sexta-feira, 16 de julho de 2010
2276) Saramago e o fantástico (24.6.2010)
A Passarola, de Bartolomeu Gusmão
Não sei se alguém estará celebrando José Saramago como o grande escritor de literatura fantástica que foi.
Seu livro mais conhecido, o Memorial do Convento (1982), é uma história gótico-alucinatória que envolve visões paranormais e uma máquina voadora, a Passarola de que ouvimos falar nos livros de História. É um romance “mainstream” que flerta com a fantasia e com a proto-ficção científica, e uma referência obrigatória para qualquer estudo sobre Fantasia Ibérica.
História do Cerco de Lisboa (1989) é uma experiência de História Alternativa: o que seria o mundo se determinado acontecimento histórico tivesse ocorrido de modo diferente do que de fato se deu?
No livro de Saramago, isso acontece de maneira ainda mais fantástica, pois basta um revisor de provas tipográficas inserir a palavra “não” num texto, fazendo com que os Cruzados não ajudem os cristãos portugueses a retomar Lisboa, invadida pelos muçulmanos. Saramago reconta em tom de crônica história o que teria ocorrido nesse universo paralelo ao nosso.
Em A Jangada de Pedra (1986) a Península Ibérica desprega-se do continente europeu e sai à deriva pelo Oceano Atlântico, carregando seus milhões de habitantes, suas culturas e civilizações. É uma alegoria política (o viés político é um dos mais fortes na obra de Saramago) mas são notáveis a ousadia imaginativa e o modo rigoroso como ele extrapola as consequências da idéia inicial.
Isso para não falar no Ensaio Sobre a Cegueira (1995), uma fábula apocalíptica em que toda (quase toda) a humanidade perde a visão, fazendo desmoronar a civilização. Uma idéia que a ficção científica já explorou de variadas formas, desde O Dia das Trífides (1951) de John Wyndham até A Escuridão (1963) de André Carneiro.
A alegoria também está presente em As Intermitências da Morte (2005), que tem um ponto de partida semelhante ao de A Desintegração da Morte do brasileiro Orígenes Lessa (1948): o que aconteceria ao mundo se de repente ninguém mais morresse?
A narrativa de Saramago se inicia no dia 1 de janeiro, o que nos lembra a descrição da Morte feita por outro brasileiro, Augusto dos Anjos:
Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro
sai para assassinar o mundo inteiro
e o mundo inteiro não lhe mata a fome!
Não duvido que na vasta obra de Saramago existam vários outros textos que poderiam ser considerados de natureza fantástica. Mas acho que estes exemplos bastam para mostrar que o recurso à mecânica do fantástico era algo natural no modo de pensar do escritor. Não era tentativa de imitar alguém, exorcizar uma influência, seguir uma moda. Mas duvido que algum crítico literário, indagado sobre os grandes nomes da literatura fantástica em língua portuguesa, lembrasse espontaneamente do seu nome.
É uma dessas obras em que há uma face iluminada (o Realismo) e uma face oculta (o Fantástico). Algo que está ali mas ninguém vê, porque não foi ensinado a ver especificamente aquilo.
2275) Borges vai a leilão (23.6.2010)

A casa de leilões Bloomsbury, de Nova York deve leiloar hoje uma certa quantidade de livros e manuscritos de diversos autores, entre eles John Steinbeck, Thornton Wilder, Julio Verne e Jorge Luís Borges. O filé do leilão será um manuscrito do famoso conto borgiano “O Jardim das Veredas que se Bifurcam”, do qual não existe, ao que parece, nenhuma outra cópia do próprio punho do autor (o conto é da época em que Borges não tinha ficado cego). A Bloomsbury afirma que é o documento borgiano mais valioso já levado a leilão, e espera vendê-lo por uma soma entre 200 e 300 mil dólares. Fui no saite da Bloomsbury e capturei imagens das 12 páginas do manuscrito, na caligrafia miúda e insetóide de Borges, em que as letras quase não se enlaçam umas nas outras, mas sucedem-se isoladas, embora juntinhas. Acho que muita gente tem esse prazer meio fetichista de ver como é um texto famoso escrito de próprio punho pelo seu autor, com as correções, rasuras, substituições, flechinhas puxadas do meio de um parágrafo para indicar uma frase escrita na margem.
