sábado, 14 de novembro de 2009

1368) Fora de quadro (2.8.2007)



No filme Tempo de Guerra (Les Carabiniers), de Jean-Luc Godard, há uma cena em que um rapaz matuto, que se alistou no exército para combater, vê um cinema pela primeira vez. Ele senta na platéia, e logo aparece na tela a famosa imagem do trem vindo na direção da câmara. Como as platéias do Cinematógrafo Lumière de 1895, ele se apavora, cobre a cabeça com as mãos, encolhe-se na cadeira. Logo em seguida aparece a cena de um banheiro onde uma mulher enrolada numa toalha se prepara para o banho, bota a banheira para encher, etc. Quando a mulher começa a tirar a toalha, caminha para um dos lados, saindo do campo de visão da câmara. Animadíssimo, o rapaz sai pulando por cima das filas de cadeiras e, chegando junto da tela, cola o rosto ao pano, espiando na direção em que a mulher sumiu.

Como qualquer cena de um filme de Godard, esta tem uma importante mensagem semiótica e um profundo sentido metafísico. (Para sermos justos, é preciso reconhecer que quando o sujeito tem vocação semiótica e metafísica nem precisa de Godard, ele enxerga isso até num filme de Xuxa ou num comercial de pneu.) Em primeiro lugar, por que rimos do rapaz? Porque somos espertos, somos sabidos, temos consciência de que o que está fora do quadro cinematográfico tem existência implícita mas não pode, nem precisa, ser enxergado. Sabemos que há uma continuidade lógica entre o mundo da imagem e o mundo fora dela: uma mulher que sai envolta numa toalha não retorna metamorfoseada em libélula ou em cangaceiro. Fora do quadro, as coisas continuam sendo elas mesmas. Mas não têm imagem. A moldura retangular está ali para isto mesmo, para delimitar a área onde tudo precisa ter imagem.

Em segundo lugar, lembremos nosso espanto, na infância, quando percebemos que os personagens de um filme nunca precisavam – por exemplo – ir ao banheiro. Pareciam imunes a esta dimensão plebéia. Isto nos levou a descobrir que não somente o espaço, mas o tempo daquela Terra Plana era diferente do nosso. Assim como havia uma porção de espaços subentendidos, era lícito supor que acontecimentos não vistos tinham se passado.

E por fim... Talvez o nosso mundo aqui, de quatro dimensões, funcione do mesmo jeito. Nós, os filósofos e cientistas, somos os matutos teimosos que correm para junto da tela querendo ver a Natureza nua, querendo ver os super-cordéis vibrantes do espaço-tempo, querendo ver a purpurina dos quarks agitando-se nos campos de força. Queremos olhar para fora do quadro da matéria, das quatro dimensões, da seta unidirecional do Tempo. Platão, Aristóteles, Aquino, Hegel... E Einstein, Bohr, Heisenberg, Hawking, Feynman... Todos eles são matutos teimosos, recusando-se a admitir que o mundo acaba nisso que vemos. O que nos move é o impulso de saber, de ir às últimas deduções, de desvendar, de descobrir, de ver a mulher tirando a toalha. Existe coisa mais estimulante para o intelecto do que uma mulher tirando a toalha?

1367) A pirâmide olímpica (1.8.2007)



O esporte olímpico consagrou a imagem do pódio para os três melhores colocados: ouro, prata e bronze. Em torno dessa comemoração, existem duas atitudes diferentes. Uma é a dos atletas que repetem sem cessar, como cansamos de ver nesse Pan do Rio: “Estou muito feliz com este bronze...”, “Esta prata para mim vale ouro...”, e assim por diante. A outra é a dos torcedores que torcem o nariz para as medalhas de prata e achincalham os ganhadores do bronze: “Essa aí não vale nem uma tampa de garrafa”.

