sexta-feira, 8 de outubro de 2010

2368) Os Detetives Selvagens (8.10.2010)



Este imenso, inesgotável romance de Roberto Bolaño é (entre outras coisas) a crônica de um movimento poético de vanguarda. Só quem já participou de algo parecido sabe o quanto esses movimentos, mais do que literários, são “vivenciais”. Mais do que preocupadas em escrever e teorizar as pessoas estão ligadas em viver a vida intensamente: beber, farrar, namorar, travar polêmicas intermináveis, descolar dinheiro de uma maneira ou de outra. É o que fazem os “visceral realistas”, ou “real visceralistas”, ou “realistas viscerais” da Cidade do México na década de 1970, em que se concentra a maior parte do livro.

O romance começa sob a forma do diário de um jovem poeta que adere ao grupo, Garcia Madero. Segue-se uma longa segunda parte, que ocupa a maior extensão no livro, com depoimentos de pessoas que pertenceram ao grupo, ou que entraram em contato com seus membros. A terceira e última parte é a conclusão do diário de Garcia Madero. Este diário é de uma saborosa verossimilhança; quem quer que tenha escrito poesia a sério, na adolescência, irá se reconhecer em numerosos momentos. Garcia Madero é um desses garotos que leem muito e sabem a diferença entre um epitalâmio e uma ode sáfica. Adere ao grupo com entusiasmo, vive preocupado porque tem 16 anos e ainda é virgem (se bem que, depois de perder esta condição, ele trata de botar a contabilidade em dia com um zelo de fanático), e é ele quem nos dá as primeiras impressões sobre os poetas que são na verdade os protagonistas do livro, Arturo Belano (alter-ego do autor) e Ulises Lima. Dois rapazes escolados, radicais, cheios de expedientes, irreverentes, angustiados. E que nunca vemos “por dentro”. Só os enxergamos, no livro inteiro, pelos olhos das outras pessoas.

Na parte do meio, cada um dos depoimentos sobre os poetas é uma fatia da vida do depoente. São pequenos contos que chegam a ter 15 ou 20 páginas, o que torna o livro um “romance de contos” como outros autores já tentaram. São poetas, acadêmicos, críticos literários, boêmios, homossexuais, turistas, esposas de poetas, jornalistas, gente da América e da Europa, gente de todos os tipos. Cada um deles conheceu Belano ou Lima em diferentes circunstâncias, e narra esse encontro na primeira pessoa, como se estivesse falando para um gravador. Muitos destes textos poderiam ser lidos como contos isolados, sem relação com o livro.

Em momento nenhum Roberto Bolaño cita os poemas de seus poetas, os quais, na teoria e no discurso, são de um radicalismo de fazer inveja a André Breton. Ao invés de tentar produzir poemas à altura da fúria surrealista deles, Bolaño simplesmente pula por cima e nos deixa intuir, obliquamente, que tipo de poesia indivíduos como aqueles estariam produzindo. A palavra “detetives” está no título para despistar. O título mais fiel para este grande livro poderia ser Os Passos Perdidos. A Idade de Ouro. A Poesia em Pânico. Doce Pássaro da Juventude.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

2367) Noites de Autógrafos de Reinaldo (7.10.2010)



Não entendo por que motivo ninguém leva os humoristas a sério. Vejam o caso do carioca Reinaldo, por exemplo. É um intelectual, conhecedor da melhor literatura, músico de jazz, mas o público só pensa nele como aquele sujeito de óculos que se veste de flamingo-cor-de-rosa no programa Casseta & Planeta. A própria imprensa, se exigida a apontar um intelectual na família, provavelmente indicará algum dos seus irmãos, como o escritor e tradutor Rubem Figueiredo ou o jornalista Cláudio Figueiredo, autor de uma ótima biografia do Barão de Itararé. E no entanto, e no entanto...

