sexta-feira, 30 de julho de 2010

2307) O Ulisses russo (30.7.2010)



Falei aqui, dias atrás, sobre a lista do crítico Joshua Cohen sobre os livros equivalentes ao Ulisses de James Joyce em diferentes países. 

Muitos leitores torcem o nariz para Joyce. Pegaram um romance para ler, e quando abriram a primeira página depararam-se com uma cerca de arame farpado. A cerca era a prosa de Joyce. Cada linha de cada página parece feita de um arame indobrável, e espigada de espinhos dolorosos. Dez palavras desconhecidas por linha, e de nada vale socorrer-se do dicionário, o qual as desconhece também. 

O leitor arremessa o livro contra a parede, danificando a parede. Julga-se ludibriado. Ulisses (junto com o livro posterior, Finnegans Wake) é um dos becos-sem-saída mais notáveis da literatura. Produto de uma época em que a linguagem do romance alcançou liberdades iguais às da poesia. 

Esta, por sinal, é a qualidade mais elogiada no livro que Cohen considera “o Ulisses russo” – Petersburgo, de Andrei Biely, publicado em 1913. Cohen assim o resume: 

“O romance de Biely é uma bomba-relógio contando a história de uma bomba-relógio. Um jovem revolucionário, Nikolai Apollonovich, recebe a ordem de assassinar seu próprio pai, Apollon Apollonovich (um importante funcionário do Czar) colocando uma bomba em seu escritório. Começa aí uma corrida contra o relógio que dura 24 horas, enquanto Biely, um mestre do Simbolismo russo, nos faz ouvir a voz de São Petersburgo, desde a algaravia dos camponeses até o blá-blá-blá dos intelectuais”. 

O livro de Biely é anterior ao de Joyce, que só começou a ser publicado (serializado na Little Review) em 1918. Mais do que causa ou influência, predomina aí o espírito experimentalista do tempo. Um dos grandes movimentos nesse sentido ocorreu justamente na Rússia, com a poesia de Khliébnikov, Maiakóvski e outros. 

O fato de ambos os romances descreverem 24 horas na vida de um indivíduo e de uma cidade é típico da literatura urbana européia na segunda metade do século 19, quando as cidades tornaram-se tão personagens quanto as pessoas. 

Em seu blog Praxis (http://tinyurl.com/3ahkn6j), Duncan Law faz um extenso comentário do livro, e cita um trecho da introdução feita pelos tradutores ao inglês (Robert A. Maguire e John E. Malmstad), que dizem: 

“Troca de categorias gramaticais, ataques à sintaxe convencional, estranhas, (ou “impossíveis” para alguns) combinações de palavras, súbitas compressões e elipses, manipulação de sons e da semântica – destas e de outras maneiras Biely cria uma textura verbal altamente idiossincrática, que oferece surpresas constante ao leitor russo, deliciando os aventurosos e horrorizando os conservadores”. 

Descrição que caberia em Joyce e caberia em todos os gigantescos Romances Urbano-Mitológicos da Linguagem, dos quais Ulisses é o mais famoso. (Duncan Law, aliás, considera medíocre a outra tradução inglesa, feita por David McDuff, porque feita a partir de uma versão mais longa e menos modernista do romance).








quinta-feira, 29 de julho de 2010

2306) “O Olho do Diabo”(29.7.2010)



Ingmar Bergman é um dos grandes realistas do cinema, mas seus filmes fantásticos também são notáveis, entre outras coisas porque, como todo grande realista, quando ele conta histórias fantásticas sabe dar-lhes espessura realística, o que torna o fantástico também mais espesso. É o caso de um dos seus filmes mais famosos, O Sétimo Selo, em que um cavaleiro medieval joga xadrez com a Morte.