Este conto tem um interesse especial para os leitores norte-americanos. Foi o primeiro conto de Borges publicado nos EUA, no famoso Ellery Queen’s Mystery Magazine, revista cuja edição brasileira é muito conhecida dos aficionados da literatura policial. Em 1948 o EQMM publicou uma tradução desse conto feita por Anthony Boucher, com uma apresentação bastante elogiosa sobre o “Señor Borges”, que na época era conhecido apenas nos círculos literários de Buenos Aires.
Como sou tiete, fui no saite da casa de leilões e baixei as 12 páginas do manuscrito, para tirar uma dúvida, entre outras coisas. Quem já leu este famoso texto sabe que ele conta o encontro do narrador com um sinólogo, Stephen Albert, e que o nome desse personagem é o mesmo de uma cidade onde se deu um fato importante da I Guerra Mundial. Esse sobrenome é um detalhe essencial para o conto (embora o motivo dessa importância só se revele nas últimas linhas). Ora, na edição norte-americana (tenho um exemplar do EQMM de 1948) o sinólogo se chama Stephen Corbie, nome de outra cidade envolvida na I Guerra. Essa disparidade sempre me inquietou; será que havia duas versões do conto, usando cidades diferentes para dar nome ao personagem? Ver o nome “Stephen Albert” escrito pelo próprio punho de Borges elimina pelo menos uma das possibilidades. Tudo leva a crer que Ellery Queen usou do poder discricionário concedido aos editores para substituir, sabe-se lá por que razões historiográficas, o nome da cidade sugerida por Borges por outra que a seu ver seria mais plausível (pelo menos aos olhos de um leitor norte-americano). Editores fazem isso o tempo inteiro. O próprio Ellery Queen jamais terá imaginado que esse conto de um argentino desconhecido chegaria um dia a ser leiloado por uma fortuna. E fico imaginando a cara de Borges ao receber a revista pelo Correio e ver que tinham trocado o nome do seu personagem.
2274) Brasil 3x1 Costa do Marfim (22.6.2010)

O Brasil melhorou 100% do primeiro para o segundo jogo. Começou difícil, é claro, jogo amarrado e atravancado pela seleção africana, que marcava forte. O Brasil quase fez 1x0 com Robinho com um minuto de jogo, num contra-ataque em que deveria ter lançado Luís Fabiano. E Fabiano fez o gol após uma roubada de bola e troca rápida de passes com Kaká, para um chute final a queima-roupa, golaço muito semelhante ao que o Donovan (EUA) fez na Eslovênia. No 2o. tempo, Fabiano fez outro golaço dando dois lençóis nos zagueiros; mesmo tendo levado a bola com o braço na ajeitadinha final, foi um belo gol, e fez justiça. O Brasil começou a jogar do jeito que gosta e Elano fez o terceiro gol com relativa facilidade.
Aí começou a aparecer um lado preocupante da Seleção de Dunga: o jeito ríspido e impaciente, que (não, não é preconceito) tem muito a ver com o espírito que o técnico passa para o time. Como os africanos, em desespero, começaram a fazer faltas violentas e desleais, o Brasil entrou no jogo deles. Kaká, que apesar de evangélico não é nenhum santinho (pelo contrário, é um jogador que bate muito, e só entra rachando em bola dividida) acabou sendo expulso. Meu medo é que nos próximos jogos aconteça o mesmo com os nossos jogadores que têm antecedentes de brucutu: Luís Fabiano, Felipe Melo, Daniel Alves...
