quinta-feira, 18 de novembro de 2010

2404) O Fla-Flu literário (18.11.2010)




Um Fla-Flu literário (Ed. Bertrand Brasil/Difel, Rio), de Mauro Rosso, é um desses livros que eram necessários mas ninguém sabia, só ficou sabendo depois que ele apareceu. 

Seu conceito é simples. Nos primeiros anos do século 20, quando o futebol estava começando a se consagrar como esporte no Brasil (embora um esporte de elite, não o esporte popular de hoje), havia gente a favor e gente contra, principalmente na imprensa. 

Mauro Rosso escolheu o grande Coelho Neto como exemplo dos a-favor, e o grande Lima Barreto como exemplo dos contra. E reproduz, com fartos comentários e análises, textos dos dois escritores, numa polêmica divertida e esclarecedora.

Uma das ironias do passar do tempo é que Coelho Neto, na época considerado por alguns o maior escritor brasileiro, está hoje completamente esquecido, acho que só quem lembra dele somos eu e Mauro Rosso. E Lima Barreto, o bebum, o maluco, o marginal, é reeditado sem parar, adotado nos vestibulares e estudado nas academias. 

Para ver o que era a literatura brasileira de 1910 ou 1920, é muito educativo ver lado a lado os textos dos dois. Coelho Neto é gongórico e multíloquo (estranhou? pois era assim que ele escrevia), enquanto os textos de Lima Barreto parecem ter sido escritos semana passada. O que dá a todos nós, redatores profissionais, um recado sobre temas como o futuro da língua e as chances de permanência estilística.

Lima criou em 1919 uma “Liga Contra o Futebol”, o qual denomina “o esporte dos pontapés”. Entre outras coisas, porque o via (corretamente, na época) como um esporte das elites, dos estudantes ricos, dos filhinhos de papai, um meio social de onde negros e pobres eram excluídos. Tinha seguidores, como Carlos Sussekind de Mendonça, que publicou em 1921 o livro O sport está deseducando a mocidade brasileira

Coelho Neto amava o futebol por estas mesmas razões, ou melhor, por razões mais compreensíveis, mas indissociáveis destas. Seus filhos “Prego” e “Mano” foram jogadores famosos, e foi a morte deste último por problemas cardíacos que desgostou o pai e acabou por afastá-lo dos campos.

O livro transcreve dezenas de artigos de ambos, mostrando o ambiente social e político que cercou a prática amadorística do futebol nas primeiras décadas do século, no Rio de Janeiro. No final, há um curto mas informativo apêndice intitulado “Futebol e os intelectuais em São Paulo”, no qual ficamos sabendo, entre muitas outras coisas, que uma polêmica semelhante a esta foi travada entre Oswald de Andrade (antifutebol) e José Lins do Rego (pró).

Digno de nota também é o fato de que Lima Barreto a toda hora cita Coelho Neto, direta ou indiretamente. Neto era famoso, rico, paparicado; atacá-lo era receita certa para obter atenção. Mas Coelho Neto recebe isso com olímpica indiferença, e, ironicamente, cita Lima Barreto pelo nome apenas num dos últimos textos transcritos no livro, para elogiá-lo após a morte, chamando-o de “escritor pujante” e “boêmio de gênio”.





quarta-feira, 17 de novembro de 2010

2403) Paul McCartney (17.11.2010)



Dizem que quando a mãe morreu Paul perguntou chorando ao pai: “E agora? Como vamos fazer, sem o dinheiro dela?”. A mentalidade prática nunca abandonou esse rapaz de rostinho bonito e um talento musical como poucos da sua geração e do seu país. Adolescente, costumava dormir com a guitarra na cama; trocou-a pela atriz Jane Asher, que era uma gracinha, além de ser inteligente, culta, e de ter colocado o namorado em contato com a vanguarda londrina do teatro e das artes plásticas. Deu a Paul, a partir de 1963, a mesma abertura de horizontes que Yoko Ono deu a John a partir de 1967. Paul passou a se interessar por literatura, por música erudita e de vanguarda, um tipo de conhecimento que iria emergir nos discos criados em estúdio pelos Beatles poucos anos depois.