O Olho do Diabo (1960) é um filme menor, desdenhado (ao que se diz) pelo próprio Bergman, que o dirigiu apenas para atender ao produtor de A Fonte da Donzela, que fez no mesmo ano. É um filme com estrutura e apresentação teatral, onde um ator, folheando um livrão, anuncia que vai contar uma história. A história é a de uma moça (Bibi Andersson) que pretende casar virgem; isso incomoda o Diabo, que convoca Don Juan para vir à Terra e seduzi-la. É, portanto, um conto moralista à moda do século 18 ou 19, e que Bergman narra com mão leve e ágil. Ele evita a farsa, sabendo que não é seu terreno; a história tem charme e leveza em alguns momentos, e em outros mergulha nas angústias existenciais e enigmas metafísicos de que o diretor tanto gosta.

Don Juan está condenado a uma eternidade no inferno: seu tormento é o de todos os dias receber em seus aposentos mulheres desesperadas ou apaixonadas, que ele seduz, mas que desaparecem quando ele consegue levá-las para a cama. Sua vinda à Terra é supervisionada por um Diabo vestido de padre, que se transforma de vez em quando num gato preto. Don Juan traz consigo seu fiel criado Pablo, o qual, enquanto o patrão seduz a mocinha, faz o mesmo com a mãe dela, cujo marido, um pastor bonachão e meio papalvo, hospeda os dois em sua casa sem desconfiar de nada. O melhor do filme de Bergman é que, ao narrar uma historieta tão esquemática quanto um libreto de ópera bufa, trata realisticamente os personagens. Todos são contraditórios. Todos são surpreendentes. Nenhum deles fica ancorado à caricatura, e todos produzem pequenas reviravoltas na narrativa, que de galhofeira fica repentinamente séria, ou vice-versa.

“A pureza de uma mulher é um terçol no olho do Diabo”, diz o provérbio citado na abertura do filme. Bibi Andersson e Gertrud Firdh, que interpretam a mãe e a filha, dão uma riqueza de nuances às suas personagens , que variam o tempo inteiro entre pudicas e oferecidas, vulneráveis e sedutoras. As cenas do Inferno (na verdade um escritório cuja janela dá para o Fogo Eterno) reproduzem o conceito tradicional do Diabo como uma mistura de aristocrata e burocrata. No final, há um diabo-assistente capaz de ouvir à distância (e relatar) os ruídos e as falas da mocinha em sua noite de núpcias. Há outra cena divertida em que Don Juan, antes da viagem, recebe instruções sobre as características da sensualidade das mulheres nórdicas. O Olho do Diabo é também um filme inesperadamente perceptivo sobre a mecânica da sedução.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

2305) O juramento dos mafiosos (28.7.2010)



Meu pai tinha uns amigos que frequentavam nossa casa quando eu era pequeno. De quando em quando parava um carro em frente da nossa casa e desciam uns homens de terno, que já estavam sendo esperados com bebida e salgadinhos ou um jantar, dentro das limitações modestas de uma casa de classe média. Conversavam cheios de bom-humor sobre o tempo, o trânsito, o bairro; falavam de futebol e às vezes de política. Encerrada a parte social, meu pai nos mandava ir para a parte dos fundos da casa e ficava com eles durante mais uma hora, conversando em voz baixa. Depois, iam todos embora. Meu pai me dizia: “Agradeça a eles tudo que você tem, e tudo que você terá um dia”. Quando meu pai morreu, ele pagaram todas as despesas, e um dia me chamaram para uma reunião. O que aconteceu nessa reunião? Não posso dizer, porque antes dela houve um longo ritual em que tive de fazer uma série de promessas irrevogáveis, juras inquebráveis, ao preço da minha vida e da minha alma.

O parágrafo apócrifo acima pode ser o trecho inicial das memórias de qualquer mafioso. Ser membro da Máfia é algo que passa de pai para filho ao longo de gerações. E em toda máfia existe um contrato de adesão que varia muito de país para país, de grupo para grupo, mas que em síntese diz: “Você só deve lealdade a nós, não deve lealdade ao governo, nem à igreja, nem aos partidos, nem ao exército, nem ao povo, nem a sua família, nem a Deus, nem mesmo a você. Você só deve lealdade a nós”. O cara é livre para dizer que não topa, que não está interessado. Em geral eles dizem: “Então está bem, pode ir embora. Mas, já que você não está conosco, está contra nós. Já que não é nosso escravo, é porque é escravo dos nossos inimigos, e de agora em diante é nosso inimigo também”. Pense numa escolha difícil!