Noites de Autógrafos, o novo livro de Reinaldo (Editora Desiderata, Rio, 2010) é um passeio pelo mundo-pesadelo dessas ocasiões aparentemente festivas, em que o autor de um livro se submete à mortificação pública de ficar sentado, escrevendo dedicatórias para desconhecidos que ele logo descobre com horror tratar-se de amigos de infância, irreconhecíveis por trás de uma barba ou da ausência dela. Não há tormento maior para um autor do que perguntar, timidamente: “E o teu nome, como é?...”, apenas para ouvir algo como: “Ora, sou Fulano, teu editor, que publicou esse livrinho aí”.

Sem falar nos muitos casos em que a gente troca Leila por Lélia, Edilson por Adilson, coisas assim. Pensando nisto, as livrarias adquiriram o hábito de, na venda do livro, perguntar o nome do comprador e anotá-lo num papelzinho, para socorrer o infeliz. Mas basta o sujeito ter tomado uns chopes com o autor cinco anos atrás, para afirmar, confiante: “Não precisa! Somos amigos.” E não se sabe qual a decepção pior, a do autor ao constatar que não lembra ou a do fã ao descobrir que não é lembrado.

Parece que estou fazendo cerca-lourenço, mas não: o livro de Reinaldo é exatamente para explorar todas as gafes e desencontros possíveis nessas ocasiões. Só que, aqui, com autores consagrados. Stevenson escreve: “Para o dr. Jekyll, excelente figura humana...” enquanto Mr. Hyde brota do smoking do outro, facão em punho. Kafka contempla a barata morta diante da mesinha, junto à placa: “Esta livraria foi dedetizada”. Dom Quixote e Sancho pressionam Cervantes: “Autografa logo, porque o cavalo e o burro ficaram mal estacionados”. Jorge Luís Borges, cego, espera em vão numa mesa no centro de um enorme labirinto vazio. Machado se alegra ao ver um esqueleto: “Brás Cubas! Quem é morto-vivo sempre aparece!”. Ariano Suassuna, pedindo um autógrafo a Luís Fernando Verissimo, faz um longo discurso armorial diante do silêncio do colega.

São 61 cartuns com estes e outros personagens envolvendo-se em pequenas confusões e perplexidades diante de um livro a ser autografado. (Meus preferidos são os que envolvem Clarice Lispector, Ivan Lessa, Thomas Pynchon, Millôr Fernandes, Sartre, Lima Barreto). Todos com o traço anguloso e preciso de Reinaldo, todos revivendo a antiga arte de fazer da tragédia alheia a nossa comédia.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

2366) Palavras incômodas (6.10.2010)



Por que motivo a gente gosta de umas palavras e não gosta de outras? As razões variam em cada caso, mas o fato é que palavras assim nos dão uma sensação de incômodo, de desconforto, quando por pressa ou por falta de um equivalente mais palatável temos de enfiá-las numa frase.

Veja-se por exemplo a palavra “disponibilizar” e seus derivados, tão empregada hoje, principalmente em referência à internet, para exprimir a ideia de algo colocado à disposição de qualquer pessoa que se interesse. Se eu digo que estou colocando um texto meu à disposição do público, esta frase não dispara nenhum alarma. Mas todas as (raras) vezes em que escrevi “estou disponibilizando um texto”, a mera visão desse polissílabo numa frase de minha autoria me produziu um calafrio de horror, como se visse uma centopeia sobre a minha escrivaninha. Por que? Acho que porque me parece uma palavra desajeitadamente longa, e além disso uma palavra pretensiosamente metida a erudita. Pertence a uma longa família de palavras pomposas vindas do jargão administrativo/gerencial: disponibilizar, operacionalizar, viabilizar, etc. Palavras que se formam à maneira alemã, somando prefixos e sufixos para dar pequenas torções do sentido. O verbo “dispor” sugere o adjetivo “disponível” e este adquire a comprida cauda que o transforma em “disponibilizar”. Por mim prefiro dizer que “estou colocando à disposição”, ou, caso seja preciso dizer uma palavra somente, que estou oferecendo, expondo, entregando, distribuindo, qualquer coisa que se aplique melhor ao contexto.

