terça-feira, 15 de junho de 2010

2157) Jornada rumo ao horror (5.2.2010)



Há quase vinte anos fiz uma viagem aos EUA, e por motivos financeiros, acima de tudo, o meu voo foi feito pela LAP, Líneas Aéreas Paraguayas. Fui do Rio para Assunção, e depois de várias horas de espera embarquei num voo direto de Assunção para Miami, onde desembarquei às 3:30 da madrugada, cheio de sono, para esperar minha conexão seguinte. Eu sou daquele tipo que quando acorda está com um Q.I. próximo ao de um Homem de Neanderthal. Vou melhorando com o correr das horas, mas quando acordo meu cérebro só me permite tomar as mais rudimentares decisões, e desembarcando num aeroporto desconhecido, àquela hora, a decisão era: “Siga a boiada”.

Segui a boiada ao longo de larguíssimos corredores, imensas escadas rolantes, um cenário kubrickiano e futurista que só vim a admirar depois, em retrospecto, porque naquele instante meus neurônios estavam, por unanimidade, tentando seguir a boiada. Éramos uns duzentos passageiros e acabamos nos amontoando num saguão vasto, onde me encostei numa parede, mochila às costas. Todo mundo amarfanhado e sonolento. Homens de negócios com pastinhas 007 (eram raros os laptops naquele tempo), famílias inteiras aglomerando-se em busca de proteção, casais jovens de mãos dadas e cabecinha no ombro, gente se maquilando, gente conversando baixinho, casais com bebês. Um rosadíssimo guarda de uniforme surgiu por uma porta perto de onde eu estava e falou com voz possante uma série de frases sem legenda, fazendo no final um gesto de “sigam-me!”.

Segui-o, porque foi isto que outras pessoas em volta começaram a fazer, e pegamos novos corredores até uma sala menor, onde me deixei cair num assento plástico. E então notei algo muito estranho. Nesta nova sala, onde muitos assentos continuavam vazios, havia apenas cerca de vinte casais, conduzindo vinte bebês… e eu. Olhei em volta, confirmei. Alguns casais exibiam seu bebê uns aos outros, trocavam comentários. Percebi que tinha me metido num grupo diferente, que iria passar por outro filtro de imigração, sei lá o quê. Enganchei a mochila nas costas e retornei à sala anterior, onde o restante do grupo já era levado noutra direção.

Tempos depois, amigos me disseram: “São casais de americanos que vão aos países do 3o. Mundo para adotar bebês. Em geral, eles têm um filho e a criança precisa de um transplante. Eles viajam, adotam um bebê nativo, trazem-no, e o transplante é feito na moita, em clínicas particulares e secretas”. Uma lenda urbana, é claro. Mas, quando leio hoje as notícias sobre missionários que são apanhados no Haiti “adotando” crianças supostamente órfãs (até mesmo contra a vontade delas próprias) fico matutando. Por que será que a versão mais sinistra dos fatos nos parece tão plausível? Porque devemos sempre imaginar o pior, para que ele não nos pegue de surpresa? Ou porque algo nos diz que o pior não surpreende nunca, que neste nosso mundo ele acontece o tempo todo, ele é a norma?

2156) Mais um Sherlock Holmes (4.2.2010)



Jorge Luís Borges, criticando a dublagem do cinema argentino do seu tempo, comparou o Minotauro, que tinha cabeça de touro e corpo de homem, com o monstro produzido pela dublagem, que tinha “rosto de Greta Garbo e voz de Aldonza Lorenzo.” A mais recente criatura teratológica em circulação habita as telas do filme de Guy Ritchie, e combina o nome de Sherlock Holmes e a pessoa física de Robert Downey Jr. O ator talvez seja o menos culpado, porque já admitiu, em entrevistas, que seu personagem tem mais a ver com James Bond do que com o detetive de Conan Doyle. (Por falar nisso, o Sean Connery dos anos 1970 não teria feito um Holmes aceitável?)