Esses juramentos de fidelidade são exigidos na Máfia, Camorra, Yakuza, máfia chinesa, máfia coreana, etc. A questão é: o sujeito pode se arrepender de ter feito essa jura de silêncio, esse pacto indissolúvel de fidelidade (“omertà”, em italiano)?. Sabemos que esses pactos existem porque alguns indivíduos quebraram o voto e contaram tudo à imprensa ou a polícia. Alguns pagaram com a vida. E já vi relatos em que eles dizem: “Eu não sabia que era um grupo criminoso. Eram os patrões do meu pai. Eu tinha 18 anos. Por que não iria jurar? Só soube depois.”

Isto é interessante porque sempre me lembra o conflito ético de Daniel Ellsberg, o funcionário do Pentágono que surrupiou mil páginas de documentos secretos sobre o Vietnam e os entregou à imprensa anti-Nixon, provocando uma das grandes crises políticas dos EUA. Os liberais norte-americanos o consideram um herói. Eu também. Mas a verdade é que foi um heroísmo a um preço caro: romper o voto de lealdade para com seus empregadores e seus colegas. Se ele era de fato um sujeito ético, isso deve lhe ter sido tão custoso quanto compactuar com a política sórdida do Pentágono. Pense numa decisão difícil.

terça-feira, 27 de julho de 2010

2304) Marlyse Meyer (27.7.2010)



Faleceu dias atrás em São Paulo, aos 85 anos, Marlyse Meyer, grande pesquisadora de literatura e cultura popular. Publicou livros sobre o teatro de Marivaux, as cavalhadas e folguedos do interior do Brasil, os almanaques e lunários, e, principalmente, escreveu talvez as melhores páginas da nossa ensaística sobre o romance de folhetim. Conheci-a muito ligeiramente em pessoa, o bastante para admirar sua elegância, a mesma da sua prosa. São raros os críticos literários capazes de nos contar o desenrolar do seu pensamento crítico como se fosse uma história fascinante que se cria diante dos nossos olhos. Marlyse era assim, através do torneado de suas frases (sempre claras, sempre inteligíveis à primeira leitura), da precisão sutil do seu vocabulário, da finura psicológica das suas conjeturas sobre intenções de um autor e as motivações de um leitor. Sua erudição só nos ocorre a uma segunda leitura.

Folhetim: uma História (Companhia das Letras, 1996) é sua obra de maior peso, e um dos melhores livros de estudos literários que já li, de qualquer país. Digo estudos literários por falta de um termo melhor, porque não se trata de crítica literária no sentido muito específico do termo, da análise dos mecanismos verbais de criação. Marlyse Meyer conta como surgiu o romance folhetim europeu e depois o brasileiro, descreve a cultura da época, compara as mentalidades, faz o censo dos tipos e personagens mais comuns, avalia os estilos, os recursos dramáticos postos em prática pelos autores. Sempre recorrendo a fontes primárias: ela lia de fato todos aqueles livros gigantescos, e mais que isto, comparava as diferentes traduções, diferentes edições, porque lera todas.

Outro livro essencial é um que ela considerava uma espécie de apêndice do Folhetim, reunindo capítulos que foram retirados do primeiro para que ele não ficasse gigantesco. É As mil faces de um herói canalha (UFRJ, 1998), que tem capítulos deliciosos: sobre a relação de Machado de Assis com o famoso folhetim Saint-Clair das Ilhas e outros (Machado tratava o folhetim como os críticos de hoje tratam Paulo Coelho); sobre o “herói canalha” que foi Rocambole, o vilão-tornado-herói de Ponson du Terrail, assunto que ela parecia ter esgotado no livro anterior e ao qual retorna aqui com riqueza de detalhes e de novos ângulos de interpretação; um capítulo saboroso sobre as heroínas “seduzidas e abandonadas” do folhetim clássico, onde ela examina com argúcia e malícia feminina os jogos eróticos e de classe social entre os sedutores e as seduzidas; e assim por diante.

