terça-feira, 15 de dezembro de 2009

1429) Esnobando a loteria (12.10.2007)




Dizem os céticos que o dinheiro não traz a felicidade. Outros, mais céticos ainda, afirmam que, por uma questão de Justiça Cósmica, a felicidade repele o dinheiro. Seria injusto para com o resto da Humanidade você ser rico e feliz ao mesmo tempo. Vai ter que escolher. 

Há casos em que um sujeito já é feliz, tem tudo que que precisa, mas, como não tem dinheiro, se mete em mil e uma empreitadas onde vislumbra a possibilidade de riqueza. No fim, joga a felicidade no lixo, fica sem uma e sem a outra. Melhor nem tentar, porque são incompatíveis. Não se pode ter as duas ao mesmo tempo.

No mês passado, esta questão filosófica foi recolocada em termos práticos quando um alemão recusou um prêmio de loteria de mais de 7 milhões de reais. O cidadão teve seu bilhete premiado e ao receber a notícia dirigiu-se à administração da Loteria, em Hanover, para dizer que não queria receber o prêmio. 

Seus argumentos são poderosos. Ele tem 70 anos, está aposentado, não tem dificuldades financeiras (é um aposentado europeu, não esqueçam). A mulher já morreu, e ele não tem filhos ou parentes próximos. Em suma: não tem muito o que fazer com tanto dinheiro, e confessa ter comprado o bilhete da aposta por uma mera questão de hábito.

Este episódio permite várias leituras. Na primeira, admiramos o desprendimento, o espírito Zen desse sujeito capaz de dispensar semelhante riqueza. Contemplando a vida do alto de seu Everest etário, o indivíduo descortina paisagens amplas, horizontes metafísicos, e não vai desperdiçar os anos de paz que lhe restam envolvido em querelas com gerentes de Banco, advogados, corretores da Bolsa, herdeiros remotos ou sei lá o que mais.

Outra leitura nos diz que o cidadão é um asno. Tudo bem que ele não queira o dinheiro para si. Mas sem dúvida ele conhece alguém que precise. Poderia aceitar o dinheiro e reparti-lo entre creches, hospitais, bibliotecas. Ou doá-lo a uma orquestra sinfônica local, já que ele é alemão. Ou ao time de futebol de sua preferência. Que diabo, será que esse velho é tão obtuso que não lhe ocorre nenhum destino útil para esse dinheiro todo?

Mas na mesma matéria fico sabendo que isto ocorreu na cidade de Hameln, na região da Baixa Saxônia, cidade que não é outra senão a popularíssima Hamelin, da história do Flautista que livrou a cidade dos ratos e, depois que as autoridades se recusaram a pagar o prêmio combinado, levou consigo todas as crianças e as escondeu numa caverna da montanha próxima. 

De imediato me veio ao écran da mente a imagem de um velho, não de 70, mas de 700 anos, caminhando devagar pelas ruazinhas da cidade, esperando um pagamento que lhe foi prometido mas que nunca chegou. 

Quem sabe a loteria foi um meio que o governo (ou o anônimo Destino) escolheu para liquidar a dívida e resgatar as crianças que há 7 séculos estão à espera, numa caverna da montanha? “Agora não posso mais trazê-las,” diz o velho, “perdi a embocadura da flauta”.





1428) “Novecentas Avós” (11.10.2007)




R. A. Lafferty é uma espécie de Hermeto Paschoal da ficção científica norte-americana, um sujeito com grande cultura clássica, com uma identificação profunda com o folclore e a literatura oral dos EUA, e que se vale da FC para contar umas histórias extravagantes, improváveis, às vezes hilariantes, que são um bem-vindo contraponto ao excesso de lógica cartesiana que acomete o gênero. 

No conto “Nine Hundred Grandmothers” Lafferty fala de um grupo de exploradores terrestres num asteróide habitado, onde eles atuam como representantes comerciais ou coisa parecida. 