Não devemos nos iludir com a questão superficial da semelhança física. Holmes era alto, longilíneo, dolicocéfalo, capaz de ímpetos de energia física e de semanas inteiras de letargia absoluta; um tipo cerebral, introvertido, obsessivo. (Que tal Fred Astaire?...) Downey Jr., que é bom ator, faz o que pode, não para se parecer com Holmes, o que é impossível, mas para encarnar um personagem com algumas dessas características; consegue, em vários momentos. Holmes já foi vivido por Christopher Plummer e por Charlton Heston, mas não acredito que, fora a altura, os dois tenham contribuído com muita coisa. Baixinho por baixinho, já tivemos no papel Peter Cushing (e também, curiosamente, sua eterna nêmesis, Christopher Lee). Os meus Holmes preferidos foram o clássico dos anos 1940, Basil Rathbone, e os mais recentes Michael Caine (no divertido Without a Clue, 1990) e Nicol Williamson (A Solução Sete por Cento, 1976).

Depois de ver o filme de Guy Ritchie dei uma passada rápida em vários saites e percebi que praticamente todas as críticas (positivas e negativas) se concentram num único aspecto: o filme é fiel ao personagem? Fala-se pouco do enredo (que é satisfatório para os padrões atuais), da direção de arte (excelente), dos efeitos especiais (muito bons), do resto do elenco (variável). O que os críticos discutem é: parece ou não parece com Holmes?

Dizem que o detetive é o personagem literário mais adaptado pelo cinema, de modo que a esta altura ele já deve ter passado por todas as deformações possíveis. Prova de sua invulnerabilidade é o fato da cópia número 975 ainda ser comparada ao original, e não à cópia 974. Nenhum personagem foi tão adaptado, retalhado, reformatado, procusteado e deformado quanto Holmes. O filme de Guy Ritchie pode se gabar inclusive de ter produzido, com Jude Law, um Watson à altura do protagonista, e à altura dos melhores momentos do Watson literário. Watson é um ex-soldado, tem coragem pessoal, envolve-se em confrontos físicos ao lado de Holmes (que praticava, sim, artes marciais orientais e o box-savata francês). Há numerosos exemplos, nos contos, de deduções suas elogiadas por Holmes, comprovando que ele é pelo menos um bom aluno. Criar um Watson não ridículo é mais uma das qualidades deste filme.

2155) Os filmes da década (3.2.2010)



Historiadores do futuro irão examinar nossos escritos com a mesma perplexidade e estranheza que nos acomete examinando o delírio cultural da Idade Média, quando as pessoas se entregavam a tarefas ciclópicas que hoje nos parecem inteiramente insensatas. Muitos hão de se indagar por que motivo os homens do século 21 faziam (por exemplo) listas dos “melhores filmes do ano” ou dos “melhores livros da década”. À primeira vista parece algo necessário, para tornar mais nítidos certos parâmetros de qualidade. Mas de que adiantavam tais listas (pensarão eles), se ninguém chegava a um acordo? Lembro-me de ter visto uma vez uma lista dos “20 Melhores Filmes de Todos os Tempos”, em que cada crítico escolhia 20 títulos, e depois fazia-se uma contagem de pontos dos filmes mais citados. Foi escolhido como O Melhor de Todos os Tempos o inevitável Cidadão Kane de Welles, com um detalhe: ninguém votou nele como o melhor filme. Mas todos o incluíram em posições tais que na pontuação final ele pulou para a cabeça da lista.