Outra coisa preocupante é o apagão crepuscular do nosso time, que em dois jogos contra adversários fracos tomou dois gols inadmissíveis quando já estava com um placar confortável. Os gols feitos pela Coréia e Costa do Marfim pegaram nossa defesa desatenta, relaxada, um esperando pelo outro. Se o time está ganhando de 2x0 de uma Alemanha ou Holanda e sofre um gol assim, vira um pesadelo.
O Brasil vai jogar com Portugal sem muito aperto. A Copa só começa na segunda fase, das oitavas em diante. Esta primeira fase de grupos é a festa político-turístico promovido pela Fifa, é a fase onde aparecem azarões como Honduras, Nova Zelândia, etc. Carnaval e Woodstock nas arquibancadas, todo mundo tendo a chance de jogar numa Copa. Nas oitavas, ficam só os 16 times que têm algo para mostrar, e a Copa de verdade começa. O Brasil vai estar lá, e agora, depois de ver o futebol pobre apresentado pela maioria, acho que suas chances aumentam. Africanos e europeus são uma decepção. Os times da América são a grande surpresa, quase todos estão indo bem e com chance de passar para a fase seguinte.
Escrevo este texto no domingo à noite; até agora nenhuma seleção empolgou, e só quem tem duas vitórias são Brasil, Argentina e Holanda. Isto não quer dizer muita coisa. Na segunda fase, quem perder sai, e ninguém garante que, por exemplo, a Argentina, que tem jogado muito bem, não possa perder para México ou Uruguai, por exemplo, ou que o Brasil não possa perder para Espanha ou Chile. Daí em diante a competição vai se nivelando – tomara que num nível melhor do que o que tivemos até agora.
2273) Drummond: “Alguma Poesia” (20.6.2010)

Alguma Poesia foi o primeiro livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade. Publicado em 1930, seus 80 anos estão sendo comemorados com recitais e uma edição especial organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz. É um livro fundador, indispensável para entender a poética pessoal de Drummond (já está praticamente tudo ali, germinando, no livrinho do rapaz de 28 anos) e o modo como o Modernismo abalroou a poesia de então. E, por extensão, para entender a poesia que se faz hoje no Brasil. Alguma Poesia é uma leitura obrigatória e uma influência indelével nos jovens aspirantes a poeta dos últimos 40, 50, 60 anos.
Basta vermos o “Poema de Sete Faces” que o abre. “Anjo torto”, “gauche”, “uma rima e uma solução”... tudo isto saiu do livro para entrar no idioma. Precisava um bocado de coragem para chamar isso de poema, não porque não o seja, mas porque seu arranjo formal, sua dicção e seu olho enviesado sobre o mundo não são o que se esperava dos poetas de 1930. Pra começo de conversa, o poema não parece ter sequência, coerência, nem progressão. São sete fragmentos colados. Recordo a primeira impressão que tive quando o li há mais de quarenta anos: “sete retalhos de cores diferentes costurados uns nos outros”. Como se fossem sete tentativas de começar um poema, que não conseguissem avançar, mas fossem preservadas, por terem algum mérito próprio.
Os fragmentos se alternam entre confissões emotivas na primeira pessoa e flashes captados com certo distanciamento, certa neutralidade afetiva. As estrofes 2, 3 e 4 são como ceninhas de um videoclip urbano em que se confundem casas, homens, mulheres, bondes, pernas, bigodes, óculos. São o mundo de fora do poeta, o mundo que ele vê passar e que avalia com certo distanciamento brechtiano. É preciso um esforço de imaginação para pensarmos que o “homem atrás dos óculos e do bigode” poderia ser, talvez seja, o próprio poeta, vendo-se com olhos alheios, vendo a si próprio como rosto e mistério mudo.
Mistério que não existe na estrofe 1, sua auto-ironia, sua impudência juvenil de ousar ser do contra; na estrofe 4 e seu surpreendente lamento de auto-comiseração, que soaria até patético se não estivesse contrabalançado ou diluído pelas demais estrofes; pela melancolia e altivez solitária da famosíssima penúltima estrofe; pelo exemplar estranhamento da estrofe final, na qual tanto podemos interpretar a voz do poeta dirigindo-se a um amigo ou ao próprio leitor, quanto a voz de alguém dirigindo-se ao poeta.