Outra palavra terrível que está na moda: “pertencimento”. A toda hora tem alguém dizendo: “Este projeto pretende aumentar a sensação de pertencimento das comunidades rurais...” Neste caso a origem parece ser o inglês, o termo “belonging”, que exprime essa ideia de pertence a algo contexto mais amplo. Temos o verbo pertencer mas não temos o substantivo correspondente, e traduzimos ao pé da letra “belonging” por “pertencimento”. Eu preferiria dizer integração, assimilação, vínculo, união... Há várias alternativas, cada uma mais indicada a um diferente contexto.

Mais um termo do jargão administrativo-gerencial: “empoderamento”. Quem diabo autorizou a circulação dessa coisa horrenda? Mais uma vez trata-se da tradução-às-cegas de um termo inglês, “empowerment”, que exprime a ideia de conferir maior poder a uma pessoa, seja o mero poder advindo de um novo cargo, seja uma atitude mais positiva que brota do próprio indivíduo, tornando-o mais dinâmico e mais capacitado. A única desculpa possível é que faltava ao idioma uma palavra isolada, baseada no mesmo radical (“poder”) capaz de exprimir esta ideia. O resultado, porém, ficou antieufônico e pouco evidente – é uma dessas palavras que precisam ser relidas e avaliadas para que a gente possa deduzir o que significam. Péssima receita para uma palavra não-literária, que se pretende de uso corrente.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

2365) Drummond: “Lanterna Mágica” (5.10.2010)



“Lanterna Mágica” é na verdade um conjunto de pequenos poemas numerados que Carlos Drummond incluiu no seu primeiro livro, Alguma Poesia, que está completando 80 anos. São oito poemas ao todo, sendo cinco deles sobre cidades mineiras, um sobre Nova Friburgo (RJ), um sobre o Rio de Janeiro e outro sobre a Bahia. A expressão “lanterna mágica” sugere a projeção de imagens coloridas, de “slides” com cartões postais projetáveis na parede, mostrando imagens de pontos turísticos do mundo inteiro.

O primeiro poema, “Belo Horizonte”, lembra em alguns aspectos o famoso “Noturno de Belo Horizonte” de Mário de Andrade (1924). O poema de Mário, ao que parece, surgiu da famosa visita que ele fez à capital mineira juntamente com Oswald de Andrade, Tarsila do Asmaral e Blaise Cendrars, servindo-lhes de cicerone para conhecer as cidades históricas de Minas. Hospedado no Grande Hotel de BH, o grupo paulista recebeu a visita de jovens intelectuais mineiros, entre eles Drummond. E a BH do curto poema de Drummond (“Debaixo de cada árvore faço minha cama, / em cada ramo dependuro meu paletó. / Lirismo. / Pelos jardins versailles / ingenuidade de velocípedes”) mantém algo do clima lírico e melancólico do longo poema de Mário (“Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos / calma do noturno de Belo Horizonte... / O silêncio fresco desfolha das árvores / e orvalha o jardim só.”). Retorna no poema de Drummond uma das figuras de linguagem preferidas dos modernistas, o contraste por justaposição entre o solene e tradicional (“versailles”) e o banal e moderno (“velocípedes”).

O segundo poema, “Sabará”, é o mais longo do conjunto, e de certo modo o que tem mais autonomia. Todo ele se trava nesse choque de imagens entre o antigo e o moderno. Drummond transforma o ambiente em personagem, dando às coisas inanimadas alma e emoções de seres vivos: “A dois passos da cidade importante / a cidadezinha está calada, entrevada. / (Atrás daquele morro, com vergonha do trem”). Nesta linha uma sutileza, pois não fica claro se a cidadezinha tem vergonha de ser avistada pelo trem, ou se se envergonha dele. A maioria dos modernistas fazia esses contrastes para ironizar o passado; Drummond ironiza os dois lados.