No terreno coberto por Marlyse nestas duas obras podem florescer algumas dúzias de teses de mestrado ou de doutorado sobre essa literatura que foi nos séculos 19 e 20 o que a novela de TV é hoje. Esses pesquisadores futuros fariam muito bem em, de vez em quando, esquecer o assunto e assimilar algo do estilo de Marlyse: uma pessoa que ama os livros lendo e comentando em voz alta as suas descobertas.

domingo, 25 de julho de 2010

2303) A Mulher da Torre (25.7.2010)



Uma enchente do rio tinha destruído há mais de dez anos uma banda inteira de Bom Jesus do Agreste. Ninguém voltou a construir por lá, e o tempo foi esfarelando as ruínas, deixou somente o resto da igrejinha com a torre ainda de pé. A paróquia fez outra igreja num lugar seguro. Muitos anos depois, numa noite estrelada, Antõe Berto, camioneiro, vinha voltando para casa com a mulher quando os dois pensaram ter visto uma luz na torre arruinada. Chegaram perto e viram, lá em cima, através de uma parede caída, uma luz amarela e uma mulher envolta numa espécie de mortalha, olhando para eles. Antõe quase enfarta, a esposa o fez apressar o passo para casa. O filho mais velho saiu à rua de calção, esfregando os olhos, e quando viu a Mulher saiu correndo; com isso, a Mulher sumiu.

Foi vista dias depois por Marco de Zezé, que deu a mesma descrição dela; e depois pelos irmãos Cassimiro; e de pouco a pouco foi vista por todo mundo. Era sempre a mesma coisa: uma noite qualquer, alguém via de longe a luz na Torre, chegava perto, e daí a pouco lá estava a Mulher no meio da luz. Durava poucos minutos, aí a Torre voltava a ficar vazia e escura. Examinaram o local várias vezes, com cuidado, porque a escada não merecia fé, e nada encontraram de estranho. O vigário viu, também, e ficou rezando até a Mulher sumir, o que ele atribuiu à reza, é claro. No dia seguinte subiu lá armado dos sacramentos e fez uma persignação, uma ablução, uma limpeza, tudo que o Rito Romano o autorizava a fazer. Uma semana depois a Mulher da Torre apareceu de novo, como se nada tivesse acontecido.

Mas Nena de Seu Raimundo não conseguia ver a Mulher. Cada vez que ela aparecia, bastava o primeiro alerta (Mizinho, o filho de Antõe Berto, combinou com todo mundo um apito como sinal) e todos corriam para ver a Mulher. Nena era uma moça-velha, irmã da Míriam, dona da locadora. Desde as primeiras noites correu para lá e ficava: “Mas minha gente, vocês tarão doidos? Que mulher? Mulher aonde, pelas caridade?” Todo mundo via menos ela. Gente que vinha de fora viu; velho viu, criança viu, até Seu Cincinato, o ateu da vila, teve que confessar que viu também, mas disse que o nome daquilo era alucinação coletiva. Toda vez que o apito tocava, Nena era a primeira que ia. Todo mundo apontava: “A lá! A lá! Lastaela! Levantou o braço!” Seu Raimundo resmungou que ela precisava de médico. A mãe começou a ralhar com Nena, dizendo, “se é pra fazer a gente passar vergonha, melhor ficar em casa”. Nena não entendia aquilo, passou a chegar por último quando tinha a aparição. Ficava lá atrás do povo, olhando: e a única coisa que via era aquela torre escura, abandonada, e o povo apontando o dedo e rezando. Foi murchando, a pobre da Nena. Parecia um castigo, um olho ruim, um abantêsma pousada na vida da pobre. Definhou e morreu antes do fim do ano. E de quem foi a culpa? Foi da Mulher da Torre, é claro.

sábado, 24 de julho de 2010

2302) Eternas Ondas (24.7.2010)




O que é uma onda, uma nova onda? É o mesmo oceano de sempre, movimentando-se de uma maneira diferente. Na década de 1960, dois movimentos tiveram nomes idênticos.