Fernando Pessoa disse, celebremente, que toda poesia lírica é poesia dramática, todo sentimento é inventado, toda vez que o poeta diz “eu” está falando de outra pessoa, até quando julga sinceramente estar falando de si mesmo. Drummond, contemporâneo (à distância) de Pessoa, abriu seu livro de estréia com estes fragmentos que parecem pertencer a sete heterônimos. E o resto da vida tentou (ao inverso do poeta português) reunir todos sob um só nome e um só rosto.
quinta-feira, 15 de julho de 2010
2272) “A Conversação” (19.6.2010)

Harry Caul é um tipo especial de detetive, o chamado “araponga”, que se especializa em escutar e gravar conversas alheias, grampear telefones, etc., a fim de fornecer provas de diálogos clandestinos. Ele não apenas executa os serviços como também desenvolve e aperfeiçoa seu próprio equipamento (bugs minúsculos colocados nos objetos pessoais ou nas casas das vítimas, etc.). Quando comparece a uma convenção de espiões (parece piada, mas não é – nos EUA isso é um mercado tecnológico como qualquer outro) é saudado por toda parte como um dos gênios dessa atividade. Invejado e imitado por todos, mantém o tempo inteiro um perfil discreto. Sua vida se complica quando recebe a função de espionar um jovem casal que namora numa praça. Ele começa a temer que o marido, um poderoso executivo que o contratou, acabe querendo matar os dois.
A Conversação (1974) de Francis Ford Coppola, é um filme injustamente esquecido hoje, talvez obscurecido pelo sucesso e pela polêmica de outros filmes que o diretor fez na mesma época, como as primeiras partes de O Poderoso Chefão e Apocalypse Now. Perto desses superespetáculos, A Conversação parece uma coisa menor, como uma canção de Tom Waits ao lado de uma canção do Pink Floyd. Ainda assim, o filme ganhou para Coppola uma das poucas Palmas de Ouro que o Festival de Cannes já concedeu ao cinema americano. Certamente pelo seu teor político: é um filme típico da Era Watergate, quando escutas telefônicas dessa natureza derrubaram Richard Nixon (episódio citado de passagem na cena em que Caul assiste TV num quarto de hotel).
As cenas em que Harry Caul remonta e equaliza trechos de gravação sonora para reconstituir as falas do casal espionado lembram as longas cenas de Blow Up de Antonioni, em que o fotógrafo revela as fotos que parecem revelar um assassinato no parque. Em ambos a mesma situação: um técnico que espiona à distância um casal de namorados e julga descobrir uma trama criminosa. A situação lembra também o recente filme alemão A vida dos outros, em que um “araponga” do governo leva meses inteiros grampeando conversas da vida de um casal no apartamento de baixo, e acaba simpatizando com as pessoas que espiona. É uma curiosa simbiose à distância: o “voyeur” deixando-se embeber pela personalidade daqueles a quem espreita.
A Conversação é um thriller tecnológico que, sem ser propriamente ficção científica, é um filmes sobre a “mídia ambiente”, em que a tecnologia tem papel essencial, e revela o mundo urbano como uma floresta eletrônica. Coppola não imaginaria os níveis de sofisticação e de onipresença que esse tipo de vigilância alcançaria hoje, mais de trinta anos depois. Seu filme, usando gravadores de rolo de fita magnética, faz a ponte entre a sociedade retrô e super-vigiada do 1984 de George Orwell e o mundo digitalizado da espionagem de agora, com câmeras de segurança em todas as esquinas e recintos, e onde ninguém pode se sentir ao abrigo de espiões.