Ainda assim, ele não perdeu a irreverência e a molecagem que tornava os Beatles tão encantadores para os sisudos londrinos. Quando uma jornalista meio intelectual lhe disse que estava lendo The Naked Lunch de William Burroughs, Paul replicou que estava lendo “The Packed Lunch”, de “Greedy Blighter”. Era o típico humor liverpudliano, uma mistura de nonsense, menosprezo à pomposidade, trocadilho na ponta da língua.

Os oito anos dos Beatles foram a história de uma lenta transição de poder entre a liderança de Lennon numa primeira fase e a de MacCartney (mais musical, mais perfeccionista, mais ralador) depois que o grupo trocou os palcos pelo estúdio. Sgt. Pepper’s é, de acordo com todos os depoimentos, um trabalho em que ele tomou a dianteira e os outros aderiram. Ele não era infalível. A catástrofe de produção que foi Magical Mystery Tour surgiu de uma idéia sua (“Vamos encher um ônibus com anões, mulheres gordas e gente excêntrica, sair viajando e filmar o que acontece!”) que não contou com Brian Epstein, a essa altura falecido, na produção executiva.

Paul era, de longe, o Beatle musicalmente mais dotado. A influência de seu pai, Jim, lhe trouxe uma formação em ritmos dos anos 1920-30, que iriam emergir em canções como “When I’m sixty-four”, “Honey Pie”, “Lady Madonna”, “Your mother should know”, etc.. Era também fascinado pelas “canções que contam historinhas com personagens”, o que resultou em músicas como “Lovely Rita”, “Eleanor Rigby”, “She’s leaving home”, “Rocky Raccoon”, além de outras mais bobinhas, que Lennon detestava (“Ob-La-Di, Ob-La-Da”, “Maxwell’s Silver Hammer”).

Na fase pós-Beatles, foi o que teve carreira comercial mais sólida, enquanto Lennon produzia uma obra mais pessoal e mais inquietante. Paul foi o primeiro Beatle a fazer trilha sonora para um filme (Lua de Mel ao Meio-Dia, 1966), e o primeiro a compor uma peça erudita de grandes dimensões, o Liverpool Oratorio (1991), em oito movimentos, em parceria com Carl Davis. Ele e Ringo, os Beatles que sobrevivem, continuam parecidos com os garotos que eram em 1966, e que, com sorte, continuarão ser para sempre, amém.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

2402) Liberdade de imprensa (16.11.2010)



(Ilustração: J. I. I. Grandville)

Liberdade de imprensa é liberdade de empresa. É uma coisa importantíssima e necessária, uma coisa que afeta a vida de todos nós. Mas não é um valor absoluto. Nós, jornalistas, temos o hábito de dizer (por fé democrática e por instinto de sobrevivência) que a liberdade de imprensa é um valor absoluto, mas não é, valores absolutos não existem. A vida, o amor, a liberdade... nada disso é valor absoluto, tudo precisa estar em contexto. Nada existe fora de contexto. Se a vida, por exemplo, fosse um valor absoluto, um sujeito não seria absolvido por tirar uma vida em legítima defesa. Se a liberdade fosse um valor absoluto, ninguém poderia ser preso. Se o amor fosse um valor absoluto, não se poderia condenar um homem que por amor matasse uma mulher. E assim por diante.

Liberdade de imprensa é a liberdade que têm os donos de um jornal (ou de uma empresa de telecomunicações, no sentido mais amplo) de defender os interesses que eles julgam corretos. Se julgam correta a democratização do país, eles usam seu jornal para lutar por isso. Se julgam correta a abolição da pena de morte, o protecionismo alfandegário ou as cotas raciais nas escolas, têm o direito de instruir seus empregados (os jornalistas) para defenderem essas ideias. Da mesma forma (visto que vivemos numa democracia) um dono de jornal ou de TV que julga correta a busca da maximização dos próprios lucros, dentro da lei, tem todo o direito de lutar por isso. Se ele é a favor da pena de morte, se é contra o protecionismo ou contra as cotas, também pode mobilizar seus redatores para, sempre agindo dentro da lei – que é, ou deve ser, o limite de ação para todos, não é mesmo? - defender essas ideias.