Por um lado eu compreendo. A prata é aquele prêmio que se conquista com uma derrota. Quem ganha a prata, teoricamente, era o sujeito que estava tentando ganhar o ouro, foi para a final, teve chance – e não conseguiu. É compreensível, até certo ponto, que o torcedor o veja como um derrotado. E que alguns medalhistas de prata tenham no pódio aquela expressão meio vaga, meio taciturna, de quem só está ali porque o regulamento obriga, mas se pudesse já tinha trocado de roupa e voltado direto pro hotel, para trancar a porta do quarto e apagar a luz. Quanto ao bronze, é o prêmio dos que “bateram na trave”, não conseguiram nem sequer ir à final.

O pódio com seus dois degraus é apenas o topo minúsculo de uma pirâmide gigantesca. Abaixo daquele segundo degrau, onde estão a prata e o bronze, está outro com quatro lugares, e depois um com oito, outro com dezesseis, outro com trinta e dois, e assim por diante, em progressão geométrica. Essa pirâmide é formada pelos atletas que disputaram as competições classificatórias e eliminatórias que um medalhista atravessa ao longo de anos e anos para poder alcançar os índices que lhe permitiram ir ao Pan, à Olimpíada ou ao Mundial da sua categoria. Se pudéssemos reunir em carne e osso todos os atletas que participaram dessas disputas, teríamos uma pirâmide-de-degraus da altura da Pirâmide de Quéops, e talvez precisássemos de um binóculo para ver lá no topo, miudinhos, os três medalhistas.

Como todo subdesenvolvido, como todo mundo que tem pouco, o torcedor brasileiro é Desejo puro. No futebol, ganhar uma Copa do Mundo já não nos basta: é preciso ganhar de goleada, e ridicularizando o adversário, dando olé, dando toquezinho. Quando simplesmente ganhamos mas não damos baile, como em 1994, os exigentes fazem cara feia. Essa mesma mentalidade, de quem tem tão pouco que só se contenta com tudo, é a que nos faz esnobar as pratas e os bronzes conseguidos por nossos atletas.

O atleta que ganha um bronze pode considerar que naquele momento, naquela modalidade, só existem dois caras melhores do que ele, e existem centenas ou milhares que ele deixou para trás, direta e indiretamente. Ser o terceiro num grupo de mil não é brincadeira. E não é uma derrota, mesmo que o derradeiro jogo tenha sido perdido. As medalhas são atribuídas em função do resultado da última disputa, mas quem sobe ao pódio está no ponto final de uma escalada cujo percurso se perde de vista.

1366) A enganação literária (31.7.2007)



Falei dias atrás sobre o escritor J. T. Leroy, autor de livros sobre sua vida como garoto de programa de beira de estrada, viciado em drogas, portador do HIV. Leroy lançou livros, teve obras filmadas, e depois descobriu-se que ele não existia. Era um pseudônimo de uma escritora que recorria a uma enteada para desempenhar o papel de “Leroy” em público. “Ele” esteve no Brasil em 2005, na Flip (Festa Literária de Paraty), e deu entrevistas que exploravam sua aparência andrógina, quase transexual. Em 2006 a verdade saiu nos jornais. E agora as pessoas (e os tribunais) discutem: Isso é crime? Falsidade ideológica, ou coisa equivalente?

Não vou discutir os aspectos jurídicos, mas os literários. Existem autores que só escrevem sobre seu próprio mundo. Escrevem com sua verdade pessoal, sua visão pessoal, sua experiência pessoal. Escritores assim são maus criadores de personagens, porque só sabem falar do que conhecem. Jorge Luís Borges e Henry Miller, por mais diferentes que sejam, têm isso em comum. Falam sobre seus próprios mundos; não saberiam, por exemplo, escrever um romance na primeira pessoa contando a vida de uma dona-de-casa numa fazenda.