2271) Brasil 2x1 Coréia do Norte (18.6.2010)

Uma estréia normal. O Brasil só estréia assim. A única vez em que nossa Seleção estreou arrasando, pelo menos desde que assisto Copas, foi em 1970, quando goleamos a Tchecoslováquia por 4x1, de virada, com golaços de Jairzinho (2), Pelé e Rivelino cobrando falta. Foi um baile. Depois disso, amigos, foi só empate e vitória apertada, em geral contra times fraquinhos como esse time coreano. Mesmo assim, acho bobagem esse papo que ouço a todo instante, de que “o primeiro jogo é o mais difícil”. O jogo mais difícil é o último, é a decisão do título. Só acha difícil a estréia quem nunca jogou uma final. O jogo de estréia só é difícil pela enorme carga emocional que se coloca nos ombros dos jogadores.
O Brasil jogou um futebol meticuloso, cuidadoso, parecia uma solteirona namorando pela primeira vez. Todo cuidado era pouco. Teria sido mais simples partir pra cima e ver no que dava, mas essa é a filosofia que Dunga mais abomina. Dunga é a exacerbação do estilo de Zagallo e de Parreira. O mais importante é a posse de bola e a distribuição dos jogadores em campo de modo a que quem tem a bola tenha sempre três ou quatro opções de jogada à sua volta. O time deve ficar tocando, e “só ir na boa”, ou seja, só partir para o gol quando tiver certeza. O problema é que hoje em dia essas situações de certeza pouco aparecem. Precisamos partir para o gol como quem salta no escuro, e foi justamente o que fez Maicon, acertando um chute dificílimo, mas fazendo um gol que ele próprio já fez outras vezes (lembram aquele amistoso, 6x2 em Portugal?). Claro que não acerta todas, mas um dia acaba acertando, e quando acerta o alívio é grande, não é mesmo?
O segundo gol foi um gol do Santos campeão de 2002: Robinho pega a bola, deriva para a direita, vê Elano fechando em diagonal pela ponta direita e dá a bola cruzada no meio dos beques. Se a zaga não cortar, tem 90% de chances de ser gol. Foi assim o primeiro gol de Elano pela Seleção, naquele amistoso Brasil 3x0 Argentina em Wembley, em 2007 (pode ver no YouTube).
Acho que o Brasil pode chegar até as semifinais nesta Copa, só não acredito que ganhe. Pode avançar porque tem um time sólido como a maioria não tem. Claro que no meio do caminho pode ter uma pedra, uma topada, uma surpresa. Pode até ser a Costa do Marfim, que enfrentaremos hoje. Por que não? O time africano não joga um grande futebol mas é jovem, vigoroso, rápido, e tem um técnico veterano, o sueco Ericsson, que conhece o Brasil como a palma da mão dele.
Copa do Mundo é diferente de Campeonato Brasileiro. É um torneio curto no qual é preciso se classificar ao longo dos três primeiros jogos, e depois ganhar quatro jogos seguidos. Brilhantismo conta, é claro, mas não é tudo. Dez ou quinze minutos de desorientação no meio de uma partida podem acabar com tudo. É uma corrida de 100 metros rasos uma corda bamba. Ganha não só o melhor, mas o que é melhor, mais consistente e mais sortudo.
2270) Trotsky fala de Maiakóvski (17.6.2010)
Uma antologia de Maiakóvski que comprei recentemente (Poemas 1913-1916, Ed. Visor, Madrid, 1993) traz, além da tradução espanhola de vários poemas (alguns dos quais nunca vi traduzidos em português) um prefácio de Leon Trotsky, que dá uma visão interessante e de época sobre o poeta da camisa amarela.
O texto de Trotsky certamente não foi destinado a ser um prefácio; parece ser um trecho de uma obra maior, pelas referências que faz. Deve ser um capítulo numa análise mais longa da poesia russa daquele tempo. Suas opiniões são importantes porque Trotsky era o lado culto, cosmopolita, “artístico” da cúpula revolucionária soviética. O próprio Lênin não se comparava a ele em termos de cultura geral e literária.