Este poema é um dos poucos em que ele emprega repetidamente o “português errado” que Mário usava com tanto liberalismo e descontração: temos “jinelas”, “Penção”, “Juaquina”, “maginando”, “quede”. Retorna aqui o “forde” usado em “Também já fui brasileiro”, num tempo em que essa marca era sinônimo de automóvel. Drummond faz um retrato visual da cidadezinha entre montanhas, e na penúltima estrofe deflagra a ruptura modernista: “O presente vem de mansinho / de repente dá um salto: / cartaz de cinema com fita americana”. Como o “forde”, a “fita” americana é símbolo do futuro, ou melhor, do Presente que encurrala as cidadezinhas refugiadas atrás dos morros.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

2364) A entrevista de Vandré (4.10.2010)




A TV Globo exibiu a entrevista feita por Geneton Moraes Neto com Geraldo Vandré, feita no dia em que este completou 75 anos. 

Foi ótimo para desmentir os boatos que ouvi nas últimas décadas: Vandré ficou doido, Vandré aderiu aos militares, Vandré está com depressão profunda, Vandré perdeu a memória, Vandré está incoerente. 

Pelo contrário. O autor de “Ventania” se tornou um cara ensimesmado, solitário, introvertido. Isto se soma à idade e à desilusão com a música para dar uma imagem diferente do cantor passionário e grandiloquente que arrastou multidões. Mas Vandré mostra em toda a entrevista ser um sujeito tranquilo, articulado, de vez em quando bem-humorado e brincalhão. 

Ajuda a desmontar algumas das lendas que se criaram em torno dele, recusa com sensatez e bons argumentos a pecha de “antimilitarista”, rejeita o ambiente de showbiz que se criou para a MPB de hoje. 

Foi uma das entrevistas mais sensatas e equilibradas que vi de um músico brasileiro, mesmo discordando de algumas de suas opiniões. Vandré só parece um excêntrico porque não exibe o comportamento dos compositores e cantores de hoje, cheios de frasezinhas espirituosas, caras e bocas, humildade fingida, etc. É um cara que olha de frente para a câmara e diz: “Perdi a guerra, paciência, a vida continua”.

Vandré era de uma faixa radical da MPB que unia de um lado a visão-do-mundo marxista e nacionalista, e do outro a curiosidade pelas formas populares e “folclóricas” de escrever e compor. 

Suas melhores canções pertencem a esta linha: “Disparada”, “Caminhando”, “Cantiga brava”, “Aroeira”, “Requiem para Matraga”, “Porta Estandarte” e tantas outras. Mas suas canções de amor, bem trabalhadas e de melodias intensas, são igualmente fortes: “Quem quiser encontrar o amor”, “Pequeno concerto que virou canção”, etc. 

Seu talento ninguém discute. O que se discutiu na época foi sua aposta kamikaze no confronto ideológico. Compositores igualmente engajados (Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, etc.) souberam recolher as velas e se manter à tona na hora da tempestade. Vandré tentou beber a tempestade. Não conseguiu.

Vandré diz que a única coisa da MPB que lhe chamou a atenção nas últimas décadas foi o Movimento Armorial. Isto mostra que seu esquerdismo pode ter se atenuado com o tempo, seu nacionalismo não. O Armorial não faz a música que ele fazia, mas certamente faz a música que ele gosta de ouvir. 

Vandré não aceitava a guitarra, não aceitava o Tropicalismo, as roupas de plástico, a parafernália pop. Perdeu a guerra, porque foi esse modelo que se impôs na música brasileira. Não como modelo único (ainda há espaço para numerosos seguidores do próprio Vandré), mas como modelo predominante, preferido pela mídia e enriquecedor. 