A liberdade de imprensa ideal seria aquela em que um redator pudesse publicar uma enorme matéria de capa contradizendo o interesse do dono do jornal. Pense numa liberdade grande! Mas isso deve ocorrer muito raramente, e em pequena escala. Colunistas como eu, por exemplo, geralmente contam com a benevolência das empresas, mesmo quando discordam delas. Uma coluna é uma matéria assinada, que exprime a visão do autor, não a da empresa. E a empresa pode aproveitar isso para dizer: “Olha aí como nós somos democráticos. O cara é nosso empregado, defende um interesse contrário ao nosso, mas a gente não só não o expulsa, como ainda publica o texto dele, e lhe paga por isso.”

Informação, interpretação e opinião são as três moedas da imprensa, cujo valor oscila mas nunca se deteriora. Em qualquer época e em qualquer circunstância haverá multidões precisando das três, sempre que as acreditarem legítimas. E o mais importante é que em qualquer país coexistem moedas contraditórias, porque cada jornal enxerga e defenda uma verdade diferente. A primeira liberdade de imprensa é permitir que as imprensas sejam muitas; depois, que os interesses sejam claros, o debate seja aberto. E que os valores sejam nobres, se não for pedir demais.

domingo, 14 de novembro de 2010

2401) A receita da felicidade (14.11.2010)




O inesquecível Odair José gravou, em tempos passados, uma canção que tinha este refrão docemente existencialista: “Felicidade / não existe; / o que existe na vida / são momentos felizes”.

Antoine Roquentin, o melancólico protagonista de A Náusea, não teria verbalizado melhor a sofrida epifania que o mantém vivo ao final do romance, escutando uma negra americana cantar: “Some of these days / you’ll miss me, honey”.

O que é a felicidade? Uma alegria sem sobressaltos, sem alterações, sem modulações? Uma euforia momentânea cujo disco engancha e ficamos a senti-la forever? Um estado sorridente, álacre, de-bem-com-a-vida, esfuziante de adjetivos, como a dos personagens de propagandas de refrigerantes e de creme dental? Mistério.

Num texto no New York Times (http://tinyurl.com/2eqhzqa), David Sosa propõe, citando um livro de Robert Nozick, a seguinte experiência (não, não é inspirada em Matrix; o livro precede o filme, pois é de 1974).

 Digamos que é construída uma máquina onde você pode se plugar e ter (virtualmente) qualquer sensação ou situação que desejar. Estímulos neuropsicológicos podem lhe dar uma impressão 100% real de estar escrevendo um livro, fazendo sexo, conversando com amigos, fazendo coisas interessantes. Só que você estaria de fato, o tempo inteiro, flutuando num tanque, com eletrodos afixados ao seu cérebro. A pergunta é: Você acha que isso é a felicidade? Você gostaria de viver assim?

Suponho (agora sou eu quem fala) que metade das pessoas diria: Sim, por que não? Melhor viver assim, numa Felicidade Virtual, do que viver pegando trânsito, pagando contas, ralando no dia-a-dia. Beleza; entendo perfeitamente que prefiram essa tranquilidade, essa utopia cibernética, esse paraíso artificial. Mas outra metade diria: “Não, prefiro viver como vivo, e me arriscar a não ser feliz nunca, ou ser apenas de vez em quando, como Odair José”.

Estas pessoas talvez se identifiquem com o que David Sosa examina em seu artigo. Ele diz, em suma, que a felicidade não é individual, é coletiva, ou pelo menos é socialmente interligada. Ser feliz não é apenas sentir-se bem consigo mesmo, é sentir-se bem de uma maneira que dependa das consciências alheias. Não basta ser feliz, é preciso que nossa felicidade seja testemunhada e de certa forma compartilhada pelos outros.