Andei comparando duas listas recentes dos Melhores Filmes da Década, votados pelos participantes dos saites FilmComment (que selecionou 150 filmes) e MetaCritic (que escolheu 100). São grupos respeitáveis de entendedores. Entre os votantes do primeiro, há gente que admiro, como Gilbert Adair, David Edelstein, Jonathan Lethem, Jonathan Rosenbaum, Andrew Sarris e David Thomson. Este júri escolheu Os 150 Melhores Filmes da Década, e o melhor deles foi Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) de David Lynch. Ouço daqui os dentes de muitos leitores rangendo de irritação, mas, paciência, faz parte do jogo. Talvez se consolem um pouco ao saber que na outra lista (a do MetaCritic), o filme de Lynch sequer se classificou. Coisa espantosa – como é que um filme é o melhor de todos para um grupo, e para outro não fica sequer entre os 100 melhores?

Resolvi inverter a pesquisa: quem terá sido então o melhor, para a turma do MetaCritic? Ora, foi o filme O Labirinto do Fauno de Guillermo del Toro. Se o leitor acha a escolha injusta, pode se consolar ao ser informado de que na outra lista o filme espanhol ficou apenas num modesto 105o. lugar. Apenas um filme aparece entre os 10 primeiros de ambas as listas: o romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro. A lista do Film Comment pode ser vista aqui: http://tinyurl.com/ybo5db9. A do MetaCritic aqui: http://tinyurl.com/yaxw9ty. De um modo geral, a do FilmComment inclui filmes mais obscuros, de cinematografias pouco conhecidas; é uma escolha de especialistas com acesso a material raro e à programação de salas especializadas. A do Meta Critic é mais voltada para o cinemão, muito centrada na programação comercial dos EUA, tem um número maior de filmes que passaram aqui, e vários filmes que francamente, acho meio bobos. Nenhum filme brasileiro apareceu nas duas listas.

2154) Wilson Martins (2.2.2010)



Considerado por muita gente o maior crítico literário brasileiro, Wilson Martins morreu no sábado passado, aos 88 anos, em Curitiba, onde morava. Passei o domingo clicando Brasil afora para ver a repercussão de sua morte. Só achei notas curtas, com os dados biográficos, os prêmios, os títulos, e as obras principais, entre elas a única que conheço, a História da Inteligência Brasileira. Não a li toda: a edição que tenho é de sete volumes, embora alguns jornais falem em doze. Mas já a pesquisei muito, anos atrás, num tempo em que escavava, arqueologicamente, as raízes da ficção científica e da literatura fantástica brasileira. Wilson Martins tinha a combinação de dois talentos raros, o de muito ler e o de muito lembrar. Isto lhe permitia traçar o perfil de uma época literária recorrendo a dúzias de fontes heterogêneas. Romance, teatro, direito, poesia, imprensa, memorialismo, legislação, tudo isto ele consultava e costurava numa argumentação clara e muitas vezes ferina, fotografando o “espírito do tempo”.

Poucas pessoas terão lido tanto, ou, tendo lido, terão registrado com tamanha minúcia e visão pessoal suas impressões sobre o que leram. À esquerda e à direita Wilson Martins era tido como um franco atirador, um sujeito que não pertencia a nenhuma das dez ou doze confrarias informais que regem a Bolsa de Valores Literários do nosso país. Era um crítico que ia direto ao ponto quando se tratava de resumir em poucas linhas a contribuição de um autor ou os seus limites como criador literário. Muitos críticos são temidos pelos escritores porque sabemos que eles gostam de falar mal, justamente para serem temidos. Não era a impressão que me dava Wilson Martins. Tinha seus critérios de leitor, que muitas vezes divergem dos meus: lembro-me que nunca engoliu Sousândrade (que acho fascinante) e que costumava comparar Guimarães Rosa e Mário Palmério dizendo tratar-se do mais superestimado e do mais subestimado dos nossos romancistas regionais. Mas nada disso fazia parte da chamada “crítica vitriólica”, do “bater para ser respeitado”. Pelo que me ficou da leitura, Wilson Martins parecia ver nas obras o início, o fim e o meio de tudo, sendo os escritores e sua “persona” um mero fator a ser levado em consideração.