A Nouvelle Vague francesa foi um movimento de jovens cineastas, reunidos em torno da revista Cahiers du Cinéma, que queriam descartar o pomposo cinema francês de pretensões industriais, realistas, hollywoodianas no mau sentido, e criar um cinema ágil, de câmara na mão, muita improvisação, politicamente próximo à esquerda, e mais devedor dos filmes B do que dos filmes A de Hollywood.

A New Wave britânica foi um movimento de jovens escritores de ficção científica, reunidos em torno da revista New Worlds, que queriam fazer uma fusão entre a literatura de vanguarda da época e a pulp fiction norte-americana. 

O mais interessante é que estes escritores eram provavelmente fãs dos filmes franceses, porque escolheram o termo New Wave como uma referência direta. Era como se dissessem: “Queremos fazer na FC inglesa o que Godard, Truffaut e companhia estão fazendo no cinema da França”.

A Nouvelle Vague era uma tentativa de inseminar o cinema francês (que os jovens críticos do Cahiers consideravam quadrado, artificial, incapaz de falar do momento presente) com a agilidade do cinema norte-americano, seu pragmatismo (contraposto à oratória vazia), sua impudência e amoralidade, seu cinismo juvenil. E fazia isso buscando no filme B norte-americano a vitalidade que o filme A francês não tinha, nem como linguagem, nem como experiência de vida.

A New Wave britânica entrou num vácuo entre as duas ficções científicas cultivadas nas Ilhas: o “scientific romance” tradicional, intelectual e ambicioso (H. G. Wells, Olaf Stapledon, C. S. Lewis, Aldous Huxley, George Orwell, etc.) e a pulp fiction barata, imitada das revistas dos EUA. 

No imenso espaço disponível entre essas duas faixas, surgiu uma literatura consciente das vanguardas lidas na época (Joyce, Samuel Beckett, William Burroughs, os Surrealistas, Kafka, Borges, Herman Hesse, Italo Calvino, etc.) e que pretendia juntar esse experimentalismo formal (e relativismo ideológico, explorando um Universo desconhecido, vazio de valores absolutos, pronto para ser explorado e redefinido) à volúpia narrativa da pulp fiction tradicional, sua imaginação vívida, pululante de arquétipos, mostrando o Inconsciente pessoal e coletivo à flor da página.

Em Paris e Londres, de 1955 em diante, dois grupos de artistas jovens da velha Europa iam buscar na indústria cultural norte-americana (o filme B, os “pulp magazines”) uma vitalidade rústica que lhes faltava, e temperavam essa vitalidade com o intelectualismo de onde provinham – no caso dos cineastas franceses, com tinturas de Marx; no dos escritores britânicos, com mais tinturas de Freud. 

Imagino que até hoje pouca gente estudou em conjunto essas duas Novas Ondas, suas influências recíprocas, seus canais de comunicação. Eis uma boa tese de Mestrado à espera de ser escrita.








sexta-feira, 23 de julho de 2010

2301) Alugue um homem branco (23.7.2010)




Por falta de emprego eu não morro mais! No saite da revista The Atlantic li este artigo de Mitch Moxley, americano que mora em Beijing, a quem ofereceram um emprego de mil dólares por semana numa província chinesa de que nunca tinha ouvido falar, trabalhando para uma empresa norte-americana igualmente desconhecida. Não exigiam experiência prévia (o que era ótimo, pois ele não tinha nenhuma). Exigiam apenas boa aparência e o uso de terno. O artigo de Moxley não é muito longo, e se eu pudesse o transcreveria inteiro aqui, mas prefiro dar o link (http://tinyurl.com/25533zx). Ele explica que o trabalho consistia apenas em viajar, comparecer a reuniões, ler um texto que lhe era entregue, apertar mãos, e sorrir. Tecnicamente, estava contratado como “expert em controle de qualidade”, mas na prática não se tratava disso. Diz ele:

“E foi assim que eu me tornei um falso empresário na China, um trabalho bem lucrativo para migrantes desempregados. Um amigo meu, um norte-americano que trabalha com cinema, era pago para representar uma empresa canadense e ler discursos defendendo o controle de emissões de carbono. Outro sujeito viajou para Xangai para representar o papel de comprador de presentes. Recrutar falsos homens de negócios é uma técnica usada por empresas da China para produzir a imagem de quem tem conexões com o Ocidente. Meu instrutor de chinês, que a princípio ficou de mau humor ao saber quanto eu estava ganhando, colocou assim a questão: -- Pois é, exibir estrangeiros vestindo ternos caros dá credibilidade às empresas”.

Alugar um homem branco para dar credibilidade a uma empresa oriental pode ser considerado racismo? Pode ser considerado uma espécie de prostituição semiótica, ou seja, o sujeito vender a própria imagem para usos inconfessáveis por parte de outrem? Ou o trabalho de Moxley não será apenas um trabalho de ator, interpretando um papel concebido e dirigido pelo grupo que o emprega? Enfim – contratar gente para dar uma boa imagem não é novidade, basta ver a quantidade de mocinhas bonitinhas, todas bem vestidas, que nos recebem em todo tipo de evento por aí. O interessante no caso é que Moxley se apresenta como o que não é: finge ser especialista em algo de que não entende patavina. Mas como é americano, e, mais do que isto, parece americano, ganha mil dólares por semana para ler discursos, apertar mãos e sorrir para fotógrafos.

Dizia Mário Lago: “Eu não quero e não peço, para o meu coração, nada além de uma linda ilusão”. Nosso mundo é feito de aparências, fingimento, fantasias encenadas, espontaneidade coreografada, verdades “fake”. Moxley é tão ator, ou tão pouco ator, quanto os rapazes bonitos e as moças bonitas que aparecem em nossas novelas de TV. Não são atores nem atrizes: fazem o papel de atores e atrizes. São “fake” e não alugam talento, alugam boa aparência, fingem ser atores para uma platéia que não quer ver interpretação, quer ver “pessoas com boa aparência”.



2300) Os Ulisses do mundo inteiro (22.7.2010)



(Joshua Cohen) 

O escritor Joshua Cohen é autor de um romance de 800 páginas intitulado Witz, uma história cheia de trocadilhos em diversas línguas, tendo como tema a lenda do Judeu Errante. Um amigo lhe disse: “Seu livro é o Ulisses judeu”, aludindo ao romance de James Joyce (1921). Cohen ponderou que o próprio livro de Joyce já é o “Ulisses judeu”, além de ser também, claro, o “Ulisses irlandês”. Mas isto o deixou com a pulga atrás da orelha, e ele publicou um artigo no saite The Daily Beast dando um balanço dos “Ulisses” em diferentes culturas, ou seja, o que cada literatura nacional tem de mais parecido, em forma e/ou espírito, com o livrão de Mestre Joyce. 

Ele cita doze livros, dos quais li apenas um, e conheço outros quatro de ouvir falar. 

Começo pelo décimo título de sua lista, que é justamente Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa (1956). Diz Cohen: 

“A intrincada e hipnótica história de Riobaldo, um velho fazendeiro que vive no interior do Brasil. Rosa faz uma evocação dos ritmos da fala, das repetições e dos diferentes registros verbais que torna seu livro um exemplo de ponta no modernismo latino-americano. É também um dos poucos épicos da Modernidade - um movimento nascido na cidade – a abordar as regiões mais remotas e selvagens”. 