Diz ele:

“Quando nos recusamos a nos plugar nessa máquina, que nos proporciona tais experiências artificiais, exprimimos nossa crença profunda de que o que obtemos de uma máquina não é a coisa mais valiosa que podemos obter; não é o que queremos de um modo mais profundo, não importa o que possamos pensar quando estamos plugados nela. A vida nessa máquina não é a obtenção do que buscamos quando falamos numa vida feliz. Existe uma diferença crucial entre ter um amigo e ter a experiência artificial de ter um amigo. Existe uma importância entre escrever um romance e ter a experiência artificial de escrever um romance”.




sábado, 13 de novembro de 2010

2400) A palavra forma (13.11.2010)



(foto: Irving Penn)

Alguém duvida que seja esta uma das palavras mais importantes do idioma? É um dos conceitos abstratos mais pervasivos e onipresentes, porque tudo tem forma, tudo que existe existe através de algum tipo de manifestação física ou mental, e essa manifestação tem forma sob algum aspecto. Deus, por exemplo, este amplíssimo conceito que engole todos os demais. A forma de Deus é a totalidade, daí a “boutade” do surrealista Naville, que o chamou “O Grande Imóvel” (pois se Deus é tudo não pode mover-se para outro espaço, pois isto subentenderia que é um espaço além dele próprio). A forma de Deus coincide com a forma do Todo que somos capazes de imaginar, seja ele espiritual, seja ele físico (o Universo, ou o cacho-de-bolhas de todos os Universos físicos possíveis).

Não devemos confundir forma com a palavra fôrma, mesmo que o acento diferencial tenha caído. Uma fôrma é um molde que produz uma forma mas é criado por ela – só se constrói uma fôrma para perpetuar uma forma que, com o uso, se consagrou, e precisa ser mantida e multiplicada. A fôrma é consequência da forma. O mesmo pode se dizer da fórmula, que não passa de uma “fôrma” abstrata, um conjunto de sinais matemáticos ou químicos, que em princípio tem como função produzir o mesmo resultado quando aplicada.

O interessante é que o mesmo conceito se usa em latim como “form-” e em grego como “morph-”, numa inversão sonora cuja nomenclatura e razão de ser deixo aos gramáticos. Mas a consequência desse fato é que a ciência das formas é a morfologia, e a mudança de forma é uma metamorfose.

A palavra ocorre também no uso dos termos formal/informal quando nos referimos ao modo de se comportar ou de se vestir. Quando um jantar ou um traje são formais, isto significa uma expectativa de que correspondam a uma determinada forma, ou maneira de ser. Quando não, tornam-se aquilo que na linguagem informal chamamos de “alavontê”, não há forma prevista, cada um faz como lhe der na telha. Outra derivação muito popular é “formosa”: que tem belas formas.

Uma expressão interessante e muito em uso é “na forma da lei”, ou seja, “exatamente como a lei determina”. Todos sabemos que a lei tem forma (também chamada de “a letra da lei”) e tem espírito, tanto é assim que muitas vezes dizemos que determinado juiz agiu mais de acordo com o espírito da lei do que com a sua forma. Ou seja, o juiz foi capaz de entender em profundidade a intenção de quem criou aquela lei, e de perceber que a formulação por escrito dessa intenção apresentava uma falha, ou uma ambiguidade, ou uma incompletude; e que para ser fiel à ideia seria preciso ir além do texto escrito, mesmo que aparentemente contradizendo-o. Num caso assim, talvez fosse linguisticamente correto dizer que o juiz agiu de acordo com a “forma” da lei (sua intenção original, o pensamento que lhe deu origem) e não com sua “fôrma” (o instrumento concebido para aplicar aquela intenção).