Lênin (a quem Maiakóvski dedicou numerosos elogios e pelo menos um grande poema) via com olhos atravessados o vanguardismo do poeta futurista; era um leitor dos poetas da velha guarda como Pushkin, e podemos imaginar que via Maiakóvski com os mesmos olhos com que a esquerda brasileira, nos anos 1960, via gente como Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Trotsky critica os poemas de Vladimir, mas o faz com conhecimento de causa e percepção. Diz ele:
“Maiakóvski chegou [à Revolução] pelo caminho mais curto, o da boemia rebelde e perseguida. Para Maiakóvski, a revolução foi uma experiência verdadeira, real e profunda, porque caiu como raios e trovões cobre aquelas coisas que Maiakóvski odiava à sua maneira e com as quais não se reconciliou”.
Mas ressalva:
“Seus sentimentos subconscientes para com a cidade, a natureza, o mundo inteiro, não são os de um operário, mas os de um boêmio. (...) O tom cínico e impiedoso de muitas imagens, especialmente do seu primeiro período poético, denuncia as marcas visíveis do cabaré artístico, dos cafés literários e de tudo que isto significa”.
Trotsky procede a um desmonte completo do poema “150 Milhões”, uma glorificação da Revolução Soviética, no qual, entretanto, ele vê apenas equívocos e exageros, os exageros típicos de quem glorifica a Revolução num tom panfletário, caricatural, tão exagerado que acaba por denunciar a pouca identificação do autor para com ela.
Diz Trotsky: ´
“Em Maiakóvski, cada frase, cada expressão, cada imagem trata de ser o clímax, o máximo: por isso o conjunto não tem clímax. (...) Apesar de suas hipérboles trovejantes, encontra-se nessas imagens gratuitas e primitivas uma espécie de afetação, parecida com a que os adultos adotam com as crianças”.
Os numerosos exemplos citados por Trotsky corroboram essa crítica, mostrando que, para ele, o individualismo exacerbado do poeta o fazia falar com brilhantismo de si próprio mas perder-se em imagens mirabolantes ao tentar assumir um ponto de vista coletivo.
Ainda assim, Trotsky elogia poemas como “A Nuvem de Calças”, e diz do poeta:
“Muitas de suas imagens, frases e expressões entraram para a Literatura e permanecerão nela durante muito tempo, se não para sempre”.
2269) Aruanda 50 anos (16.6.2010)

Nossos vizinhos pernambucanos, com sua conhecida modéstia, costumam dizer que em Recife os rios Capibaribe e Beberibe se juntam para formar o Oceano Atlântico. Nós não ficamos atrás, pois já vi paraibanos branquelos e de óculos afirmarem que Augusto dos Anjos inventou a poesia de ficção científica, e que Aruanda de Linduarte Noronha criou o Cinema Novo brasileiro. Já correu um Açude Velho de tinta comentando esse filme, e não sei se tenho algo de novo a dizer. Do que já foi dito, lembro as palavras de Jean-Claude Bernardet em Brasil em Tempo de Cinema, palavras que durante muitos anos foram repetidas como um mantra por todos os pretendentes a cineastas da minha geração, sem um centavo no bolso e com muitas idéias na cabeça:
“Vindo das lonjuras da Paraíba, Linduarte Noronha dava uma resposta das mais violentas às perguntas: Que deve dizer o cinema brasileiro? Como fazer cinema sem equipamento, sem dinheiro, sem circuitos de exibição? Tais eram as perguntas que surgiam de norte a sul do país. (...) O que fazer? “Aruanda” o dizia. Como fazer? Também o dizia.”