O protagonista, Ceran, é um cara que se interessa mais pela cultura local do que por transações comerciais. Ele vive intrigado com o fato de os Proavitoi (como se chamam os nativos) terem em suas casas uma espécie de “bonecas vivas”, que andam, falam, etc. O chefe da expedição lhe dá ordens para que pesquise melhor esse aspecto – quem sabe as bonecas não são um produto interessante para ser vendido na Terra?

Ceran interroga seu intérprete local. Pergunta sobre a morte, e fica pasmo ao ouvir: “Nós não morremos”. Ele insiste, e o Proavitoi acha graça: “Olhe, meu amigo... acho que se morrêssemos, seríamos os primeiros a saber”. 

O interrogatório prossegue. Ceran fica sabendo que os Proavitoi não morrem com o passar dos anos; apenas sofrem uma perda de energia e vão sendo guardados pelos seus descendentes em casa, onde mergulham numa espécie de hibernação. 

Quando um Proavitoi atinge a maturidade (ou seja, quando completa dez gerações de descendentes mais jovens) ele tem o direito de participar do Grande Ritual, que ocorre uma vez por ano. É quando os antepassados são despertados do seu sono e contam aos mais novos o princípio de tudo, quando o mundo começou.

Os Proavitoi são especialistas em certos aspectos da biologia. Parecem ser capazes de expandir ou contrair corpos, como se pudessem fazer as moléculas diminuir de tamanho. Mas Ceran está interessado em saber como começou a história daquela raça, e consegue ser admitido à casa do seu intérprete, depois de descobrir que ele tem aproximadamente novecentas avós ainda vivas. 

Ali ele vai sendo apresentado a pessoas cada vez menores, e descobre que as tais “bonecas vivas” são os próprios avós e bisavós dos nativos, miniaturizados vivos. 

A certa altura, Ceran desce aos porões da casa, que estão cobertos de prateleiras onde se enfileiram antepassados cada vez menores. Ceran coloca uma dessas avós na palma da mão e lhe pergunta se mais abaixo, nos porões inferiores, as outras são menores do que ela. “Sim,” ela responde; “cabem na palma da minha mão”. 

Ele desce até o último porão, onde as avós não são maiores do que uma abelha. Pergunta-lhes, desesperado, como foi o começo de tudo, o começo de sua raça – mas com sua ansiedade consegue apenas fazê-las rir. E o som das suas risadas “era como o som de um bilhão de micróbios gargalhando”. Uma bela metáfora para o estudo da História.



(ilustração: Edward R. Flynn)



1427) Uma proposta irrecusável (10.10.2007)



Um amigo me disse certa vez, comentando fofocas políticas que circulavam nos bares da época: “Não existem propostas irrecusáveis. O que existe são indivíduos que vivem com o aceitador aberto.” O conceito de proposta irrecusável lembra um pouco aquela questão científico-escolástica: “O que acontece se derramarmos um solvente perfeito num recipiente invulnerável?” ou “O que acontece quando uma força irresistível se choca com uma barreira impenetrável?” Questões desse tipo são falácias, porque envolvem conceitos que se excluem. Se no universo existe uma força irresistível, então não pode haver uma barreira impenetrável. E vice-versa.

O que acontece quando um indivíduo absolutamente honesto recebe uma proposta (desonesta) irrecusável? A questão aqui é mais sutil. Não estamos lidando com a nitidez dos conceitos científicos, e sim como o universo turvo da mente humana, refletido no espelho embaçado das palavras. Não existe proposta irrecusável. Sempre vai haver um desmancha-prazeres para quem as vantagens da proposta (dinheiro, fama, poder, o que fôr) nada importam, ou importam menos que seus próprios valores. E nem precisam ser valores grandiosos, como nobreza de caráter ou retidão de princípios. Basta ser o Ego. Tem sujeito que recusa uma proposta irrecusável só para humilhar o proponente, só para dizer: “Dane-se. Sou melhor do que você”.

