sábado, 2 de outubro de 2010

2362) Os melhores começos (2-10-2010)



Um grande começo de livro é aquilo que os norte-americanos chamam de “hook”, gancho, algo que se crava no sujeito e o suspende no ar, levando-o consigo. (Ou pelo menos o ergue pelo cinturão.) São aquelas primeiras linhas que não deixam o cara ir embora. Encontrei há pouco um saite (aqui: http://www.infoplease.com/ipea/A0934311.html) que lista os 100 melhores começos de livros. Isto, é claro, reflete apenas o gosto e a informação do autor, e não quer dizer nada estatisticamente, a menos que tenhamos uns 20 ou 30 saites semelhantes e possamos cruzar as informações. E mesmo assim é evidente que os livros famosos, aqueles que todo mundo cita e repete, acabarão tendo precedência. Deve haver uma infinidade de começos de livros melhores do que “Durante muito tempo eu costumava me deitar cedo”, com que Proust inicia Em Busca do Tempo Perdido, mas esse singelo início se contaminou de tudo que vem em seguida, e da mística de Proust, e hoje aparece em todas as listas.

Melhor do que este é, por exemplo, o devastador início do Murphy (1938) de Samuel Beckett: “O sol brilhou, já que não tinha alternativa, sobre o nada de novo”. Todo o espírito do autor já vem anunciado nesta frase; é pegar ou largar. Reencontrei nessa lista um começo que eu conhecia há anos sem saber quem era o autor ou qual era o livro: “O passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas de um modo diferente.” A frase é de L. P. Hartley, abrindo seu romance The Go-Between (1953), que aliás foi filmado por Joseph Losey (O Mensageiro).

Alguns professores recomendam que a primeira frase seja uma frase intrigante, que desperte a curiosidade e até mesmo a incredulidade do leitor, compelindo-o a ler o livro só para ver que diabo significa aquilo. Para mim, é o caso deste pitoresco início de Waiting (1999), de Ha Jin: “Todos os verões, Lin Kong regressava à Vila do Ganso para se divorciar de sua esposa Shuyu”. Começar o livro dando um tom de indefinição e dúvida é um recurso muito apreciado por autores pós-modernos, como mostram alguns exemplos: “Num certo sentido, eu sou Jacob Horner” (John Barth, The end of the road, 1958); "Foi assim, mas não foi” (Richard Powers, Galatea 2.2, 1995); “Isto tudo aconteceu, mais ou menos” (Kurt Vonnegut Jr., Matadouro 5, 1969).

Por questão de gosto pessoal, sinto-me bem quando um escritor abre seu livro com a enunciação de uma verdade absoluta, até porque muitas vezes o resto do livro se dedica a desmenti-la ou relativizá-la. Gosto do modo como Graham Greene começa The End of the Affair (1951): “Uma história não tem começo nem fim; escolhemos arbitrariamente um momento da nossa experiência para a partir dali olhar para trás ou para a frente”. Um início neste tom nos prepara para uma narrativa feita em retrospecto (estou supondo; nunca li esse livro) e para a percepção de que uma história não são os fatos que aconteceram no passado, são o que o narrador parece lembrar enquanto nos conta.

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