terça-feira, 15 de junho de 2010

2153) Chica Dondon (31.1.2010)



Dico ouvia falar em Chica Dondon desde que se entendia de gente. As mulheres não tocavam no nome dela, como se fosse perigoso. Diziam “a tal”, ou então “a sujeita da Vazante”, que era a baixa que corria ao longo do canavial. Lá se erguia a casinha de alvenaria, bem cuidada, com gaiolas de pássaros penduradas em volta. Quem falava nela como bem entendia eram os homens reunidos na bodega. “Vou lá em Chica hoje”, diziam, “vou descarregar”. Dico avistava de longe um vulto debruçado na janela, com um pano vermelho na cabeça, como que esperando alguém. Ela só ganhou existência real quando o pai dele, Noberto, entrou um dia no assunto. Dico estava sentado no batente da bodega (“vá lá trazer seu pai, e não me chegue aqui sem ele”), e os homens estavam bebendo e cuspindo. Seu Mateus estava arranchado em cima duma saca de farinha e disse, “Noberto, tu não vai mais na Dondon? Ela vive perguntando.” O pai respondeu: “Eu só piso em merda quando não vejo”. Os homens riram e Mateus insistiu: “Rai te danar, tu já passasse por aquela cama”. E ele: “Eu só fui lá quando tinha quinze anos, e não fui pra cama, fiquei sentado no sofá e quando terminou fui-me embora”. Houve uma trovoada de risos e aquilo nunca mais saiu da cabeça dele, principalmente aquele pedaço: quinze anos!

Quinze anos! E ainda era donzelão, como gritavam os moleques do canavial, facão em punho, quando ele passava rumo à escola. Os olhos pesados de sono à noite, quase colados à folha do caderno, fazendo o dever, à luz do candeeiro, escutando os berros da professora porque não sabia dividir as sílabas de “ro-se-i-ra-l”, a reguada nos dedos, os outros meninos gritando com ele, “vai lá em Chica tirar o selo, senão a gente tira o teu!”, e outro gritava, “vai logo, quem não faz leva!”.

Um domingo estava de castigo e a família foi pra missa. Pulou a janela e disparou para a Vazante como quem resolveu morrer. Bateu na porta sem ar. “Quem é?”, perguntou alguém lá dentro. Ele acertou a dizer: “Dico de Noberto”. Ela o fez entrar. Não era velha e cheia de feridas como ele imaginava, era muito branca, toda redonda, e cheirava a alfazema. Fez menção de levá-lo para o quarto, mas por alguma razão ele jogou-se no sofá. Ela se ajoelhou na frente dele e abraçou-o com calma, apertou-o de encontro a si e disse baixo, “Ô coraçãozinho pra bater...” Ele quis dizer que viera correndo, mas a boca estava seca como um papel. Ela o cobriu de cheiros, de afagos, e por fim falou: “Tu parece com teu pai. Mas tu não é pra mim. Sabe aquela casinha amarela lá embaixo, perto do rio? Quem mora lá é Zuleide, minha sobrinha. Ela te conhece. É uma de trança, que vende boneca na feira. Vai lá. Bate e diz quem é, que ela é doida por tu”. Ele pediu um caneco dágua, bebeu, e disparou de novo. Alguma coisa estava iluminando o mundo. Nuvens roxas cresciam no céu enquanto ele corria, o vento bravo aumentava, e as canas farfalhavam como um roseiral.