Uma maneira diplomática de recusar uma proposta é cobrar um preço absurdo. O sujeito me oferece um emprego com salário de 2 mil reais. Como eu não quero recusar assim, “na lata”, digo que só iria por 10 mil. No outro dia ele me telefona, diz que consultou o Conselho Diretor ou coisa parecida, e que tudo bem, dez mil. E agora? Existe uma saída meio cara-de-pau, que é dizer: “Olha, Anacleto, se você aumentou de dois para dez com essa facilidade, então pode muito bem me pagar vinte. Só vou por vinte”. O que não resolve o problema, porque talvez ele volte a concordar.

Propostas irrecusáveis sempre envolvem dinheiro. Esse conceito foi criado por pessoas que têm muito dinheiro para tentar convencer a nós, que o temos quase nenhum, de que o dinheiro tudo pode. Digamos que um conhecido meu, esborrotando de rico, me chama para ir tocar violão na festa de aniversário dele. Eu digo, “Ora, Fulano, vai te catar, sou um homem ocupado”. Ele diz: “Cem mil reais, ‘cash’, à vista”. E agora? O cara pode gastar isso sem nem piscar o olho, e está falando sério. Vou ou não vou? Talvez não fosse, só pra desmoralizar o Capitalismo.

A vida empresarial e política está cheia de propostas irrecusáveis. Não o são porque envolvam fortunas fabulosas, mas porque são propostas feitas no momento certo ao indivíduo que está com a aceitação engatilhada. O proponente hábil sabe que em certas portas não adianta bater. A proposta irrecusável é aquela que ele já sabe ter sido aceita antes de ser formulada, e o valor financeiro é uma mera cortina de fumaça para desviar as atenções.

1426) O que faz escrever (9.10.2007)




Todo escritor se depara de vez em quando com a obcecada pergunta: “O que o faz escrever? Ou seja, qual a sua principal motivação enquanto escritor?” 

Se fizéssemos a pergunta equivalente a um camioneiro, a um alpinista, a um político, a um médico, talvez encontrássemos algumas das respostas que os escritores nos dão. 

Assim como um camioneiro, um escritor gosta de tentar reunir o máximo de duas coisas antagônicas: liberdade e responsabilidade. Ele gosta dos grandes espaços abertos (do espírito, no seu caso), do desafio constante de ir a lugares onde nunca foi, da excitação de rever lugares onde passou muito tempo atrás, e durante todo o tempo sentir-se responsável por algo muito valioso que não lhe pertence (uma tradição literária) mas da qual ele é, naquele instante do seu trabalho, o único defensor e guardião.

Assim como um alpinista, o escritor é seduzido pela possibilidade de ser O Maior, de atingir alturas que os seres humanos comuns nunca alcançaram. Ele sabe que quanto mais sobe mais seu raciocínio fica inebriado pelo ar rarefeito; que corre o risco de morrer de solidão e de frio; que um passo em falso pode precipitá-lo no abismo. Mas ele sempre acredita que pode dar mais um passo, ou seja, que pode escrever mais uma página. 

Um político dirá que tem uma responsabilidade para com um grupo de pessoas que acreditam nele, acreditam na sua capacidade de fazer coisas importantes e de melhorar o mundo. Pouco importa se o mundo tem sido muito pouco melhorado, seja por políticos, seja por escritores. O importante é achar que, se há ainda muita coisa a ser feita, nada melhor do que alguém candidatar-se a fazê-la.

Enfim: cada profissional tem razões múltiplas para fazer o que faz, mas ao que parece é apenas aos escritores que se faz essa pergunta. Parece que seguir qualquer profissão é algo óbvio, cuja necessidade não precisa ser explicada, mas ser escritor é uma missão misteriosa, desnecessária e que deve ser justificada tintim-por-tintim..