Jean-Claude recoloca essas questões em seguida. Ele diz, por exemplo, que as deficiências técnicas de Aruanda tiveram função dramática, mas que isso não vale para todos os filmes. Ou seja: não se pode criar uma cinematografia complexa, variada, onde caibam desde os blockbusters até os filmes-de-arte, desde os entretenimentos médios até os filmes B, baseando tudo na estética aruandense, ou na “estética da fome” glauberiana. Mas do nosso ponto de vista o cinema industrial era tão inacessível quanto a Praça dos Três Poderes. Era uma briga de cachorro grande. O que muita gente da nossa geração queria era uma fórmula que servisse para justificar o cinema que tínhamos condições de sonhar fazer. Um cinema forçosamente tosco, precário, assumindo com despudor a precariedade técnica. Um cinema zombando do cinema bem-feito, por sua pretensão, e mangando de si mesmo, por sua falta de poder. Visto por este ângulo, Aruanda prefigura, com sua estrutura de produção “não-tem-tu-vai-tu-mesmo” até mesmo o cinema “udigrudi” dos anos 1970, os filmes de Sganzerla, Bressane, Rosemberg, e tantos outros capazes de fazer um filme por cima de pau e pedra, com meia dúzia de amigos e de latas de negativo.
Aruanda não criou o Cinema Novo (afinal de contas, é posterior a Rio 40 Graus, O Grande Momento, etc.), mas influenciou todo o Cinema Novo que veio depois dele, influenciou o cinema marginal dos anos 1970 e influencia os jovens que hoje empunham uma câmara digital e vão em busca da “realidade rude”, como dizia Régis Frota. Digo que influencia porque sabemos que uma obra só influencia quem a vê. Uma obra só influencia quando existe, quando foi mesmo feita, quando se tornou um Fato Consumado. José Sanz dizia: “Cinema não se discute, faz-se”. Aruanda nos ensinou: criem um fato consumado, e o futuro nunca mais se verá livre dele.
2268) O Dia Dunga (15.6.2010)

Chegou, enfim! A Seleção vai estrear na Copa, sob as ordens de um técnico carrancudo, controlador, centralizador, secretista, militarista, e vai enfrentar uma seleção, a Coréia do Norte, de perfil carrancudo, controlador, centralizador, secretista, militarista... Pense numa sincronicidade grande! Não acho o time de Dunga o time ideal nem o time mais representativo do nosso futebol, mas acredito que pode ir mais longe do que a Seleção badaladíssima de 2006 foi. Tem condições de ir às semifinais, por exemplo. Mas não será campeã – não está no contrato.
Imagino que após a Copa de 2006 o técnico Parreira chamou a CBF e disse, “Chega, me dá o meu boné, vou embora, não sou palhaço”. A CBF chamou Dunga. “Olha, já foi tudo negociado. Eles garantiram que em 2014 seremos anfitriões, e campeões. O Brasil merece isso. Precisamos agora de alguém que perca em 2010 mas crie uma base forte para a seleção que será campeã na Copa seguinte. Com sorte, o técnico de uma será mantido até a outra, embora isto a gente não possa garantir. Mas o que precisamos agora é de alguém para ir pro sacrifício, o de perder uma Copa com o olho na próxima. As velhas raposas não toparam: Zagallo, Luxemburgo, Muricy, Felipão, Mano Menezes, os suspeitos habituais. Você, Dunga, não tem história como treinador. Quer correr o risco? Perder 2010 com a possibilidade de ganhar 2014?” O ídolo cinematográfico de Dunga (ele diz nas entrevistas) é Arnold Schwarzenegger. O que responderia Arnold, numa situação assim?
Claro que não posso provar, tudo isto é imaginação minha, mas minha imaginação de vez em quando acerta. Dunga tem feito um bem enorme à nossa Seleção, embora este bem fique eclipsado por suas atitudes antipáticas, principalmente contra a imprensa. (Ele não sabe, mas eu sei, que todo gesto para com a imprensa, tanto de simpatia quanto de antipatia, é multiplicado por dez. A imprensa funciona sempre como um zero à direita, em tudo.) Ele acabou com a tietagem, inclusive a dos repórteres (aqui pra nós, o nível intelectual e emocional da nossa reportagem esportiva numa Copa é comparável ao da imprensa inglesa ao tratar de adultérios de celebridades). E formou uma base de jogadores que, se mantiverem a integridade física, serão em 2014 um time tão experiente quanto o de 1970.