Outros autores, contudo, sabem colocar-se na pele de personagens imaginários, vivenciar mentalmente situações que nunca conheceram, produzir em si próprios emoções fictícias. Quando Flaubert disse “Madame Bovary sou eu” deu a formulação mais simples desse processo, porque foi dentro dele, Flaubert, que se criaram as complexas emoções e vivências daquela mulherzinha boba, banal, ambiciosa, que, em princípio, em nada se parecia com Flaubert. Quando chamam Chico Buarque de “o Chico Xavier da alma feminina”, os críticos colocam essa questão da pseudo-mediunidade, da técnica (pois é uma técnica) de imaginar-se sendo outra pessoa, pensando com ela, sentindo com ela. Alguns sabem fazer. Outros não.

J. T. Leroy tem um livro, adaptado para o cinema, com o título The Heart is Deceitful Above All Things – “O Coração é Enganador Acima de Tudo”. O que nos traz aos versos de Pessoa: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Emoções podem ser verdadeiras mesmo produzidas por uma vivência não real – o cinema está aí para isso, não é mesmo? Para que recebamos por duas horas o espírito daquele personagem interpretado por Dustin Hoffmann ou Fernanda Montenegro, soframos com ele, riamos com ele, identifiquemo-nos com seus menores trejeitos faciais, com as menores inflexões de sua voz. São falsas, essas emoções que nos violentam na sala escura? Não acho. São as mesmas de um escritor que as produz conscientemente em si próprio, num gabinete silencioso, a sós diante do computador. Guimarães Rosa dizia: “De repente, o diabo me cavalga”. Não o Diabo cristão: mas o “Daimon” grego, o espírito criador que pede para dizer algo. Se lhe inventamos um nome e uma biografia, aí são outros quinhentos.

1365) O espírito esportivo (29..7.2007)



O Pan do Rio de Janeiro tem suscitado um interessante problema filosófico: devemos ou não vaiar os atletas estrangeiros, quando disputam um título com os brasileiros? A resposta é clara, evidente e óbvia. O problema é que essa resposta evidente, para metade dos torcedores, é “sim”, e para a outra metade é “não”. Pois é, amigos – até mesmo o óbvio ululante costuma ulular em desacordo.

Para o brasileiro, acostumado à paixão do futebol, vaiar o adversário é não apenas um direito garantido pela Constituição, é uma obrigação moral. Se não vaiamos o adversário ficamos com aquela sensação incômoda de estar abrindo as pernas, dando mole, entregando o ouro aos bandidos. Perder, tudo bem, todo mundo que disputa perde; mas perder sem vaiar, sem ofender, sem xingar a mãe? Ah, isso não.

Oscar, nosso craque do basquete, foi assistir a ginástica artística e ficou vaiando em altos brados as ginastas estrangeiras. As brasileiras ficaram horrorizadas; “Não se deve fazer isso! Quando nos apresentamos lá fora, em qualquer país, eles nos aplaudem! A gente está competindo, mas não tem que atrapalhar as outras!” Oscar discorda: “Tem que atrapalhar, sim, tem que vaiar, passar uma energia negativa, pra ver se elas erram e o Brasil fica com o ouro”. Depois, na TV, desculpou-se pelo arrebatamento.

O problema é que o esporte olímpico, representado no Pan, tem uma imensa variedade de situações. Existem esportes em que a concentração é fundamental, e a torcida obedece a uma ética implícita de respeito ao adversário. Antigamente, um torneio internacional de tênis parecia uma cantoria de viola: silêncio absoluto durante a jogada (ou o verso) e, após a conclusão, aplausos demorados, seguidos por novo silêncio no início do verso (ou da jogada) seguinte. Essa formalidade está sendo quebrada. Qualquer dia desse vai ter a bateria da Mocidade Independente servindo de charanga para um tenista brasileiro em Wimbledon.