Talvez a melhor resposta, para qualquer profissão, seja: faço isto por que gosto, e porque é o que sei fazer melhor. Jogadores de futebol dizem isto o tempo inteiro: “Sou um sujeito de sorte, porque me pagam um bom salário para que eu faça a coisa que mais gosto”. Ninguém pergunta a um jogador por que motivo ele joga. Pressupomos que ele descobriu em si mesmo aquela habilidade, e que não viu motivo para se dedicar a outra coisa.

Com um escritor dá-se o mesmo. Ele descobriu muito cedo que 1) gosta daquilo; 2) sabe fazer aquilo bem; 3) vê naquilo a possibilidade de juntar duas coisas importantes, o útil e o agradável, ou seja, uma profissão que lhe dê sustento e uma atividade prazerosa que lhe dê algum tipo de realização pessoal. 

Escritores, no entanto, criam para si mesmo a imagem de alguém que sabe respostas secretas e bombásticas sobre as perguntas mais banais. Podem até saber, mas a resposta que melhor os explica é esta aqui acima, a mais banal de todas.






segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

1425) Hitler e minha mãe (7.10.2007)




Herdei de meu pai a poesia e de minha mãe a prosa. Esta é uma simplificação excessiva de uma situação mais complexa, pois o fato é que era Dona Cleuza quem me cantava folhetos de cordel e romances orais, e Seu Nilo quando estava na veia era um contador de histórias que não devia a nenhum outro. 

Mas não há dúvida de que foi ele quem me aplicou Bilac, Augusto, Castro Alves, até poetas hoje obscuros como Guerra Junqueiro ou Luís Dantas Quesado.

Já minha mãe costumava contar histórias sobre a época da II Guerra Mundial e seus reflexos no Brasil e em Campina. O monte de ferro-velho acumulado pelas autoridades para ajudar no esforço de guerra, ali na confluência entre as ruas João Pessoa e João Suassuna, em frente ao antigo Banco Industrial. Os blecautes que havia em Olinda (onde ela e meu pai moraram depois de casar), as luzes todas apagadas para não atrair a aviação inimiga (nunca entendi por que diabos Hitler iria querer bombardear Olinda). 

E havia uma historieta, provavelmente apócrifa, mas que para mim faz parte das lendas urbanas que um tempo de guerra é mais propício a criar do que um tempo de paz.

Hitler costumava aprisionar num país invadido, a Polônia por exemplo, centenas de crianças, e as trancafiava num imenso galpão. Ali os meninos e meninas eram deixados durante dias e noites sem comer, sem nada. 

Quando o desespero estava grande, entrava um oficial nazista de megafone em punho e gritava: “Vocês estão com fome?!” Havia uma gritaria que sim. E ele tornava: “Pois peçam comida a Deus! Vamos, gritem! Gritem bem alto para que ele ouça!” E saía. Os garotos começavam o maior berreiro: “Deus, me dê comida! Deus, me dê um copo dágua!”

Por motivos teológicos que não tenho espaço para analisar aqui, Deus não se manifestava, e um dia depois a fome tinha recrudescido ainda mais, devido à reversão da expectativa. Era o momento em que o oficial voltava. Perguntava se ainda tinham fome, recebia a resposta ululante que era de se esperar, e aconselhava: “Pois peçam comida a Hitler”. E ia embora. 

Os meninos, que a esta altura não tinham mais nada a perder, começavam o coro: “Hitler, me dê comida! Hitler, me dê água!”

E aí (ela gesticulava, encorpava a voz, abria os braços para sugerir uma encenação digna de Spielberg) abriam-se enormes clarabóias no teto e de lá desciam, mediante correntes e engrenagens, vastas plataformas de madeira cobertas com terrinas fumegantes, bandejas de pastéis e sanduíches, receptáculos cheios de macarrão com molho, carnes suculentas, jarras de água, de leite e de suco, frutas em abundância, e doces, doces, muitos doces. Os garotos atiravam-se sobre aquilo, balbuciando orações e agradecimentos ao Fuhrer.