Vandré tem suas razões para balançar a cabeça e dizer: “Tô fora”. O que fez é inapagável, definitivo, mas ele não quer voltar a fazê-lo. Vandré foi o artista de um momento único, e passou com esse momento.





domingo, 3 de outubro de 2010

2363) Contracapa de vírus (3.10.2010)



(Jock Cooper, Fractal)

& uma orelha não identificada, congelada num freezer de hospital & fazer literatura é capinar no basalto & tem certas freiras que eu sou capaz de apostar que estão de cinta-liga preta e fio-dental ali por baixo & tô vendo a hora Ringo e Paul contratarem dois caras quaisquer e anunciarem uma turnê por 120 países & passe certo não é só o que chega no pé do companheiro, é o melhor passe possível de executar naquele instante & a água da praia está tão transparente que dá para ver as garrafas vazias e as fraldas descartáveis no fundo & vi agorinha mesmo uma nuvem em forma de bebê, durou mais do que muitos bebês & voltar pra casa sozinho com o troféu embaixo do braço, botar o troféu sobre a mesa da cozinha, ficar olhando pra ele e tomando a primeira & vou encomendar uma estátua de São Francisco rodeado de abutres, de hienas, de centopéias & uma fita métrica se arrastando pelo chão e depois se erguendo como uma naja & o coelho aprendeu a dar nó nas orelhas sem tocar nelas, e um crítico disse: “não entendi!” & se houve um japonês que sobreviveu às duas bombas nucleares, melhor não ficar me preocupando com coisas de pouca monta & vou bater você no liquidificador e pintar seu caixão por dentro & o que falta a certos escritores de FC é só um pouquinho de dicção científica & uma adolescente com uma tatuagem-néon subcutânea piscando o letreiro FUCK ME & pena que a gente não possa dar um clique nas 9 da manhã, selecionar até as 3 da tarde, cortar e emendar as duas pontas & Deus me poupou as úlceras da Fama, as concessões da Fama, os micos da Fama & eu acho a minha impressão digital a minha cara & estou ressequido, encarquilhado, me esfarelando, o que fiz de toda aquela água? & bem, obrigado, canibalizando as sucatas de mim mesmo & tem gente que só sorri porque é um pretexto para mostrar os dentes & eu gostaria de ver um filme que começasse mudo e terminasse sonoro & nas calçadas avançamos lentamente, por entre a areia movediça do verão & matar uma barata, de algum modo, nos nivela & tem arsênico? então me dá um chope & vou inventar uma religião tão complexa que o mantra usado para meditação será um polissílabo & Fulano já vivia tão doido que pegava uma nota de 100 reais, enrolava em canudo, e fumava & quando falam em OVNIs eu digo: “justamente! por que tem esquilo em todo canto e no Brasil quase não tem?! quem levou nossos esquilos, e para onde, e com que finalidade, meus amigos?!” & todo tiro de meta é um investimento a longo prazo & certos poemas são como as moléculas de um cristal, a forma é aquela e não tem como ser outra & tem gente que passa a noite roubando carros e abandonando dez minutos depois, só pela adrenalina da coisa & passamos tanto tempo comemorando efemérides de 50 anos atrás que perdemos a chance de produzir efemérides para daqui a 50 anos & às vezes é melhor rir de mim mesmo do que não rir de nada, do que chorar a esmo &

sábado, 2 de outubro de 2010

2362) Os melhores começos (2-10-2010)



Um grande começo de livro é aquilo que os norte-americanos chamam de “hook”, gancho, algo que se crava no sujeito e o suspende no ar, levando-o consigo. (Ou pelo menos o ergue pelo cinturão.) São aquelas primeiras linhas que não deixam o cara ir embora. Encontrei há pouco um saite (aqui: http://www.infoplease.com/ipea/A0934311.html) que lista os 100 melhores começos de livros. Isto, é claro, reflete apenas o gosto e a informação do autor, e não quer dizer nada estatisticamente, a menos que tenhamos uns 20 ou 30 saites semelhantes e possamos cruzar as informações. E mesmo assim é evidente que os livros famosos, aqueles que todo mundo cita e repete, acabarão tendo precedência. Deve haver uma infinidade de começos de livros melhores do que “Durante muito tempo eu costumava me deitar cedo”, com que Proust inicia Em Busca do Tempo Perdido, mas esse singelo início se contaminou de tudo que vem em seguida, e da mística de Proust, e hoje aparece em todas as listas.