Tinha um humor fino, capaz de fazer murchar uma reputação pomposa com uma simples alfinetada no ponto certo. Pesquisar obras obscuras parecia diverti-lo imensamente. Num mundo dividido entre críticos textuais (que só veem as palavras) e contextuais (que só veem psicologia e sociedade), ele era capaz de compor vastos planos gerais da política, da história e da economia, ao longo de várias páginas, e partir dali para mostrar seus reflexos no enredo de um romance ou na temática de um florilégio de sonetos. Ia do texto ao mundo e de volta ao texto com um volteio da pena. Pensava com clareza e escrevia com elegância, o que sempre me fez abrir com alegria aqueles livros de 550 páginas.

2153) Chica Dondon (31.1.2010)



Dico ouvia falar em Chica Dondon desde que se entendia de gente. As mulheres não tocavam no nome dela, como se fosse perigoso. Diziam “a tal”, ou então “a sujeita da Vazante”, que era a baixa que corria ao longo do canavial. Lá se erguia a casinha de alvenaria, bem cuidada, com gaiolas de pássaros penduradas em volta. Quem falava nela como bem entendia eram os homens reunidos na bodega. “Vou lá em Chica hoje”, diziam, “vou descarregar”. Dico avistava de longe um vulto debruçado na janela, com um pano vermelho na cabeça, como que esperando alguém. Ela só ganhou existência real quando o pai dele, Noberto, entrou um dia no assunto. Dico estava sentado no batente da bodega (“vá lá trazer seu pai, e não me chegue aqui sem ele”), e os homens estavam bebendo e cuspindo. Seu Mateus estava arranchado em cima duma saca de farinha e disse, “Noberto, tu não vai mais na Dondon? Ela vive perguntando.” O pai respondeu: “Eu só piso em merda quando não vejo”. Os homens riram e Mateus insistiu: “Rai te danar, tu já passasse por aquela cama”. E ele: “Eu só fui lá quando tinha quinze anos, e não fui pra cama, fiquei sentado no sofá e quando terminou fui-me embora”. Houve uma trovoada de risos e aquilo nunca mais saiu da cabeça dele, principalmente aquele pedaço: quinze anos!

Quinze anos! E ainda era donzelão, como gritavam os moleques do canavial, facão em punho, quando ele passava rumo à escola. Os olhos pesados de sono à noite, quase colados à folha do caderno, fazendo o dever, à luz do candeeiro, escutando os berros da professora porque não sabia dividir as sílabas de “ro-se-i-ra-l”, a reguada nos dedos, os outros meninos gritando com ele, “vai lá em Chica tirar o selo, senão a gente tira o teu!”, e outro gritava, “vai logo, quem não faz leva!”.

Um domingo estava de castigo e a família foi pra missa. Pulou a janela e disparou para a Vazante como quem resolveu morrer. Bateu na porta sem ar. “Quem é?”, perguntou alguém lá dentro. Ele acertou a dizer: “Dico de Noberto”. Ela o fez entrar. Não era velha e cheia de feridas como ele imaginava, era muito branca, toda redonda, e cheirava a alfazema. Fez menção de levá-lo para o quarto, mas por alguma razão ele jogou-se no sofá. Ela se ajoelhou na frente dele e abraçou-o com calma, apertou-o de encontro a si e disse baixo, “Ô coraçãozinho pra bater...” Ele quis dizer que viera correndo, mas a boca estava seca como um papel. Ela o cobriu de cheiros, de afagos, e por fim falou: “Tu parece com teu pai. Mas tu não é pra mim. Sabe aquela casinha amarela lá embaixo, perto do rio? Quem mora lá é Zuleide, minha sobrinha. Ela te conhece. É uma de trança, que vende boneca na feira. Vai lá. Bate e diz quem é, que ela é doida por tu”. Ele pediu um caneco dágua, bebeu, e disparou de novo. Alguma coisa estava iluminando o mundo. Nuvens roxas cresciam no céu enquanto ele corria, o vento bravo aumentava, e as canas farfalhavam como um roseiral.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

2152) O jogo de Tarantino (30.1.2010)



No filme Bastardos Inglórios de Quentin Tarantino há uma cena que exemplifica muito bem o gosto do diretor pelo que a gente chama de arte referencial, a arte que o tempo todo fica fazendo citações a si mesma. No caso são citações da cultura de massas, da literatura popular e do cinema barato, coisas das quais Tarantino sempre confessou ser um consumidor voraz.