Minha mãe não era nazista, caro leitor. Ela usava isto como um conto caucionário, uma parábola acauteladora. No fim da história ela aproximava o rosto, encatitava o olho, erguia no ar o indicador e sussurrava, com intensidade: “Des-con-fie!”






1424) Autópsias de livros (6.10.2007)





(uma "autópsia" de Brian Dettmer)

Já me referi nesta coluna (“Um documento humano”, 18.9.2003) ao artista britânico Tom Philips e seu livro A Humument, criado a partir da obliteração parcial do texto de um romance da época vitoriana. 

Philips pintou, borrou, rabiscou, cancelou o texto de cada página do livro; destacou, reaproveitou e conectou pedaços de frases em diferentes pontos da página, produzindo novas leituras que inexistiam na obra original. Esse trabalho pode ser visto em: http://www.tomphillips.co.uk/humument/.

Philips não é o único a fazer este tipo de obra, que segue conceitos estéticos bem contemporâneos como “intervenção”, “desconstrução”, “releitura”, etc. 

Acabei aterrissando no saite “Altered Books” (http://www.logolalia.com/alteredbooks/) e percebi que se trata de uma tendência coletiva. Os exemplos do Altered Books (de numerosos artistas) são mais simples do que o trabalho de Philips, e muitos, francamente, me parecem um papel carbono do que ele faz. Sem problema. As descobertas da arte jamais se democratizariam se não existissem a cópia, a imitação. Se todos os artistas fossem igualmente criativos, não existiria o diálogo estético, porque cada qual estaria falando uma língua exclusivamente sua.

Descobri agora outro trabalho curiosíssimo, o de Brian Dettmer, intitulado “Book Autopsies” (https://briandettmer.com/art/). Como o título indica, ele faz verdadeiras autópsias em exemplares de livros volumosos, pousando-os sobre a mesa, abertos, e recortando-os cada vez mais fundo. Os resultados se parecem com sítios arqueológicos que são escavados em camadas sucessivas, que ficam expostas umas ao lado das outras. 


Dettmer não apenas recorta e escava o interior dos livros, ele usa algumas dessas superfícies assim expostas para pintar, colorir, desenhar, pregar imagens trazidas de fora.

Claro que isto envolve a destruição do livro, mas trata-se da destruição de um único exemplar – desde que não seja um exemplar raríssimo, para mim o que se cria ali é mais importante do que o que se destrói. 

Dettmer nos mostra livros volumosos (enciclopédias, dicionários, etc.) que parecem desventrados, estripados, com as entranhas à mostra. Outros parecem revelar em seu interior circuitos eletrônicos, placas de chips. A quantidade de variações que o artista extrai desse método subtrativo é espantosa, ainda mais se considerarmos que, pelo menos em alguns casos, é possível abrir o livro em diferentes pontos e modificar a “moldura” das intervenções feitas.

Em alguns casos o artista privilegia as imagens internas do livro, preservando-as, e desbastando todo o resto. Em outros ele preserva frases, que passam a ser lidas em relevo, justapostas a frases que surgem páginas adiante. 

É o mesmo método de Tom Philips,s só que agora numa escala tridimensional. É uma nova forma de arte: destruir para criar; esculpir volumes de páginas com ilustrações e texto; produzir objetos recompostos através da mutilação.







1423) “Tudo Bem” (5.10.2007)



Revi em DVD este filme de 1978, na época em que Arnaldo Jabor, hoje um dos nossos mais ferozes estilingues, trabalhava como vidraça. Se bem que Jabor, como cineasta ontem e como comentarista de TV hoje, sempre foi um bodoque, uma balieira. Vez em quando discordo de suas opiniões, principalmente sobre política. Mas, e daí? Ele provavelmente também discorda das minhas, então estamos quites, e o proveito da leitura é o mesmo.