Melhor do que este é, por exemplo, o devastador início do Murphy (1938) de Samuel Beckett: “O sol brilhou, já que não tinha alternativa, sobre o nada de novo”. Todo o espírito do autor já vem anunciado nesta frase; é pegar ou largar. Reencontrei nessa lista um começo que eu conhecia há anos sem saber quem era o autor ou qual era o livro: “O passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um modo diferente.” A frase é de L. P. Hartley, abrindo seu romance The Go-Between (1953), que aliás foi filmado por Joseph Losey (O Mensageiro).

Alguns professores recomendam que a primeira frase seja uma frase intrigante, que desperte a curiosidade e até mesmo a incredulidade do leitor, compelindo-o a ler o livro só para ver que diabo significa aquilo. Para mim, é o caso deste pitoresco início de Waiting (1999), de Ha Jin: “Todos os verões, Lin Kong regressava à Vila do Ganso para se divorciar de sua esposa Shuyu”. Começar o livro dando um tom de indefinição e dúvida é um recurso muito apreciado por autores pós-modernos, como mostram alguns exemplos: “Num certo sentido, eu sou Jacob Horner” (John Barth, The end of the road, 1958); "Foi assim, mas não foi” (Richard Powers, Galatea 2.2, 1995); “Isto tudo aconteceu, mais ou menos” (Kurt Vonnegut Jr., Matadouro 5, 1969).

Por questão de gosto pessoal, sinto-me bem quando um escritor abre seu livro com a enunciação de uma verdade absoluta, até porque muitas vezes o resto do livro se dedica a desmenti-la ou relativizá-la. Gosto do modo como Graham Greene começa The End of the Affair (1951): “Uma história não tem começo nem fim; escolhemos arbitrariamente um momento da nossa experiência para a partir dali olhar para trás ou para a frente”. Um início neste tom nos prepara para uma narrativa feita em retrospecto (estou supondo; nunca li esse livro) e para a percepção de que uma história não são os fatos que aconteceram no passado, são o que o narrador parece lembrar enquanto nos conta.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

2361) Arthur Penn (1-10-2010)



Morreu dias atrás, aos 88 anos, Arthur Penn, que dirigiu alguns dos filmes mais interessantes do cinema norte-americano das décadas de 1960-1970, mas nunca foi tão levado a sério como outros, menos talentosos do que ele. Não vi os filmes do final de carreira de Penn, mas vi seus oito primeiros filmes, realizados entre 1958 e 1975. Todos são bons ou ótimos. O mais conhecido é Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (1967), que influenciou todos os filmes de gangsters feitos desde então. Caçada humana (1966), já lançado em DVD no Brasil, é um thriller que revela a sordidez e o fascismo latente nas cidadezinhas dos EUA. Um preso (Robert Redford) foge da cadeia e passa a ser perseguido por toda a cidade, e somente o xerife (Marlon Brando) tenta fazer valer a lei. O elenco tem Jane Fonda, Robert Duvall, E. G. Marshall e Angie Dickinson. Night Moves (1975) mostra Gene Hackman no papel de um detetive particular problemático; é um filme que eu gostaria de rever, porque na época o achei tão bom quanto o badalado Chinatown de Polanski.

Um dos filmes mais elogiados de Penn é sua transposição para a tela da peça The Miracle Worker, a história de Ann Sullivan, a enfermeira/professora que consegue humanizar e instruir uma menina cega, surda e muda, que quando adulta tornou-se a escritora Helen Keller. O filme, O Milagre de Ann Sullivan (1962) foi um enorme sucesso e as duas atrizes (Anne Bancroft e Patty Duke) ganharam o Oscar. Outro filme que ganhou prêmios variados foi Pequeno grande homem (1970), em que Dustin Hoffmann faz o papel de um chefe índio, dos 17 aos 120 anos, contando a saga do extermínio das tribos nativas dos EUA.