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

2399) Novas formas de arte (12.11.2010)




(Buster Keaton, em Film)

Muitos admiradores das artes plásticas se escandalizaram quando, no fim do século 19, alguns artistas pararam de pintar, empunharam tesouras e potes de cola, e passaram a recortar e pregar pedaços de imagens em cima de uma tela. 

A colagem se impôs como método artístico graças, em grande parte, a gente como Picasso, Braque, Max Ernst. 

De certa forma, isso incutiu na cabeça do público uma coisa: para você criar uma obra de arte, você não precisa criar do zero tudo de que ela é feita. Os pedaços podem ser pedaços de algo que já existia. Se eles forem bem escolhidos, bem recortados e bem combinados, o resultado pode ser uma obra nova, original.

O método migrou para outras linguagens. No cinema, uma experiência curiosa é juntar um áudio e um conjunto de imagens que, em princípio, não têm a menor relação. Alguns cineastas começaram a pegar músicas e recriá-las na tela, com certa liberdade. 

Quando Walt Disney fez Fantasia, muitos críticos ficaram horrorizados com seus dinossauros ilustrando a Sagração da Primavera de Stravinsky ou com Mickey Mouse ilustrando o Aprendiz de Feiticeiro de Paul Dukas. 

Depois, vieram cineastas como Ken Russell, que fez verdadeiras viagens psicodélicas para ilustrar a música de Tchaikovsky (Delírio de Amor, 1970), The Who (Tommy, 1975), Franz Lizst (Lizstomania, 1975) e outros. 

A influência de Russell sobre a estética dos videoclips na década seguinte não pode ser subestimada. Ele provou, com uma insistência algo incômoda, que com uma boa edição qualquer imagem parece ter sido feita para aquela música, por mais surrealista ou aleatória que seja.

Mas isso ainda era uma imagem feita a partir da música, sincronizada à música. Com a facilidade da edição e reprodução digital, a coisa está ficando mais divertida. O pessoal está juntando imagem e som que já existem independentemente, e não feitos um em função do outro. 

Vi um filminho que consiste na junção de duas obras disparatadas. A primeira é um curta escrito por Samuel Beckett e dirigido por Alan Schneider, em preto e branco, intitulado Film. É um filme mudo em que Buster Keaton caminha por lugares estranhos e participa de cenas ainda mais estranhas; o clima lembra um pouco o Eraserhead de David Lynch. 

Pois bem, no YouTube foi postada uma versão do filme (que é mudo) acompanhada pela canção do Massive Attack, “Man next door”. São duas obras totalmente independentes; imagino que a música (que é de 1998) não tenha sido inspirada em Beckett. 

A união desse filme mudo e dessa canção “trip hop”, no entanto, resulta numa obra híbrida e perturbadora. (Ver aqui: http://tinyurl.com/24ttla6). Toda imagem pode ser qualitativamente modificada pela presença de diferentes trilhas sonoras, gerando diferentes resultados. O YouTube e outros saites fervilham de experiências desse tipo. A junção de clássicos do som e clássicos da imagem é uma área em que as possibilidades, como sempre, são infinitas.








quinta-feira, 11 de novembro de 2010

2398) Drummond: Rio e Bahia (11.11.2010)



A “Lanterna Mágica” que Carlos Drummond inseriu no seu primeiro livro, Alguma Poesia, que está completando 80 anos, mostra pequenos flashes de cidades por onde o poeta passou, a maioria delas em Minas. Os dois últimos fragmentos, no entanto, são sobre o Rio e a Bahia. No fragmento VII, “Rio de Janeiro”, vemos algo das primeiras impressões do poeta sobre a então Capital Federal. Desde 1922 Drummond já publicava em periódicos cariocas, através de Álvaro Moreyra, mas não tenho ideia de quando viajou ao Rio pela primeira vez. (Ele só se transferiria para lá em definitivo em 1934, para ser chefe de gabinete de Gustavo Capanema, nomeado Ministro da Educação e Saúde Pública).