Esportes de massa, tradicionalmente, pedem torcidas ruidosas e inflamadas. Mas há esportes praticados em ambientes mais restritos onde a tradição é observar, e no final aplaudir educadamente. Tênis, ginástica e hipismo são exemplos. Há esportes onde é necessária uma concentração muito intensa no momento de executar um saque, dar um salto, transpor um obstáculo. Algo difícil de fazer quando existe uma torcida vaiando, batendo bombo, chamando palavrão. É chato saber que quando nossos atletas se apresentam mundo afora têm silêncio quando precisam de silêncio, e têm aplauso quando ganham e quando perdem. No tênis, por exemplo, vejo isso a torto e a direito. O Brasil, infelizmente, parece arrebatado por essa mentalidade de quem vai com muita sede ao pote, aquele desespero de quem nunca ganhou nada e que se depara com a possibilidade de vitória. Uma torcida com aquele olho escanzinado de cachorro faminto enxergando um filé ao alcance dos dentes. Pense numa coisa que pega mal!

1364) A história de J T Leroy (28.7.2007)


(J. T. Leroy?)

Falei aqui recentemente sobre os “fantasmas escritores”, que não são o que em inglês se chama de “ghost writers”. Meu artigo era sobre os escritores mediúnicos como Chico Xavier ou Zíbia Gasparetto, pessoas que crêem na doutrina espírita de que a alma é imortal e pode se comunicar com os vivos. Esses escritores entram em transe, recebem (dizem eles) o espírito de escritores já falecidos e produzem novas obras literárias.

Nos tribunais americanos está rolando um processo judicial envolvendo a obra autobiográfica do escritor J. T. Leroy, que estreou em 2000 com o livro Sarah (publicado no Brasil pela Geração Editorial), onde contava sua infância sofrida como filho de uma prostituta de beira de estrada que atendia caminhoneiros. Leroy cresceu e tornou-se também garoto de programas, atendendo aos fregueses de sua mãe. A história era arrepiante, cheia de uma verdade pungente. O livro ficou famoso, vendeu pra caramba, teve os direitos adquiridos para o cinema... a trajetória habitual dos sucessos nos EUA. Aí descobriu-se que era tudo invenção. J. T. Leroy não existia: era a invenção de uma escritora chamada Laura Albert.

Os produtores do filme sentiram-se lesados. Julgavam estar comprando uma história autobiográfica; se os fatos do livro eram ficção, aquilo mudava tudo. Mas aí Laura Albert foi mais fundo. Revelou que J. T. Leroy era na verdade um “alter ego”, uma dupla personalidade real, alguém que tinha existência própria e vivia dentro de sua mente. Sua mãe testemunhou, no tribunal, que a filha tinha graves depressões, foi internada várias vezes, e era de uma timidez patológica: chegou a ficar três anos sem sair do quarto. Nesse quadro de neurose e desepero, J. T. Leroy emergiu (diz a escritora) como um respiradouro, uma válvula de escape. E foi ele quem passou a se comunicar com o mundo, por escrito.

Notem bem: a sra. Albert não alega estar captando o espírito de alguém que morreu. Tecnicamente, trata-se do contrário: alguém que nasceu dentro dela, sem ter tido uma existência corpórea. A psiquiatria trata isto como caso de “dupla personalidade”, e os exemplos na história médica são numerosíssimos. O que isto tem de interessante para a literatura é o fato de que pessoas provavelmente incapazes de escrever um livro por conta própria conseguem fazê-lo quando imaginam que são outra pessoa, seja essa pessoa um autor famoso como Balzac ou Eça de Queiroz (já “canalizados” por médiuns brasileiros) ou um autor fictício como J. T. Leroy.

A dissociação psíquica e a divisão literária da personalidade podem ser um processo consciente, deliberado, sob controle: está aí “Fernando Pessoas” que não me deixa mentir. A vida e a obra de Zíbia Gasparetto, Laura “J. T. Leroy” e Pessoa (com seus heterônimos) são talvez diferentes facetas de um mesmo processo de criação de uma “voz literária”, que deveria ser tratado pela ciência e pela crítica literária com uma percepção mais ampla do que realmente ocorre.