Em Tudo Bem (com roteiro de Leopoldo Serran) uma família de classe média reforma seu apartamento, que fica ocupado por um bando ensurdecedor de operários quebrando paredes, raspando pisos, etc. A convivência forçada desorienta os donos da casa, Juarez (Paulo Gracindo) e Elvira (Fernanda Montenegro), um casal maduro em crise. O filho (Luiz Fernando Guimarães) é um carreirista que trabalha com Relações Públicas. Um pedreiro (José Dumont) é despejado e traz a família para se abrigar ali. Uma empregada tem uma crise mística e vê nascerem em seu corpo as chagas de Cristo. Um operário mata outro numa discussão. Juarez dialoga o tempo inteiro com os fantasmas (que só ele vê) de três amigos de juventude: um industrial falido, um militante integralista e um poeta.

Na cena final, o novo apartamento é inaugurado enquanto Elvira tenta esconder as manchas de sangue no tapete e o operário assassinado é velado na área de serviço. Um gringo (Paulo César Pereio), noivo da filha do casal (Regina Casé) faz um longo discurso exaltando a modernização trazida pela TV via satélite: “Pelé dá um chute pelo New York Cosmos, e pimba! Gol no Maracanã!”

O filme é uma polaróide de sua época (inclusive nas canções de MPB que os personagens cantarolam o tempo todo: Belchior, João Bosco...) e produz, 30 anos depois, uma série de ressonâncias. A TV por satélite daquele tempo é a Internet de hoje. Uma possibilidade, para a classe média, de se inserir no consumo globalizado, no cosmopolitismo, anulando o Atlântico para se engatar à Europa e aos EUA. A equação social armada por Jabor defronta patrões e empregados. Nordestinos e operários são vistos como “o Outro” em relação à classe média carioca. O enredo, compreensivelmente, não consegue antever a dimensão dos problemas que explodiriam depois de três décadas: a droga, o crime organizado.

Exageradamente teatral (como a quase totalidade do nosso cinema), o filme vale menos pelo Raio-X sociológico do que pela carnavalidade das situações a que os atores se entregam com gosto. Às vésperas da Anistia, o alegorismo indecifrável dava lugar a provocações debochadas com endereço certo. É notável o discurso ufanista tecnológico com que a classe média da época (ironizada por Jabor) saudava a TV via satélite, sob pretextos de integração nacional (um objetivo estratégico da ditadura), educação coletiva, inserção no Mercado, etc. Com DDD, DDI, celular, Internet, Orkut, YouTube e Google continuamos na mesma cantilena, enquanto o bafafá na área de serviço foi elevado ao cubo.

sábado, 12 de dezembro de 2009

1422) O mendigo e a camisa (4.10.2007)




(ilustração: Jan Adriansz van Staveren)

Walter Benjamin (Magia e Técnica, Arte e Política, Brasiliense, pags. 159-160) conta a parábola de indivíduos que conversam numa estalagem, enquanto um velho mendigo, vestindo apenas uma camisa suja, cochila a um canto. 

Os fregueses falam sobre o que pediriam se lhes fosse dado realizar um só desejo. Um diz que queria uma oficina de ferrreiro, outro queria uma casa nova, outro um bom casamento para a filha... Resolvem perguntar ao mendigo o que ele gostaria.

O mendigo responde: “Gostaria de ser um rei poderoso que certa noite tem seu país invadido, seu palácio tomado, seus aposentos saqueados. O rei foge pela floresta, vestindo apenas a camisa com que dormia. É perseguido, mas ilude os perseguidores, e depois de muito tempo consegue se refugiar numa estalagem, sujo, cansado, faminto, mas vivo.” 

Os outros homens ficam sem entender e um deles pergunta: “E o que você ganharia com isso?” Ele diz: “Uma camisa”.

É uma ótima parábola, até porque ficamos nos perguntando se o mendigo não seria de fato o próprio rei, em desgraça e incógnito. Mas ela me recorda um episódio contado por Clarice Lispector. 