Outro western pouco convencional é Um de nós morrerá (1958), filme de estréia de Penn, em que ele mostra Paul Newman no papel de um Billy the Kid cheio de encucações freudianas, e seguido por toda parte por um escritor que documenta suas façanhas, personagem que viria a se tornar um clichê do western (sua mais recente encarnação é em Os Imperdoáveis de Clint Eastwood). O filme mais leve e divertido de Penn é Deixem-nos viver (“Alice’s restaurant”), em que ele toma por base uma canção de Arlo Guthrie, “Alice’s Restaurant Massacre”, uma das mais longas da história da música folk, com 18 minutos de duração entre canto e monólogo.

Deixei para o final o melhor filme de Penn, na minha opinião: Mickey One (1965), um thriller kafkeano filmado no estilo da nouvelle vague francesa. Warren Beatty, que faz o papel-título, era apaixonado pelos filmes de Godard e Truffaut e insistia em fazer algo parecido nos EUA. Juntou-se com Penn para fazer (além de Bonnie & Clyde) este exercício surrealista que tem tinturas de Orson Welles e Fellini, e é um dos filmes mais extraordinários (no sentido de “diferente de tudo”) de sua época. Penn nunca mereceu grandes honrarias da crítica, mas por mim bastariam estes oito filmes para compor um retrato cruel e criativo do país em que foram feitos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

2360) A palavra texto (30.9.2010)




Para mim, esta é uma das palavras mais importantes e onipresentes do idioma. Gosto de pesquisar etimologias (passatempo tão interessante quanto jogar Sudoku ou Tetris), e fico sabendo que sua raiz indo-européia mais remota é a partícula “teks”, que significa “tecer”. O que já nos projeta no território recursivo da autodefinição, pois sem dúvida a própria palavra “tecer” vem da mesma raiz. 

Por isso, quando ouvimos falar, por exemplo, que “em Campina Grande sempre floresceu com ímpeto a indústria têxtil”, estamos nos referindo não só à confecção de roupas, mas também à prosa e à poesia.

Um verbete do saite A Word A Day comenta a palavra “subtile”, que à primeira vista parece significar “sutil”, mas acontece que “sutil” em inglês é “subtle”. O que seria esta outra? Seria talvez o que em português distinguimos como “sútil”: “composto de pedaços cosidos uns aos outros; costurado”. Basta lembrar a palavra “inconsútil”, que significa “algo inteiriço, que não foi costurado”, como a túnica de Jesus. 

Como dizia Emílio de Menezes: “Anda! Beija-me aos pés a clâmide inconsútil...” Uma coisa sutil é uma coisa que é sútil de tal maneira que é necessário um esforço para distinguir as costuras ou urdiduras do tecido.

Tecido, por sinal, é sinônimo etimológico de texto. Um pedaço de pano e um poema são a mesma coisa. Assim como um tecido, um texto não é um mero aglomerado de fios, porque se o fosse se desfaria com facilidade, mal o erguêssemos nas mãos. 

(É o que acontece com os livros mal escritos – mal a gente acaba de ler um parágrafo e passa para o seguinte, tem a sensação de que o anterior está se desmanchando e sendo levado pelo vento.) 

Assim como num pano existem a trama e a urdidura (os fios horizontais e os verticais) num texto há estruturas transversais umas às outras, que se engancham apertadamente entre si e se dão firmeza.

O interessante é que o A Word A Day indica as seguintes palavras que também vêm da raiz “teks” (tecer): arquitetura (em que o “tecer” não se dá através de fios, mas de macroestruturas), tectônico (a arte de construir, mas aplica-se especificamente às placas geológicas que suportam os continentes), tecnologia (o conjunto de instrumentos e procedimentos que se interligam para produzir uma transformação no mundo físico). 