A cena ocorre no porão de uma taverna, na França, onde os “Bastardos” (agentes Aliados infiltrados) estão disfarçados de nazistas, e marcam um encontro com uma agente dupla alemã, a quem cabe facilitar sua entrada em Paris para um atentado contra oficiais do Reich. Os três guerrilheiros, com uniformes alemães, entram no porão, onde imaginam que irão encontrar a agente sozinha, e surpreendem-se ao ver que ela está numa mesa com soldados nazistas, tomando champanhe e comemorando o nascimento inesperado do filho de um deles. Para se divertir, os soldados e suas namoradas estão jogando um jogo em que cartas como as do baralho estão pregadas em suas testas, com nomes escritos.

O jogo – que eles logo explicam aos demais, envolvendo-os, e aumentando o suspense – é muito simples. Cada pessoa pega uma dessas cartas e escreve nela, sem mostrar a ninguém, o nome de uma pessoa, real ou fictícia, que seja conhecida por todos; personagens famosos da História, da literatura, da política, etc. Em seguida, cada pessoa entrega essa carta, coberta, para quem está à sua esquerda, de modo a que todas as cartas façam um rodízio, em círculo. Depois, cada um pega a carta que recebeu do parceiro à direita e a cola na própria testa. Assim, cada um deles vê quem são os “personagens” dos demais, mas não vê o que ele próprio exibe na testa.

Quando a cena começa, um soldado nazista tem na testa uma carta onde está escrito “Winnetou”. É uma ironia saborosa de Tarantino, pois, embora hoje esquecido, este é o índio americano herói de várias aventuras (ao lado de seu amigo, o pistoleiro branco Old Shatterhand) escritas por Karl May, o autor favorito de Hitler. Karl May era uma espécie de Julio Verne dos romances de aventuras. Nunca pôs os pés fora da Alemanha, mas, munido de mapas, guias de viagem e livros de geografia, ambientava aventuras mirabolantes em todos os continentes.

Outros personagens usados no jogo são Marco Polo, King Kong, Edgar Wallace (escritor policial, e um dos roteiristas de King Kong), o cineasta G. W. Pabst, a atriz Brigitte Helm (de Metropolis). A cena mostra a salada de referências culturais de Tarantino; ajuda, pelo clima de descontração e sem-pressa do jogo, a prolongar o suspense intolerável dos espiões que não contavam com tanta interação e temem ser desmascarados. E serve como uma metáfora do cinema de Tarantino. Todo personagem de seus filmes parece ter um ou mais cartões pregados na testa. Ele “pensa” que é real, mas nós, espectadores, sabemos que ele não passa de uma citação a um filme de Fulano ou de Sicrano.

2151) Jesse Dylan e a Internet (29.1.2010)



(Jesse Dylan)

A revista eletrônica Edge colocou para dezenas de cientistas, pensadores, artistas, personalidades públicas em geral a pergunta: “De que modo a Internet modificou sua maneira de pensar?” Um dos entrevistados foi o cineasta Jesse Dylan, fundador da Lybba, uma organização cujo objetivo é manter uma rede interligada de informações sobre medicina, cruzando dados fornecidos por médicos, pacientes e pesquisadores, e contribuindo para o avanço na cura de variadas doenças. Jesse, nascido em 1966, é o filho mais velho do cantor Bob Dylan, e trabalhou intensamente nos batalhões informáticos da campanha presidencial de Barack Obama.