Uma descrição interessante, mas para um leitor europeu não dá uma idéia muito clara da imensa complexidade linguística e temática do livro. 

Para Cohen, o “Ulisses britânico” é Mrs. Dalloway de Virginia Woolf (1925), cuja escolha ele justifica assim: 

“É a resposta feminina britânica à masculinidade irlandesa. A narrativa de Woolf segue um dis de junho na vida de Clarice Dalloway enquanto ela organiza uma festa a se realizar naquela noite. O que era externalizado em Joyce – detalhes físicos, ação – é internalizado em Woolf – detalhes mentais, psicologia. Seu livro é um triunfo da voz humana mais profunda”. 

Embora o livro não seja um calhamaço comparável ao de Joyce, a comparação procede, e está bem justificada. 

O “Ulisses alemão” para ele é Berlin Alexanderplatz de Alfred Doblin (1929): 

“Um relato epicamente incessante do ‘demimonde’ de Berlim. Repleto de crimes, prostitutas, uma prostituta assassinada. O obtuso Franz Biberkopf é solto da cadeia e sai para a prisão maior que é a República de Weimar. Doblin, um jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra, germanizou o olho e o ouvido panorâmicos de Joyce para captar a gíria urbana, e assim criou um dos melhores romances de decadência do século”. 

O último título que me é familiar é Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948), sobre o qual ele diz: 

“O romance de Marechal acompanha uma fraternidade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre os quais Jorge Luís Borges. Em sete seções centralizadas na formação estética de Adán, um aspirante a poeta, a homenagem a Homero cede lugar à reescritura de Dante, na qual o espanhol da Argentina se torna um brinquedo a ser pervertido e reinventado”.




2299) Orkut e Facebook (21.7.2010)



No princípio era o Orkut, um planeta virtual, onde a humanidade se reunia para jogar conversa fora. Depois veio o Facebook, um dos “saites de relacionamento” que mais crescem no mundo. Há quem diga que é perda de tempo, coisa para adolescentes, para aposentados e outras pessoas de ocupação incerta e não-sabida. Há quem ache que é um Ágora ateniense, um Hyde Park londrino, um local onde cada um pode dizer o que quiser, postar fotos, postar textos, postar links para websaites, postar links para vídeos no YouTube.

Quinze anos atrás, eu próprio consideraria ininteligível o parágrafo acima. Não importa: foi graças ao Orkut e ao Facebook que reencontrei amigos que não via há trinta anos. Não direi que fiz novos amigos, porque uso esta palavra com parcimônia, mas fiz muitos conhecidos, gente legal, boa para trocar idéias, dar dicas, conversar abobrinhas ou coisas interessantes. O Orkut acabou me enchendo o saco pela dificuldade de navegação, era mais de um minuto para trocar de página. Não posso perder tanto tempo assim. Dizem que os jovens gostam de velocidade. Errado: quem gosta (ou pelo menos quem precisa de rapidez) são os velhos, que têm na mente uma contagem regressiva tiquetaqueando sem parar.

O Facebook, como o Orkut, emprega com liberalidade o conceito de “amigos”. A sua página anuncia: “Você tem 1.134 amigos”! É curioso, porque certamente nunca vi mais gordas 99% dessas pessoas. Amizade virtual pe um novo conceito antropológico. Li uma vez num almanaque que a gente devia ter um amigo verdadeiro por ano de vida. Como não tenho 1.134 anos, só me resta supor que os demais não são propriamente amigos, são simpatizantes, pessoas que ouviram falar de mim e querem ver as coisas que eu prego no meu mural. (Esta, amigos, é a definição da amizade facebookiana: pessoas que se dão o trabalho de querer saber o que você está pensando agora.)

Quando entrei no Orkut, temi que fosse uma complicada conspiração destinada a um dia me envolver com traficantes de órgãos ou viciados em drogas, provando que eles eram “meus amigos no Orkut”. Duas conversas e dois dedos de bom-senso me convenceram do contrário. Do modo virótico com que essas amizades se propagam, não há tempo para cada um saber o que os demais andam aprontando. Seriam necessárias evidências de outro tipo; já que não existem, relaxemos.