1363) Brasil 5x0 Estados Unidos (27.7.2007)



Eu sou tão viciado em computador que quando terminou este jogo, a disputa da medalha de ouro no futebol feminino, esbocei instintivamente o gesto de apertar a tecla do “Print Screen”, para “fotografar” aquela imagem e guardá-la para sempre: as meninas abraçadas em círculo, pulando no meio do campo, e o placar indicando este poema concreto: BRA 5 EUA 0. Só então me lembrei que a tela que eu estava vendo era a da TV, mas não tem problema, a festa era real. Não preciso guardar imagens. Existe um fato, um fato real, duro, obstinado, irremovível, consumado. Braziu-ziu-ziu!

Tem várias facetas, esta façanha. A menos nobre de todas é o prazer de derrotar os norte-americanos. Alguns leitores me criticam o vezo anti-americano desta coluna, mas eu não sou inimigo dos EUA, sou inimigo do seu atual governo, do capitalismo selvagem que o sustenta, e do militarismo que ele patrocina. Critico as idiotices do povo americano como critico as do povo brasileiro, que são em igual número. Tenho simpatia por muitas qualidades que os americanos têm e nós deveríamos ter. Portanto, peço desculpas a alguns leitores especiais (hi Bill, Tom, Michael, Libby... Scott, are you there?). Mas ganhar dos EUA numa competição internacional é uma obrigação moral nossa, para nossa afirmação como povo.

O Maracanã viveu um dia de felicidade sem violência, como há muito tempo não vivia. Fiquei feliz na entrega das medalhas, vendo o estádio inteiro aplaudir a seleção americana. Isso compensou algumas inconveniências e até grosserias que nossa torcida tem praticado neste Pan. As meninas americanas estavam felizes. São um time jovem, um time sub-20, ao que parece, que está sendo preparado para as próximas Olimpíadas, os próximos Mundiais. Louras, rosadas, sardentas (aqui e acolá tem uma neguinha para dar um charme), receberam as medalhas com festa, com alegria, e a câmara captava em close seus sorrisos puros, a felicidade inocente de criança que fica feliz porque ganhou uma prata.

O time brasileiro me comove. Passe uma câmara lateralmente naquela equipe e veja que coisa linda. Umas são balzaqueanas com mais de 30 anos, outras são garotas que estão começando. Deram cinco goleadas, mostraram técnica, tática, habilidade, entusiasmo na hora certa, auto-controle quando foi preciso. Todas reivindicam respeito com o futebol feminino, apoio, verbas, estrutura. Todas comemorando, sorrindo, dançando; todas belas. Tem umas que é ver uma cangaceira; tem outras com cara de baile funk. Todas exibindo orgulhosas as Angolas e os Xingus dos seus genes. Você olha, e só vê povão: índia, passista, manicure, estudante, secretária, cobradora de ônibus, enfermeira. Todas poderiam estar fazendo o mesmo que suas iguais fazem, mas não, estão batendo escanteio, cortando chuveirinho, fazendo gols, salvando gols. As pernas cheias de cicatrizes, e a cabeça cheia de sonhos. Todas beijando a medalha, radiantes, sofridas, cheias de alegria de viver.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

1362) “C’était um rendez-vous” (26.7.2007)



É um curta de oito minutos e pouco, dirigido por Claude Lelouch nos anos 1970. Ao amanhecer, um carro dispara pelo centro de Paris. A câmara, no banco da frente, vai registrando a passagem dos sinais vermelhos (em esquinas felizmente desertas àquela hora matinal) ao longo de paisagens parisienses: o Arco do Triunfo, a avenida dos Champs Élysées, a Rue du Rivoli, a Praça da Ópera... Ouvimos o ronco angustiado do motor, cada vez mais agudo, a troca de marchas, o ranger dos pneus nas curvas fechadas... O carro faz algumas barbaridades, corta pela contramão, entra com tudo em ruelas estreitas, mas sempre em frente, sem nunca se deter, até que surgem as ruelas de Montmartre, as primeiras ladeiras, ele vai subindo, divisamos ao fundo a cúpula branca do Sacré-Coeur, e é nos degraus da frente da igreja que o carro se detém. No instante em que ele pára, uma mulher jovem, bonita, vem subindo os últimos degraus, e do lado esquerdo do carro surge um rapaz, o motorista, que a abraça. E surge na tela o letreiro: “Cétait um rendez-vous”. Era um encontro marcado. (Procurem pelo título, no YouTube)