Para Jesse (http://www.edge.org/q2010/q10_16.html), a grande mudança provocada pela Internet foi “uma troca descentralizada de informações”, e o principal resultado disso é que “novas idéias podem surgir, literalmente, de qualquer lugar”. Para ele, “neste exato momento um garoto pode estar recebendo e manipulando dados do Grande Colisor de Partículas na Suíça, ou pode estar procurando sinais de vida extra-terrestre com o projeto SETI. Qualquer pessoa pode fazer a próxima descoberta que vai mudar o mundo. Esta é a principal virtude da Internet”.

Alguém poderá dizer que nenhum garoto virou Einstein até agora, mas a resposta mais sensata é de que o processo mal começou. A quantidade de dados que produzimos hoje em dia está muito além da nossa capacidade de exame. Ou esse exame é aberto a um número maior de pessoas interessadas (e com um mínimo de conhecimento para poder fazer avaliações novas, ou pelo menos propor hipóteses novas) ou de nada adianta ficar elevando ao quadrado nosso poder de computação.

“Eu vejo a mim mesmo e a outras pessoas”, diz Jesse, “como canais de informação através dos quais está se filtrando toda a escala da experiência humana. Quando eu era garoto, aprendia as coisas observando o mundo e lendo livros. O conhecimento que eu ambicionava estava escondido de mim. Muitas coisas eram secretas ou inacessíveis. Na minha juventude, era precisar cavar muito fundo e explorar bastante para poder encontrar o que estava procurando, e muitas vezes o que eu procurava estava além do meu alcance. Para ir dos livros de Jack Kerouac até os discos de Hank Williams e dali para a escala pentatônica era uma enorme travessia. Hoje, isto pode acontecer em um instante. Dizem que os tempos antigos eram melhores do que o de hoje, mas eu discordo”.

Jesse é de uma geração que lembra do sistema antigo, e que na juventude testemunhou a criação do sistema novo. Esse entusiasmo dele se repete muito com pessoas da minha geração (cerca de 15 anos mais velhos que ele) que, além das limitações naturais do sistema, enfrentaram outra coisa: a censura do regime militar. Os maiores defensores da Internet que conheço são cinquentões que veem nela esse Paraíso que um dia julgamos impossível: informações claras e transparentes, 24 horas por dia ao alcance da mão, para quem souber procurar.

2150) Pen-drive (28.1.2010)



Eu estava fazendo um trabalho numa produtora quando entrou na sala um funcionário e pôs na mesa uma caixa: “Vim trazer o HD que vocês mandaram comprar”. Olhei a caixa: era um disco rígido de um Terabyte de capacidade. Fiz um cálculo rápido. Dependendo da resolução de imagem escolhida, seria possível gravar ali dentro todos os filmes que assisti na minha vida. Num troço do tamanho do meu cérebro, e com a vantagem adicional de guardar tudo intacto, porque meu cérebro, desgastado por atividades recreacionais, já não lembra muita coisa.

A capacidade de estocar informação é um dos prodígios permanentemente renovados de nossa época. Os caras da minha geração volta e meia estão escrevendo artigos como este, louvado uma maravilha que, para rapazes e moças de 20 anos, é uma mera bobagem. “Por que se admirar com um terabyte?”, perguntam eles. “Sempre foi assim, e, se não foi, vai ser, de agora em diante”. Eu sou do tempo em que essas engenhocas de gravar arquivos eram minúsculas e preciosas. Lembro do disco flexível (anterior ao disquete que conhecemos, o qual, apesar de chamado “floppy disk”, é rígido), que tinha (se não me engano) uma capacidade de 1,44 Megabytes. Revistas para quem a gente enviava colaborações, nos EUA e na Europa, prometiam: “Envie uma via impressa do seu texto, e um disquete com o respectivo arquivo. Devolveremos seu disquete pelo Correio”. E devolviam, porque era uma coisa mais cara do que o preço da postagem internacional.

