parte do tempo de um episódio, e de certo modo eu prefiro, ao invés disso, ver a cena de Tyryon em sua tenda, na véspera da batalha, contando a dramática história de sua ex-mulher, e saber que a cena da execução de Ned ficou tão bem feita porque houve tempo para prepará-la; ter isto é melhor do que ter num episódio uma ou duas longas cenas de batalha campal.”

Uma característica essencial da arte industrial é aquilo que os norte-americanos chamam “production values”, valores (ou qualidade técnica) da produção de um filme, peça, programa de TV. Um pouco deste espírito aparece em nossa televisão quando ouvimos falar no famoso “padrão Globo de qualidade”, ou seja, um programa produzido pela Globo tem que ser (independentemente de ser “artístico” ou não) uma produção com alto nível de perfeccionismo e competência do ponto de vista técnico.

Isto acaba tendo uma consequência interessante. Certos tipos de cenas exigem uma complicada logística para serem executadas. Por exemplo, cenas de multidão, cenas de batalhas, cenas de explosões e destruição, cenas com efeitos especiais sofisticados. Antes mesmo de qualquer consideração de ordem estética (se a cena vai funcionar ou não no contexto do filme) a cena em si tem que ficar tecnicamente bem feita. É o mesmo que se dá numa cena minimalista, com dois personagens conversando numa sala. Se a imagem estiver desfocada ou o som inaudível, de nada adianta a cena ser um primor em outros aspectos. Nas cenas de grande logística dá-se o mesmo, só que num grau muito superior de complexidade.

Críticos ranhetas como eu vivem torcendo o nariz diante das perseguições de automóveis, tiroteios coreografados, lutas marciais intermináveis (tipo Matrix) e outras coisas que fazem a felicidade do cinema industrial. Esse exibicionismo dos valores de produção marca a era de um cinema de técnicos feito para espectadores que apreciam a técnica, contraposto a uma época de um cinema de artistas feito para espectadores que apreciam a arte. No cinema de hoje, a técnica está tão hipertrofiada que toma a frente de tudo, forma seu próprio público (as pessoas que vão ao cinema para ver aquilo em primeiro lugar) e considerações artísticas são jogadas para escanteio com o diagnóstico de “bobagem de intelectuais”. O cinema está parecendo cada vez mais um show musical com som e iluminação impecáveis e canções medíocres. Que haja críticos de TV capazes de dizer o que foi dito acima por Sepinwall é um pequeno milagre.

domingo, 10 de julho de 2011

2605) O fantasma do desemprego (10.7.2011)




O que teria sido de Garrincha, se o futebol não o tivesse descoberto? Provavelmente teria acabado a vida como bodegueiro ou frentista de posto de gasolina. Graças ao Botafogo, tornou-se gênio, ídolo, alegria do povo, ganhou duas Copas. Viajou pelo mundo inteiro, conhecendo inclusive Roma, que para ele era “aquela cidade onde Dr. Zezé Moreira escorregou na porta do hotel”. 

O Acaso permitiu ao Brasil transformar um sujeito como ele numa fonte de geração de milhões de cruzeiros. Do ponto de vista de alguma agência de empregos de sua época, era um despreparado. Pois passem um raio-X nesse despreparado e vejam a relação custo-benefício dele.

Por outro lado, vão pra ponta do lápis e vejam quantos sujeitos formados em escolas públicas e universidades federais que, preparadíssimos pelo Estado ao longo de décadas, mal se formam vão ganhar a vida como aspones, taxistas, lixeiros. Isso quando não se tornam parasitas sociais de diversos tipos. 

Existe sempre um descompasso entre know-how e mercado de trabalho, entre avaliação sensata do que cada indivíduo tem para fornecer e utilização sensata dele dentro de um organograma social onde cada um faça alguma coisa útil.

Uma profissão é uma transação comercial estável em que um sujeito é pago para satisfazer uma necessidade que nem precisa ser da sociedade toda, pode ser de um pequeno grupo. O sujeito inteligente convence a sociedade, ou algum grupo, a contratar a habilidade específica que ele tenha. 

Vejam o caso de Sherlock Holmes e seus poderes dedutivos. Não era nada de novo. O cavalheiro Dupin, de Edgar Allan Poe, também os tinha. Lendo “Os crimes da Rua Morgue”, “A carta furtada” e “O mistério de Marie Roget”, vemos que Sherlock já está todinho ali. Conan Doyle reconheceu isto, afirmando que seu detetive era uma mistura de Dupin com seu professor de medicina Joseph Bell.

Em Um Estudo em Vermelho, sua primeira aventura, Holmes explica a Watson o detalhe que faz a originalidade de sua profissão: “Sou o primeiro detetive particular consultivo”. Dupin era um detetive diletante, que se envolvia nos casos por curiosidade ou por convite da polícia. Holmes, não. Sua casa é um escritório onde as pessoas mais diferentes vão pedir socorro, e pagam-lhe uma boa soma depois que o mistério é solucionado. 

Ele profissionalizou o detetive e o transformou numa profissão pública, que qualquer um pode contratar para resolver seus pepinos pessoais.

Quando falamos em crise no mercado de trabalho é porque temos gente qualificada que não encontra emprego, e empregos vagos que não encontram gente qualificada. Cabe aos indivíduos mais espertos fazer, como Holmes, uma avaliação de seus talentos, suas habilidades e sua disposição, e perceber de que modo isto pode ser transformado num modo de ganhar a vida. Uma profissão pode ser inventada tanto pela necessidade social quanto pela criatividade individual.