O filme tem uma certa poesia, embora seja politicamente incorretíssimo pelas inúmeras infrações que o motorista cometeu. Entende-se que a idéia tenha sido irresistível para um sujeito como Lelouch, fanático por automobilismo – em seu famoso filme Um homem, uma mulher, o protagonista, interpretado por Jean-Louis Trintignant, é piloto de corridas. Para fazer o filme, ele montou a câmara num sistema estabilizador (para evitar que a trepidação borrasse a imagem), e usou uma Mercedes Benz 450 SEL, sendo que o som do motor é de uma Ferrari 275 GTB. (Eu copiei esses dados do YouTube; na vida real, não sei distinguir uma Ferrari de um Fuscão Preto).

Recentemente, a banda Snow Patrol usou o filme de Lelouch como a imagem de um videoclip para sua canção “Open Your Eyes”. Em vez do som do motor, ouvimos a banda cantando, e a canção se encerra com a imagem do casal se abraçando na última cena. A música é uma daquelas canções que se iniciam com um ritmo contínuo da guitarra e a voz vai se superpondo, enquanto a imagem desliza velozmente, de modo contínuo. É muito bom o clip, até mesmo por ser minimalista – se bem que imagens em movimento contínuo são uma das melhores coisas para sincronizar: praticamente qualquer música dá certo.

Alguém poderia fazer um clip assim, se bem que teria de ser um clip editado, para não ficar muito longo: começando com uma imagem noturna (digamos, uma praça) perto do amanhecer, a câmara sairia percorrendo paisagens da cidade, ruas desertas, praças vazias, e à medida que o sol nascesse aquilo iria clareando aos poucos até que depois de mostrar algumas centenas de ruas a câmara voltaria inesperadamente, por uma transversal, ao ponto de partida, e terminaria com o mesmo enquadramento do início, só que agora banhado pelo sol.

1361) Os tesouros não merecidos (25.7.2007)




Nos contos fantásticos que envolvem algum tipo de comércio com o sobrenatural (lâmpada mágica, três pedidos, etc.) existe uma lei não-escrita segundo a qual tudo que se pede com facilidade acaba custando um preço inesperado. 

Em “O demônio da garrafa” de Robert Louis Stevenson, o sujeito pede à garrafa mágica uma mansão; logo vem a saber da morte de um tio, que lhe deixa de herança exatamente o dinheiro necessário para construí-la. 

Em “A pata do macaco” de W. W. Jacobs, o velho casal pede à relíquia miraculosa as 200 libras que faltam para pagar a hipoteca da casa; recebem-na como indenização trabalhista pelo acidente fatal que seu filho único sofre no dia seguinte. 

Existe uma lógica cruel no atendimento a esses pedidos ingênuos de pessoas que acreditam que a riqueza é grátis. Ora, como dizia um célebre economista norte-americano, “almoço de graça não existe”. Tudo cobra um preço, mais cedo ou mais tarde.

Outro lugar comum romanesco é a herança inesperada. Foi tão usado que virou anátema – o sujeito que usar isso hoje cai em descrédito, e nem estou me referindo à literatura, falo mesmo em novelas de TV. 

Fulana é uma viúva jovem, honesta, sofredora, que dá duro no batente para criar três filhos. Faltando dez capítulos para o fim da novela, ela recebe a notícia de que morreu uma tia-avó dela no Mato Grosso e lhe deixou de herança um milhão de reais. Surpresas desse tipo foram tão usadas para resolver problemas que perderam a credibilidade. 