Ganharemos em 2014? Nunca se sabe. Em 1974 combinou-se que ganharia a Alemanha, dona da casa, mas a Holanda quase atrapalha, como quase atrapalhou a Argentina, dona da casa, em 78. As Copas de 1982 e 1986 foram Copas abertas, ganhava quem chegasse na frente. A de 1990 foi armada para a Itália, mas Argentina e Alemanha atropelaram na chegada. A de 1994 foi aberta de novo, e o Brasil ganhou por ser o menos ruim. A de 1998 era da França (lembram daquele domingo?). A de 2002, no Oriente, era de quem chegasse (fomos nós). A de 2006 era para a Alemanha, mas o time era tão fraco que não chegou lá. Esta aqui não sei de quem vai ser. Só sei que a de 2014 é nossa.
2267) Análise Semântica do “Tá Ligado?” (13.6.2010)

Por que motivo os jovens de hoje (e os malucos em geral) pontuam suas frases com um reiterante “tá ligado?”. Quando converso com alguns amigos meus, cada vez que eles me perguntam se eu tô ligado sinto o impulso de responder que tô. Nossos diálogos ficam com um perfil meio nonsense: “BT, preciso falar contigo uma coisa, tá ligado?” “Tô. O que é?” “Amanhã de noite vai uma galera lá em casa, tá ligado?” “Tô. Quem são?” “É um pessoal de fora, mas que é fã das tuas músicas, tá ligado?” “Tô. E daí?” “Eles queriam que tu aparecesse lá pra dar uma palhinha no violão, tá ligado?” “Tô. Que horas vai ser?” E assim por diante. Todas as vezes que faço assim, eles me perguntam por que eu estou falando de um jeito tão estranho.
Em busca das origens dessa expressão lembrei-me do “está lá?” que os portugueses usam ao telefone. São semanticamente equivalentes. Quem diz isso quer saber se o canal de comunicação está aberto e funcionando, se não houve nenhum corte. Maldo que a origem da expressão lusitana se deu numa época em que as conexões telefônicas eram precárias, e quando alguém falava mais longamente, sem ouvir nada do lado oposto da linha, tinha um certo receio de que a ligação tivesse caído. Era preciso perguntar se o outro ainda “estava lá”.
O “tá ligado” pode servir também como um sinal de pontuação, marcando o fim de uma mensagem. Mais ou menos como aquelas comunicações por “walkie-talkie” ou outros tipos de rádio em que (por alguma razão técnica que não entendo por completo) o fluxo da transmissão não permite que as duas partes falem e se ouçam ao mesmo tempo (como ocorre com o telefone normal, onde mesmo quando superpomos nossa voz para interromper o interlocutor continuamos a ouvir sua voz ao mesmo tempo que a nossa). No rádio, o fluxo é unívoco, ou seja, ou está todo indo numa direção ou todo na direção oposta. Cada um tem sua vez de falar, e por isso é necessário avisar que a fala terminou: “Alô, estamos sobrevoando o campo de pouso, precisamos de instruções, câmbio”. A palavra câmbio indica, no caso, troca , mudança de interlocutor; serve para dizer ao outro que é sua vez de falar.
Uma outra teoria vai mais longe, e talvez seja uma teoria espúria, mas vale o registro. Afirma-se que o uso regular (ainda que em doses pequenas) de plantas alucinógenas desenvolve nos indivíduos as faculdades telepáticas que o ser humano possui de nascença, mas que foram atrofiadas pelo estilo de civilização que criamos, em que a comunicação verbal e gestual rapidamente tornou obsoleta a telepatia. O uso dessas plantas possibilita ao indivíduo ficar “ligado” na mente do interlocutor, enviando-lhe o que pensa e recebendo a resposta que intuitivamente produzimos quando nos preparamos para falar. A comunicação verbal é mera formalidade, mero reforço. Na verdade nossas mentes estão em ligação direta quando falamos, por isso é sempre necessário checar se a ligação tá boa, tá ligado?
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