Em tudo existe a ideia básica, que não se diluiu, de um conjunto de elementos concretos que se apóiam uns aos outros.

Não sei se algum leitor já visitou a cidade paraibana de São Bento, no alto Sertão, um pouco pra lá de Brejo do Cruz. Durante o dia inteiro escuta-se o traque-traque (ou seria melhor dizer o tek-tek?) de centenas de teares artesanais fabricando redes. 

Passei uma semana lá fazendo um trabalho e nada me fascinou tanto quanto o modo como os tecelões faziam as lançadeiras correr de um lado para outro, por entre as trocas de posição das armações da madeira, enquanto as crianças enchiam de fios as espôlas. Não percebi que todos estavam escrevendo um texto.





quarta-feira, 29 de setembro de 2010

2359) A estética do Meu Passado Me Condena (29.9.2010)




O título brasileiro deste dramalhão de Basil Dearden (Victim, 1961) virou clichê. 

 Títulos como Assim caminha a humanidade, Suplício de uma saudade ou Adeus às ilusões, que não têm nada a ver com o título em inglês do filme, são produto da imaginação das distribuidoras nacionais, e acabam se tornando pequenas jóias onde se cristalizam idéias fundamentais do gênero folhetinesco.

No folhetim há sempre alguém que tem um passado misterioso, uma culpa escondida, um esqueleto no armário, um conflito mal resolvido, uma identidade deixada para trás. 

Em inglês há uma expressão sintomática. Quando se diz “he is a man with a past”, “ele é um homem com um passado”, subentende-se logo que é um passado especial e problemático, um passado que (como disse indelevelmente William Faulkner) até hoje não passou. 

Já vimos isto no horário nobre, não é mesmo? 

É o filantropo de cabelos brancos que de repente alguém reconhece como um traficante de escravos quando tinha cabelos pretos. 

É a dama de sociedade que numa festa é reconhecida pelo frequentador de um bordel. 

É o morador obscuro de uma pensão cuja foto aparece nos postes da rua num cartaz de “Procura-se”.

Todo mundo tem um passado que é como um fogo de monturo: parece extinto mas continua a fumegar lá dentro, esperando o momento certo de fumegar cá fora. Nas telenovelas ou nos romances surgem a todo instante homens incorruptíveis ou esposas de honestidade a toda prova que, não obstante, estremecem de maneira inexplicável ao escutar o nome de uma cidade, ou à simples menção de um episódio rumoroso ocorrido no passado. Por que esse susto? O que têm eles a esconder?

O romance policial, que tanto deve ao folhetim, vive em grande parte deste recurso dramatúrgico básico, o de que todo indivíduo consiste em camadas de tempo superpostas, de tal modo que mesmo por baixo do mais imaculado dos presentes pode estar se abrigando um passado infestado de cupins ou cânceres. 

Ninguém é perfeito, e ainda menos aqueles que parecem ansiar por uma perfeição pública, por uma reputação inatacável. 

Cedo ou tarde o beneficente milionário é assassinado em sua biblioteca, e descobrimos que quem lhe cravou a espátula nas costas foi o homem cuja vida ele arruinou na Tasmânia ou em Bornéu. 

Cedo ou tarde o vagabundo ou mendigo encontrado morto nos arredores da mansão é identificado como um reles chantagista que vivia a extorquir a família inteira, sob a ameaça de revelar as atividades da matriarca durante a ocupação nazista em Paris. 

Todo mundo tem um passado que preferiria que não viesse à tona, e muitos são capazes de chegar ao crime para que isto não aconteça. No folhetim ocorre às vezes que o vilão mais repugnante acabe se revelando um homem de princípios nobres, que procedia daquela forma por estar preso a um juramento ou um compromisso. Ocorre mais frequentemente, porém, que um indivíduo impoluto se revele vilão. O passado mais condena do que absolve.