Mais sábios são os criadores folclóricos, porque num conto-de-fadas não há nenhuma herança que não venha com uma maldição (“o tesouro é seu, mas você não pode se casar”) ou com uma condição misteriosa e geradora de problemas futuros (“o castelo tem 99 quartos, mas há um que você não pode abrir”).

A sabedoria popular desconfia dos tesouros não merecidos, quer dizer, daqueles que são conquistados magicamente, que caem do céu em nosso colo, que chegam às nossas mãos sem nenhum dispêndio de sangue, suor e lágrimas. Nos contos populares coexistem realidade e fantasia, por isso há tesouros que o sujeito acha simplesmente dando uma topada numa pedra (a fantasia, o desejo infantil da riqueza fácil) mas no pacote vem sempre uma ameaça ou uma punição.

Maldo eu que seja isto também uma reação freudiana (êpa!) das populações camponesas medievais, em cujo seio essas lendas brotaram, a instituições que eles viam com estranhamento, como a da herança. 

Naquele tempo feudal, em que os servos nada tinham de seu, devia ser para eles algo fantástico o modo como a morte de um nobre transferia magicamente para um parente distante seus títulos, seus brasões, seus castelos, seus vinhedos, seus servos. Uma casa nobre em ruínas e farrapos ressurgia para a riqueza devido à morte de um parente distante. Uma fortuna às vezes imerecida, geradora de contos de advertência, sinais de perigo tentando restaurar o equilíbrio de um mundo abalado por esses caprichos divinos.








quarta-feira, 11 de novembro de 2009

1360) Adeus, Zé Agrippino (24.7.2007)



(as três edições de Panamérica)
 

O Brasil ainda não sabe, e talvez não venha a saber jamais, mas perdeu no dia 4 de julho passado um dos seus escritores mais fora-de-esquadro. (Para o leitor casual desta coluna, vou logo esclarecendo que esta é uma das expressões mais elogiosas do meu dicionário) 

Morreu no interior de São Paulo, aos 69 anos, José Agrippino de Paula, cujos livros Lugar Público e Panamérica, emprestados por Lula e Chico Pereira, abriram no meu cérebro de garoto de 17 anos uma janela que nunca mais se fechou. São obras primas? Não sei. São um modelo a ser seguido? Acho que não. E aliás são dois livros diferentíssimos, que bem poderiam ter sido escritos por dois camaradas diferentes. Mas eles revelaram para mim uma dimensão nova das possibilidades da imaginação e da linguagem, algo parecido com o que o cinema de Godard, as colagens de Max Ernst e a música dos Beatles estavam me revelando na mesma época. 

Dez anos depois eu morava em Salvador e trabalhava com Guido Araújo no Clube de Cinema da Bahia, que funcionava nas instalações do Instituto Goethe, ou ICBA (Instituto Cultural Brasil-Alemanha). 

Na biblioteca do Instituto eu já tinha descoberto uma edição artesanal, em inglês, de uma peça de Agrippino: The United Nations, que inaugurou para mim um novo gênero literário, a “peça não-encenável”, porque as rubricas dizem o tempo todo coisas como: “Neste momento, o palco é invadido por 50 legionários romanos com 3 metros de altura, que matam todos os atores e desaparecem dentro de um aquário” – tipo isso. 

Tivemos a idéia de exibir o único longa-metragem dirigido por ele, Hitler Terceiro Mundo, um filme que Caetano Veloso volta e meia elogia na imprensa. A única cópia acessível era do próprio Agrippino, que morava em Arembepe ou arredores. No dia aprazado surgiu no ICBA aquele sujeito alto com cara de índio asteca e cabelos nos ombros, vestindo uma bata indiana branca ou coisa parecida, com as latas de filme embaixo do braço. 