No poema, existe algo do “Noturno” que Mário de Andrade dedicou a BH, e que começava com “Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos...” Drummond abre com “Fios nervos riscos faíscas”, também uma aliteração de sons reproduzindo uma multiplicação de impressões sensoriais. O linguajar com que ele entrou em contato em terras cariocas parece estar sendo registrado em “Passou a boa! Peço a palavra!”. Drummond, ao seu modo ensimesmado e reticente, registra em voz baixa as impressões sobre a capital: “Fútil nas sorveterias. / Pedante nas livrarias / Nas praias nu nu nu nu nu. / Tu tu tu tu tu no meu coração.” Este último verso é o elástico sentimental puxando o poeta de volta, não se sabe se o “tu” se refere à esposa (Drummond casou com Dolores em 1925) ou à terra natal.

“Mas tantos assassinatos, meu Deus. / E tantos adultérios também. / E tantos, tantíssimos contos-do-vigário... / (Este povo quer me passar a perna)”. Não devemos esquecer que Drummond é contemporâneo da lenda urbana sobre o mineiro que, chegando ao Rio, ficou tão deslumbrado com os bondes que acabou comprando um deles a um sujeito que estava encostado num poste, palitando os dentes. A estranheza dos recém-chegados ao Rio quanto aos assassinatos, adultérios e contos-do-vigário (para não falar na onipresente nudez) não é menor hoje do que oitenta anos atrás. A rigor, mesmo tornando-se intensamente integrado à vida carioca no meio século que se seguiu, Drummond nunca deixou de ser o rapaz que escreveu estes versos.

O último fragmento da “Lanterna Mágica”, o de número VIII, intitula-se “Bahia”, e diz, singelamente, modernistamente: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia... / Mas eu nunca fui lá.” Drummond era meio eremita, e convictamente sedentário. Viajou pouquíssimo. Sou tentado a ver nessa Bahia mitológica (pensem no que seria a imagem nacional da Bahia em 1930) uma espécie de Pasárgada de Manuel Bandeira, ou o país de “luxo, calma e volúpia” de Baudelaire. Uma Bahia tropical, de praias cheias de morenas sensuais? Também poderia ser o oposto: uma Bahia colonial e barroca, parecida com Minas, uma Bahia de catedrais, santos e claustros, de ruas antigas, estreitas e tortas, uma nova Minas austera e litúrgica, em que o poeta se sentisse em casa. Nunca saberemos.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

2397) “A Volta dos Mortos Vivos” (10.11.2010)



Assistindo tarde da noite, na TV a cabo, A Volta dos Mortos Vivos de Dan O’Bannon (1985), pensei na fascinação que os filmes de zumbis exercem sobre o público jovem. Rapazes e moças adolescentes gostam de quaisquer filmes de terror; veja-se o sucesso serial de Freddy Kruger, Jason, “Serra Elétrica” “Jogos Mortais”, etc. Mas os pútridos zumbis têm um encanto mórbido especial. Lembro ainda hoje minha fascinação, aos dez anos, diante dos zumbis de filmes como Invasores Invisíveis e outros, que comparados aos de hoje são de uma inocência a toda prova, mas na época despertavam calafrios.

Os zumbis são diferentes de Drácula ou de Frankenstein porque são um monstro quantitativo, não personalizado. Não se sabe o que é mais terrível, se a dificuldade em matar um único monstro ou a facilidade em matar bilhões de monstros que não param de surgir em fila indiana, cópias equivalentes ao que acaba de ser exterminado. O zumbi é o morto típico da era da cópia digital, da infinita reprodutibilidade técnica tanto da obra de arte quanto do pesadelo. No século 20 tínhamos o monstro único, indivisível, o monstro tão ímpar quanto o ser humano, quanto o Indivíduo criado pelo Iluminismo. Hoje, temos o monstro inesgotável, inextinguível, cópia da cópia da cópia da cópia, e que não para de brotar.