Hoje, temos o pen-drive ou flash-drive, beleza de artefato que a gente leva no bolsinho das moedas, e onde pode guardar tudo que queira, como nas bolsas mágicas dos folhetos de cordel. Comprei um de 1 Gigabyte há dois ou três anos, para conduzir meus arquivos de trabalho quando estou viajando ou quando saio de casa. Basta-me plugá-lo num computador e é como se meu computador inteiro viajasse comigo. Depois comprei outros dois, de 16 GB cada um. No primeiro levo um back-up de tudo que é essencial no computador de mesa; no segundo, só músicas. E vi um destes dias, por 239,00 reais, um igualzinho, com 32 Gb de capacidade.

Eu temia pela fragilidade dessas jóias, mas li na Wikipedia um texto que me tranquilizou. Diz ele: “Alguns flash-drives conservam sua memória mesmo depois de terem sido mergulhados na água, ou mesmo tendo passado por uma máquina de lavar, embora isto não tenha sido previsto em sua fabricação e não seja algo para se confiar totalmente. Deixar o flash-drive secar por completo, antes de fazer a corrente elétrica circular por ele, é o que geralmente basta para que ele volte a funcionar sem problema. A equipe do programa Gadget Show, do Channel Five, já cozinhou um flash drive em propano, congelou-o em gelo seco, mergulhou- em vários líquidos ácidos, passou por cima dele com um jipe e o disparou com um morteiro de encontro a um muro. Depois, uma empresa especializada na recuperação de dados recuperou todos os arquivos gravados no drive”.

2149) Profissão: repentista (27.1.2010)



(Santino Luiz, cantador de viola, em foto de Roberto Coura)

Foi sancionada pelo Presidente Lula, neste começo de ano, uma lei, de número 12.198, aprovada pelo Congresso, que reconhece a atividade de repentista como profissão artística. O texto publicado no Diário Oficial da União define repentista como "o profissional que utiliza o improviso rimado como meio de expressão artística cantada, falada ou escrita, compondo de imediato ou recolhendo composições de origem anônima ou da tradição popular". A lei lista quatro tipos de profissionais que se enquadram na sua definição: 1) os cantadores e violeiros improvisadores; 2) os emboladores e cantadores de Coco; 3) os poetas repentistas e os contadores e declamadores de causos da cultura popular; 4) os escritores da literatura de cordel.

Espero que essa chancela jurídica se reflita positivamente no exercício da profissão. Violeiros já me contaram que, anos atrás, cantador não conseguia pegar um táxi a menos que escondesse a viola, porque todo cantador de viola era bêbado e desordeiro, aos olhos da população. Cordelistas eram interpelados em plena feira por fiscais que os mandavam embora, ou cobravam propina, ou pediam “o alvará de funcionamento”, ou apreendiam os folhetos. Cantorias dentro de um boteco eram suspensas com a chegada da patrulha, porque “gente que se reunia para ouvir violeiros podia provocar distúrbios”. E assim por diante. Sem falar em situações menos graves mas não menos constrangedoras. Um cantador amigo meu entrou num ônibus para uma viagem interestadual, colocou a viola (encamisada) no bagageiro acima das poltronas e sentou ao lado de uma bonita morena, que lhe perguntou, com jeito coquete: “O que é isso?”. Para sofrimento e opróbrio junto à própria consciência, o cantador respondeu: “É um violão”. Acabaram namorando; o mundo não se acabou quando ela descobriu a verdadeira identidade profissional do galã.