Facebook e Orkut são uma imensa “pesquisa do Ibope” destinada a ter – quando alguém precisar – um “perfil do consumidor” completo a respeito de cada um dos 500 milhões de indivíduos que os compõem. Que filmes veem, que livros leem, que músicas escutam, que links distribuem entre os “amigos”, que nomes próprios são mais citados em seus posts, que websaites visitam, quanto tempo livre têm para jogar Farmville ou outras bobagens. Que bom que o Facebook existe num mundo ocidental e democrático, porque no dia em que todas essas informações caírem nas mãos de um (digamos) Stálin ou Mao-Tse-Tung, eu não quero nem sentir o cheiro.

2298) “Recife Frio” (20.7.2010)



Este curta-metragem de Kléber Mendonça é um ótimo exemplar do “cinema brasileiro” de “ficção científica”, ou seja, é filho de um pai eternamente na pindaíba e de uma mãe estrangeira que ainda não obteve cidadania. Com cerca de 15 minutos, é um documentário fictício, narrado quase todo em espanhol por um repórter de alguma TV latino-americana que faz a cobertura de um fato inusitado. Depois da queda de um meteorito numa praia, a região litorânea de Pernambuco, em volta do Recife, sofre um fenômeno meteorológico inexplicável. Por cima dela instala-se uma camada de nuvens pesadíssimas, fazendo a temperatura cair a cerca de 5 a 10 graus, e provocando chuvas constantes. De cidade tropical, Recife passa a ser uma cidade que lembra a Suíça no inverno: chuva, neve, gelo, gente encapotada.

A idéia é interessante e bem realizada, porque nos letreiros finais ficamos sabendo que o diretor filmou cenas em cidades de vários países, e depois montou essas cenas com outras filmadas no Recife, dando a impressão de que tudo se passa ali. Não há como não rir e não se emocionar com a imagem final de Lia de Itamaracá toda agasalhada, de cachecol e luvas, comandando um grupo de 15 pessoas numa ciranda, numa praia vazia e congelada.

O pseudo-documentário aborda o tema de vários ângulos, inclusive da cultura popular. Uma dupla de emboladores de coco, encapotados e friorentos, descreve em versos o sofrimento dos pernambucanos, desacostumados àquelas temperaturas. Lojas de artesanato mostram bonecos de barro reproduzindo gente cheia de agasalhos, xales, luvas, gorros e toucas, para se protegerem do frio. Nas ruas, céu cinzento e chuva constante. Nas praias, crise econômica dos bares e das pousadas que ficam vazias de turistas, pois o sol deixou de aparecer. Nos apartamentos de classe média, todo mundo briga pra dormir no quarto de empregada, o lugar mais quente da casa.

O filme não dá explicações científicas sobre o que aconteceu, mas constrói uma ambientação bem urdida misturando cenas reais e situações encenadas, o que acaba tornando plausível a situação. Mais do que saber por que ocorreu aquilo, ficamos interessados em ver como as pessoas se adaptam à situação e tentam tocar suas vidas. Por coincidência, vi este filme quando estava lendo 50 Degrees Below de Kim Stanley Robinson, em que ele descreve uma situação semelhante em Washington, quando a temperatura cai bruscamente devido à conjunção de fatores ambientais, congelando os rios e lagos e prendendo todo mundo em casa. O que ocorre no filme de Kléber não é tão improvável assim, se bem que mais provável ainda, em termos de catástrofe, seja a invasão do Recife (e outras cidades litorâneas) pelo mar, criando um ambiente como o da Manhattan semi-submersa mostrada por Spielberg em Inteligência Artificial. Enquanto isso, o filme de Kléber Mendonça mostra que não precisamos de orçamentos spielberguianos para fazer cinema de ficção científica. Basta criatividade.