Eu o recebi, mandei sentar, ofereci cafezinho; consegui não pedir autógrafo. Ao abrir as latas, vi que o filme era uma cópia velha, cheia de emendas com fita durex. Pedi licença a Agrippino para levar o filme para a moviola, no andar de cima, e refazer as emendas, para a fita não ficar partindo durante a projeção. Ele cofiou uma barba inexistente, perguntou se ali tinha moviola, eu confirmei, e ele disse; “Então aproveite e remonte o filme todo. Pode ficar mais interessante”. 

Não remontei, claro, apenas consertei as emendas; mas isto dá uma idéia de como funcionava a mente desse sujeito cujos livros foram reeditados pela Editora Papagaio, de São Paulo (e comentados aqui: “José Agrippino de Paula”, 13.6.2004). 

Todo escritor brasileiro, por maior que seja, divide um nicho histórico com os que compartilham com ele um universo geográfico, ou um estilo, ou uma área temática. No nicho ocupado por Zé Agrippino existe apenas ele, e os dois livros indestrutíveis que nos deixou.






1359) Espaços que desaparecem (22.7.2007)




Moro numa rua tranqüila à qual se chega subindo uma ladeira. Lá embaixo corre a rua principal do bairro, onde passam as linhas de ônibus, e por onde a corrente principal do tráfego fervilha o dia inteiro. É também uma rua de comércio intenso, com algumas galerias, numerosas lojinhas, lanchonetes, bancos, brechós, academias, toda a biodiversidade urbana que fervilha sem parar diante dos nossos olhos, visível e invisível.

Dias atrás, num dos trechos que mais freqüento, havia uma loja nova sendo preparada. Aquele espaço vazio em forma de caixa de sapatos, cheio de carpinteiros atarefados trocando o piso, estripando fiações elétricas, martelando tábuas e desencaixotando ladrilhos. De um lado, a lojinha fotográfica onde já comprei uma câmara; do outro lado, a farmácia onde compro mel-com-própolis-e-guaco. Aí me deu um branco. O que existia entre as duas? Sumiu alguma coisa que me era tão familiar quanto a lojinha e a farmácia, mas, como sumiu, eu agora não sei mais o que é.

Nossa memória é capaz de registrar a ausência de algo sem saber do que é. Se estão preparando uma loja nova, é porque existia outra coisa naquele endereço. Mas, como diz o matuto, se eu souber o que era eu “estóre”! Fosse o que fosse, era algo com que minha percepção tinha uma relação meramente passiva, perceptiva. Algo que eu passava na frente, olhava, registrava rapidamente, e dez segundos depois evaporava-se da lembrança para dar lugar a outra impressão, que por sua vez fazia o mesmo para dar lugar a outra, e assim por diante.

Quando tento visualizar a rua que eu conhecia enxergo a lojinha fotográfica de um lado, a farmácia do outro, e entre as duas um espaço indeterminado. Não é um buraco negro como um dente-da-frente faltando. É apenas uma ausência sem correspondente visual. Sei que a imagem está gravada na minha memória (nada que registramos é deletado; é apenas “jogado na Lixeira”), mas a ansiedade gerada por aquela substituição me impede de ver o que era. A imagem atual (o espaço vazio com os carpinteiros) impôs um corte, questionou minha capacidade retentiva, instaurou uma pequena crise emotiva: “Tá vendo, seu idiota? Você tão burro que é incapaz de lembrar uma coisa que tinha aqui e que você já viu mil vezes nos últimos dez anos”. Vi mil vezes, mas agora me deu um branco e não vejo mais.

Lembrarei um dia, quando conseguir recuperar essa lembrança na ponta oposta do barbante; quando em vez de procurá-la na minha memória eu a procurar na minha vontade. Um dia descerei confiante e inadvertido rumo àquela rua, pensando, “Ah, que bela tarde para dar uma passada naquela lanchonete de sanduíches naturais e sucos feitos com hortaliças!”. Chegando lá, horrorizado, me depararei com essa cena bretoniana, surrealista: de um lado a lojinha fotográfica, do outro a farmácia, e no meio a minha querida lanchonete natural foi substituída por um ofensivo açougue e suas vidraças sanguinolentas.