Ser cantador repentista é tão nobre, tão difícil e tão sofisticado quanto ser músico de jazz. É fazer uma coisa extremamente complexa e que poucas pessoas conseguem fazer bem (por isto que existem tantos cantadores medíocres e tantos músicos de jazz medíocres). E, mais do que isto, é exercer uma forma de arte que só existe no Nordeste do Brasil, ou que pelo menos nasceu aqui e daqui se expandiu para o resto do país. Ser repentista não é o mesmo que ser trovador medieval, ou jogral renascentista, ou bluesman norte-americano, ou bertsolari basco, ou inúmeras outras atividades com afinidades de DNA. Quantos povos, quantas regiões, quantas comunidades humanas podem se gabar de ter inventado uma forma de Arte? Muito poucas, eu acho. A Cantoria envolve elementos da poesia, da música, da literatura oral, do teatro e da performance. É algo raro, rico, difícil. Pouco importa se os cantadores de hoje estão batendo píno e deixando de improvisar, pouco importa se o decoreba está tomando conta dos Festivais. O que foi criado aqui nasceu aqui, e tomara que não morra nunca.

2148) “Bastardos Inglórios” (26.1.2010)



O novo filme de Tarantino é, segundo descrição dele mesmo, um bang-bang italiano ambientado na Europa ocupada pelos nazistas. Modéstia de QT, que mistura meia dúzia de gêneros (como sempre) num coquetel que tem dois dedos disso, uma pitada daquilo, uma colher não-sei-do-quê. Em grande parte, principalmente, na segunda metade, o filme pertence àquele sub-gênero que linka guerra e espionagem: agentes infiltrados nas linhas inimigas tentando fazer-se passar pelos próprios inimigos. Quem não já viu 50 filmes assim, principalmente envolvendo nazistas? A cena do porão da taverna é um suspense exemplar, não o suspense intelectual e distanciado de Hitchcock, mas o suspense “tudo-agora-mesmo-pode-estar-por-um-segundo” de Sergio Leone ou de Peckinpah, onde as mortes são reais. Por outro lado, a cena da recepção antes da exibição do filme nazista, no final, com os Bastardos disfarçados de italianos, é uma mistura de Mel Brooks com Brian de Palma – tudo vai ficando ligeiramente over, distanciado, delirante, metalinguístico.

Tarantino é violento porque a gente sente que uma cena brutal, para ele, é como um gol. Se não tiver de vez em quando o filme acaba 0x0. Mas violência gráfica, explícita mesmo, acima do padrão, tem apenas na cena da ponte (os escalpos, a execução do nazista com bastão de beisebol), na cena de Brad Pitt interrogando a alemã ferida na maca, e na derradeira cena de todas (a marca de Caim). O resto são mortes a tiros, rajadas de metralhadoras, etc., o feijão-com-arroz de qualquer filme de guerra dos últimos 40 anos. Brad Pitt, que começa o filme alardeando um sadismo de arrepiar, durante o filme inteiro não dá um único tiro, um único murro. Afora sua habilidade com a faca, a única coisa que seu personagem mutila é o idioma de Walt Whitman.

No coquetel de gêneros que é o filme, não posso deixar de lembrar a todos que se trata, acima de tudo (embora isto só fique claro no final), de um filme de ficção científica, certamente o primeiro de Tarantino. Como sabem os aficionados, um dos sub-gêneros mais importantes da FC é a “História Alternativa”, em que a linha do Tempo que conhecemos é rompida e a História vira a esquina numa direção diferente. Grandes clássicos da FC são baseados em premissas desse tipo: e se o Sul tivesse ganho a Guerra da Secessão? Ver Bring the Jubilee, de Ward Moore. E se a Peste Negra, no século 14, tivesse exterminado 99% da humanidade? Ver The Years of Rice and Salt, de Kim Stanley Robinson. E se Hitler, derrotado na política, tivesse migrado para os EUA e virado ilustrador de pulp fiction? Ver O Sonho de Ferro de Norman Spinrad. E se os holandeses não tivessem sido expulsos de Pernambuco, e o Quilombo de Palmares tivesse se tornado uma nação independente? Ver O Vampiro de Nova Holanda, de Gerson Lodi-Ribeiro. O final apocalíptico e orgástico do filme de Tarantino cria um novo futuro, e o arremessa para essa galeria de clássicos.