Certa noite ela vinha da casa de uma amiga e ficou esperando ônibus na Praça da Bandeira. Era uma noite chuvosa e gelada do inverno carioca, ela estava com um vestido fino, sem dinheiro para um táxi, batendo o queixo de frio, e nada do ônibus aparecer. 

Dizia Clarice que isto a ajudou a dormir pelo resto da vida. Quando se sentia desconfortável na cama, bastava imaginar que estava lá, de novo, na madrugada da Praça da Bandeira, vergastada pelo vento gelado e pela chuva. De repente, pensava: “Não! Não estou lá! Estou aqui, na minha cama quentinha!” E adormecia.

A mecânica disto é parecida com aquela famosa história do bode na cabana: o mestre zen aconselha o lavrador (que se queixa da casa desconfortável) a colocar um bode na sala durante um mês e depois tirá-lo, para ver como a casa fica uma beleza. 

E parecida também com aquela piada do garoto que esperava a mãe no portão com a bola de futebol embaixo do braço e diz: “Mãe, sabe aquele seu vaso japonês bem caro?...” Quando a mãe arregala os olhos e leva as mãos à cabeça, ele prossegue: “Pois eu quebrei aquela vidraça que fica perto dele”.

É um pouco como a obra-prima de Philip K. Dick, O Homem do Castelo Alto, ambientada num tempo alternativo em que os EUA perderam a guerra e têm seu território dividido entre a Alemanha nazista e o Japão. Ali, um escritor de FC escreve um romance em que imagina um mundo feliz, o qual, por ironia, é muito semelhante ao nosso. 

Se eu fosse escritor de auto-ajuda escreveria um livro inteiro aconselhando às pessoas: “Caro amigo, se você anda sorumbático e macambúzio, se você acha que a vida não vale a pena, não se preocupe. Seus problemas acabaram! Basta você imaginar-se noutra vida onde é infeliz, mas por algum motivo consegue sonhar com esta vida aqui como um desejo irrealizável, uma felicidade inatingível”.





1421) A literatura do presente (3.10.2007)


(Gregório de Matos)

Um entrevistador me pergunta: “Quem você destacaria na atual Literatura Nacional?”. Pergunta difícil, a começar pelo fato de que eu não considero que há uma literatura atual e outra que não o seja. Para mim, a Literatura é o conjunto de textos disponíveis. A literatura brasileira envolve desde Gregório de Matos até o jovem poeta que acaba de publicar seu primeiro livro de tentativas. Um não é mais atual do que o outro, e há muitas chances de que Gregório de Matos se mantenha atual por mais tempo do que muitos poetas que estão vivos, inclusive eu próprio.

Para mim a literatura se compõe em primeiro lugar de livros, e só depois de autores. Por isto, trato em pé de igualdade Machado de Assis e Rubem Fonseca. Não importa se um já morreu e o outro está vivo, e sim que seus livros estão lado a lado na livraria, na biblioteca, na minha estante. Os livros estão “vivos e bulindo”, e para mim é isto que constitui a atualidade da literatura.

Suponhamos, então, que a intenção da pergunta seja de recensear os autores surgidos recentemente, os que começaram a publicar há pouco tempo e que por isto podem ser vistos como novidade, renovação, algo diferente. Aí tenho de confessar algo que não pega bem para um jornalista e aspirante a crítico literário, como é o meu caso. Mas o fato é que eu não dou a menor atenção aos novos escritores que estão surgindo. Não porque julgue que são maus autores, longe disso. Penso até que estou perdendo coisas muito interessantes quando passo semanas inteiras mergulhado em livros obscuros do século passado. Mas não tenho o objetivo de me manter em dia com a produção editorial, como acontece com os jornalistas de redação, os que todo dia no jornal recebem exemplares para resenha, enviados pelas editoras. Cabe a estes dar conta ao leitor das novidades que surgem no mercado. Nada tenho contra isto, até porque sou um beneficiário direto, já que sou leitor dos cadernos literários da grande imprensa.