Para o cinema norte-americano, deve haver ali um pouco do horror de enfrentar povos anônimos, depauperados, sujos, lumpen-proletários: os vietcongs, os talibãs, os habitantes de Canudos, os pobres e esfarrapados em geral. Os zumbis são sub-humanos que, no seu existir incontrolável ameaçam submergir o “humano”. E há também, superposta a esta, uma ameaça mais terrível ainda: o fato de que as pessoas normais (nós, nossos amigos, nossa família) estão sujeitas a se transformar de uma hora para outra num desses monstros. Seu filho pode virar punk. Sua namorada pode virar terrorista. Sua irmã pode virar comunista. Seu marido pode virar um drogado.

Os mortos-vivos são também um pesadelo em torno do tema da recusa à morte, do apego irracional à vida, que deixa de ser vista como valor absoluto. O zumbi é o morto que se recusa a morrer, ou que não consegue morrer. Uma morta-viva no filme de O’Bannon responde por que motivo devoram os humanos: “Porque isso reduz a dor... a dor de estar morto”. É uma explicação de roteirista de filme B, que coça a cabeça por 10 minutos e resolve com uma frase a questão da “motivação dramatúrgica”. Mas é uma angústia metafísica semelhante à do Mr. Valdemar do conto de Edgar Allan Poe, que, hipnotizado, fica com a alma presa ao corpo morto, mantendo-o em funcionamento. No momento em que o transe hipnótico é cortado, a alma se liberta e o corpo se desfaz numa massa liquefeita.

E por último vem o simbolismo do ato de comer cérebros. Um filme é uma projeção luminosa de pessoas sem vida que andam pra lá e para cá absorvendo os cérebros da platéia para continuar existindo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

2396) O racismo e Monteiro Lobato (9.11.2010)



Comentei aqui nesta coluna a recente polêmica envolvendo o livro de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Leitores se queixaram do modo desrespeitoso como a personagem negra, Tia Nastácia, é tratada em certos momentos. Quem leu Lobato sabe que a toda hora a boneca Emília chama a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo de “negra beiçuda”, “negra burra”, etc. É a única que a trata assim: a avó Dona Benta, os netos Pedrinho e Narizinho, todos tratam Tia Nastácia de modo mais respeitoso. Em todo caso, é compreensível que o MEC decida “exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura.”

Pipocaram comentários na Internet dizendo que o livro tinha sido censurado e proibido pelo Governo. Não foi o caso. (Quem quiser mais detalhes pode consultar este blog, que transcreve longos textos do parecer do MEC: http://tinyurl.com/3a3gg9c). Mas esse episódio mostra um grave problema existencial de entidades como o Governo, a Igreja, a Academia, as Escolas, etc. São entidades abstratas organizadas em função de um tipo ideal de comportamento.

Um escritor pode ter personagens racistas, machistas, drogados, criminosos, porque um escritor trabalha com o mundo real e não tem remédio senão descrevê-lo como ele é. As escolas e os governos, contudo, trabalham há séculos com um conceito de mundo real que na verdade é um mundo ideal, o “mundo como deveria ser”, o mundo que tentamos ensinar aos nossos filhos, cheio de valores éticos, regras de comportamento, etc. e tal. São entidades normativas, que pregam uma maneira de ser. A arte (ou pelo menos a maior parte dela) é contraditória, não prega maneira de ser; alardeia suas próprias dúvidas, tentações, descreve o ser humano com todos os seus defeitos.

Nos EUA, todo mês aparece uma biblioteca pública tirando de catálogo os livros de Harry Potter porque a família de uma criança, evangélica, denuncia que a biblioteca está pregando o culto à feitiçaria. E quando algum funcionário tenta conciliar, eles perguntam: “Vocês estão com quem – com Jesus Cristo, ou com Satã?”. Agora imagine se um leitor assim encontrasse na biblioteca livros de Henry Miller, Nelson Rodrigues, Chuck Palahniuk ou Dalton Trevisan!

Voltando a Lobato: seus livros podem trazer para uma criança uma tal quantidade e variedade de coisas positivas que nada perderão com um prefácio ou posfácio que coloque seus momentos racistas num contexto. Inclusive para mostrar que até mesmo pessoas progressistas, como ele foi em vários sentidos, também podem ser preconceituosas. Como diria o Conselheiro Acácio, “ninguém está isento de seus próprios defeitos”. Admiramos tanto os escritores que criamos para eles uma imagem meio “chapa branca”, de um Fulano sem defeitos. É bom poder enxergar a pessoa por trás dos livros.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

2395) O Táxi de Caronte (7.11.2010)




Chegada a hora, peguei o elevador, desci, dei boa-noite ao porteiro que cochilava. O enorme carro negro estava em frente ao prédio, com o pisca-alerta ligado. As únicas pessoas visíveis eram uns meninos sem-teto enrodilhados sob a marquise da farmácia. 

Caronte desceu, entreguei-lhe a valise. Os quiosques da praia estavam fechados e silenciosos. Se não fosse pelo marulho distante dir-se-ia que o próprio mar estava imóvel; mas soprava uma brisa vigorosa, que arrastava um copo de plástico pelo asfalto, com um ruído seco, fragmentado. 

Caronte bateu com força a tampa da mala. Abri a porta traseira, acomodei-me, e partimos. “Onde quer passar primeiro?”, perguntou. 

Eu não tinha pensado ainda, mas de improviso falei que queria ver a fazenda onde passei a infância. 

O carro avançou ao longo da praia. Em questão de segundos o céu clareou, azulou, e um sol atenuado mas veraz iluminou a campina, a caatinga no lugar do oceano, o casarão de cumeeira baixa. Circulamos em torno dele. Era um meio-de-tarde, e lá estavam todos, nos seus afazeres de sempre. Abaixei o vidro, escutei-lhes a voz e o cheiro do curral me envolveu. Nenhum deles viu o carro, com exceção do menino branco e pensativo, cujos olhos se ergueram do livro, e cruzaram com os meus. 

Seguimos, e pedi para rever um carnaval. A trilha poeirenta da caatinga começou a elevar-se, o carro passou primeira, os pneus deslizaram nas pedras do calçamento, os casarões do Pelourinho começaram a passar de ambos os lados, e já era noite novamente. 

Cruzamos ladeiras estreitas, atravessamos o alarido de um bloco sem tocar em ninguém; avistei a calçada na esquina da praça, o casal abraçado. Curiosamente, não lhe dei muita atenção; foi a música (que eu não ouvia desde então) que me produziu o efeito esperado. Achei melhor afastar-me dali, e pedi Londres. 

Cruzamos a ponte, percorremos o Tâmisa, diminuímos o ritmo em Baker Street, depois em Abbey Road. Perdemo-nos no labirinto até chegar ao pub. Pelo vidro pude ver a turma de jovens cabeludos; bebiam erguendo os canecos. Não se ouvia nenhum som, mas pelo movimento dos corpos, pelo erguer dos braços, lembrei a canção que cantáramos a plenos pulmões, pela eternidade e mais um dia. 

A escala seguinte foi Marrocos, novamente naquela tarde poeirenta, de sol escaldante, em que dois hóspedes da pousada se compadeceram de mim e me levaram para um hospital próximo, desidratado pela disenteria, quase em estado de choque. 

Parei diante do prédio de tijolos, enfeitado de azulejos, por entre o tráfego de camelos e bicicletas. A certa altura vi sair dali, fatigado mas impassível, o médico de longos bigodes tristes que me deu alta sorrindo, num francês claudicante: “Vous ne mourirais jamais non plus, monsieur!...” Voltamos. 

Desci diante do prédio, onde o copo de plástico ainda quicava no asfalto, levado pela brisa. Apertei a mão de Caronte. “É uma longa viagem”, disse ele, “mas estamos perto”.


(Este conto foi republicado na coletânea Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio, Casa da Palavra, 2013)