Só para dar uma idéia: nunca li nenhum livro de Milton Hatoum, João Paulo Cuenca, Marcelo Mirisola, Marçal Aquino, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Bernardo Carvalho, Luís Ruffato, Alberto Mussa... Estou citando autores surgidos nos últimos dez ou doze anos. Por que nunca os li? Porque acho que não são bons? Pelo contrário. Conheço pessoalmente alguns deles, e o que tenho ouvido sobre a obra de todos é, em geral, muito elogioso. Mas eu não pesquiso o momento atual da Literatura Brasileira; leio obras em torno de algo que estou escrevendo no momento. Como acabo de lançar uma antologia de contos fantásticos, nos últimos doze meses li centenas de contos de terror do século 19. Para escrever um livro sobre Ariano Suassuna, li mais algumas dúzias de livros relacionados. São leituras de trabalho, notas ao pé da página para meus próprios livros. Tem momentos na vida em que o sujeito só lê o que vai para seus próprios livros, não tem tempo de ler livros que não são seus.

1420) Explode coração (2.10.2007)



Eu acompanho futebol há mais de quarenta anos, e não me lembro de uma seqüência tão impressionante. Refiro-me à quantidade de jogadores profissionais que vêm morrendo do coração nos últimos tempos. Se fossem peladeiros de fim de semana, tudo bem, porque o Brasil está cheio de cinqüentões com excesso de peso e de colesterol. Conscientes do problema, eles resolvem queimar gorduras com uma pelada no domingo. O problema é que insistem em fazê-lo depois de um churrasco regado a cerveja. Aí, não dá outra – no terceiro pique o cidadão enfarta. Como não é famoso, não sai no jornal. Mas aposto que acontece toda semana no campo de terra de algum subúrbio brasileiro.

Só que o que está saindo nos jornais são as mortes de jogadores profissionais, em plena juventude, fisicamente bem preparados, trabalhando em clubes com monitoramento científico das condições físicas de cada um. Por que morrem? Não consigo entender. De um mês para cá tivemos a morte do jogador Puerta, do Sevilla; depois um jogador inglês cujo nome e clube me escapam; e no começo de setembro o equatoriano Jairo Andrés Nazareno, do Chimborazo, da terceira divisão do Equador. Mais recentemente, houve o caso do inglês Clive Clarke que teve um piripaque durante um jogo Leicester x Nottingham Forest (este, até agora, está sobrevivendo). No Brasil, o caso de maior repercussão ainda é o daquele zagueiro do São Caetano que morreu durante um jogo disputado em São Paulo. Falo apenas dos casos que me vêm à memória, mas é claro que existem muitos outros. Tem algo de errado num futebol como este.

Sou um indivíduo sedentário – e sedento, daí a quantidade de cerveja que ingiro. Consciente de todos estes problemas, faço minhas caminhadas de vez em quando, porque exercício faz bem à saúde. Mas já dizia minha mãe que “tudo demais é veneno”. Ao que parece cada organismo humano tem seu limite em termos de exercício, de preparação física. Não pode transpor este limite – e não sei se é possível prever com segurança qual é o limite de cada pessoa. Não sendo possível prevê-lo, cada jogador é tratado como se fosse um cavalo de corrida. E aí estão, não me deixando mentir, esses jovens de vinte e poucos anos, atletíssimos, que treinam a semana inteira desde os quinze anos, cheios de saúde, e cujos corações estouram quando menos se espera. O sujeito vira minuto-de-silêncio.

No esporte, como é impossível fabricar o talento, tenta-se fabricar a capacidade atlética, mas com o risco de perder muitas cobaias. Um antigo provérbio chinês (por falar nisso –existem provérbios chineses recentes?) diz: “Cavalo ganha uma vez? Sorte. Cavalo ganha duas vezes? Coincidência. Cavalo ganha três vezes? Aposte no cavalo!” Jogador morre três vezes? Demita o preparador físico. Como as mortes são muitas e espalhadas por todo o mapa, o problema não são os preparadores, é o conceito do preparo.