segunda-feira, 21 de setembro de 2009

1275) O realismo camuflado (14.4.2007)


(A Ceia de Dali)

Dois quadros famosos que exemplificam bem a questão do Realismo são as recriações da Última Ceia de Cristo, por Leonardo da Vinci e por Salvador Dali. O primeiro todo mundo conhece; o segundo pode ser achado no “Google Imagens” sob o título “The Sacrament of the Last Supper”. À primeira vista, a ceia de Da Vinci é realista e a de Dali é fantástica. Na primeira, há um recinto normal, pessoas retratadas de forma costumeira, coisa e tal. Na segunda temos uma sala que mais parece um cenário de ficção científica, com estruturas que ora parecem de metal maciço, ora parecem transparentes; o corpo de Cristo também é parcialmente transparente (podemos avistar através dele os barcos amarrados ao ancoradouro).

Um exame mais demorado, no entanto, nos mostra que não é bem assim. Ambos os quadros são uma mistura equilibrada entre o realismo e o não-realismo (não direi propriamente o Fantástico, mas o Improvável). A Ceia de Da Vinci é um retângulo deitado com uma composição em X, centralizada na cabeça de Cristo. Sempre me intrigou o fato de a gente ver treze pessoas sentadas de um lado só da mesa. O lógico, o realista, seria que estivessem distribuídos em torno dela (como aliás estão, na Ceia de Dali), mas havia na época uma convenção pictórica que fechava os olhos à lógica. A impressão que nos dá é que havia um pintor na Ceia e eles ficaram todos de um lado da mesa para todos poderem aparecer de frente. (Uma situação já satirizada por Luís Buñuel em Viridiana, na cena da ceia dos mendigos, em que posam para uma “fotografia”).

No quadro de Dali, todos os apóstolos têm corte de cabelo moderno, tipo anos 1950, o que diminui seu possível realismo. Mas devemos ter mente que o quadro de Da Vinci é também uma reinterpretação de cabelos, barbas e vestes da época de Cristo, feita no século 15, e nada nos garante que haja uma preocupação realista. A pintura sacra de todos os séculos cansou de mostrar centuriões romanos e apóstolos judeus vestidos nos trajes da época do pintor. Há um traço realista que passa despercebido, mas me parece essencial: as dobras da toalha da mesa. Da Vinci mostrou este precioso detalhe, e Dali aperfeiçoou como só ele sabia fazer. Quando desdobramos uma peça de tecido (toalha, lençol, etc.) vemos nela as marcas da dobra, formando retângulos traçados por vincos alternadamente salientes ou em forma de sulcos. É um detalhe meio imperceptível, mas que nos dois quadros me dá uma sensação de realismo maior do que todo o restante.

Última nota: a ceia de Da Vinci é um dos quadros mais copiados do mundo. As únicas reproduções autênticas são as que mostram, abaixo da figura de Cristo, a parte superior de uma porta, pois a pintura original está na parede do refeitório de uma igreja em Milão. Parte da pintura foi destruída há séculos para a abertura desta porta. Um sacrilégio, mas simbólico: não será o próprio Cristo uma porta, já que ninguém vai ao Pai senão por ele?

1274) “300” (13.4.2007)



O filme de Zack Snyder, baseado na história do quadrinhos de Frank Miller, é uma dessas experiências em que todos os esforços se destinam à reconstituição do visual que lembre as “graphic novels”. Pelo que li, o filme foi rodado em um mês e meio, e depois passou por mais de um ano de pós-produção, em que cada tomada foi submetida a sucessivos tratamentos de software para ganhar aquele visual meio granulado, meio descolorido, que é o seu principal trunfo estético.

Em termos de roteiro, é uma defesa do militarismo, com alusões à política americana atual, que não sei até que ponto são voluntárias ou inadvertidas. Claro que o lado pró-americano é o mais visível. O filme defende a importância de se manter uma elite de guerreiros super-treinados, que podem facilmente, em inferioridade numérica, derrotar uma tropa de soldados amadorísticos, desorganizados. Esparta é até hoje, merecidamente, o símbolo de uma civilização de soldados, coisa em que muitos norte-americanos gostariam de ver transformado seu país.

Por outro lado, os espartanos são os invadidos, não os invasores. Se fôssemos comparar o filme à situação do Oriente Médio, eles poderiam ser comparados aos afegãos ou aos iraquianos que se sacrificam tentando repelir um exército muito superior. Analogia reforçada pelo fato do rei Leônidas ser a cara de Osama Bin Laden. Rodrigo Santoro, concordo, não lembra muito George W. Bush; mas o estilo afetado, efeminado e sibarita do Rei Xerxes lembra muito mais o lado decadente da civilização norte-americana do que a cultura talibã. Pode-se ver no filme uma alegoria de um país menor e mais pobre, porém digno e ascético, sendo invadido por uma potência riquíssima e pervertida.

A imprensa caiu de pau (o “Globo” publicou um artigo histérico e divertido de Arnaldo Jabor) na violência do filme: decapitações, mutilações, estripamentos, etc. Esse tipo de violência explícita descrita em câmera-lenta começou com Sam Peckinpah, e hoje se beneficia das tecnologias de animação que aceleram os movimentos intermediários e retardam o instante do orgasmo sádico em que um guerreiro traspassa o outro com a lança, mandando borrões de tinta vermelha em todas as direções.

Jabor tem razão em vários aspectos. A violência do cinema norte-americano atual parece ter a função de nos anestesiar, de nos embrutecer, de nos tornar cada vez menos sensíveis à violência, a fim de permitirmos que ela se propague. Qualquer coisa que aconteça, o sujeito dá de ombros e diz: “Ah, no cinema eu já vi coisa muito pior do que isso”. Existe no gênero do filme-de-guerra um limite muito fluido entre glorificar a coragem e glorificar a crueldade, entre mostrar a bravura e mostrar o sadismo. A proibição do sexo gerou a pornografia, um sub-gênero onde mostra-se apenas sexo o tempo todo, sob as formas mais mirabolantes. A violência, menos reprimida, está cada vez mais ganhando uma pornografia própria.

1273) A reciclagem de clichês (12.4.2007)



Um escritor de ficção científica disse uma vez: “Nunca use uma idéia que você aprendeu na televisão. A TV é o fim da cadeia alimentar das idéias. Quando ela chega lá, já sugaram todas as proteínas que ela poderia ter pra dar”. O cara que disse isto não tinha preconceito contra coisas modernas, pelo contrário, era um cara que escrevia FC. Mas, por isto mesmo, era capaz de visualizar o trajeto de uma idéia no mercado das histórias.

Suponhamos uma boa idéia. Digamos: “Um mundo-simulação onde os personagens eletrônicos pensam que são gente de carne-e-osso”. Publicada num livro, ela fica hibernando ali durante dez, vinte anos, sendo conhecida apenas pelas dez ou vinte mil pessoas que leram aquele livro (estou falando em mercado norte-americano). Mas é uma boa idéia, e cedo ou tarde um produtor esperto ou um roteirista teimoso consegue comprar os direitos do livro.

Enquanto isto, no mercado literário, a idéia não foi esquecida. Já se criaram variantes, já se escreveram livros tentando desmenti-la, e quem leu estes livros também leu o livro que os inspirou. Dentro do mercado da literatura de gênero (FC, policial, terror, etc.), este tipo de diálogo, de “feedback” é costumeiro, é a respiração normal de uma literatura. Todos estes livros provocam resenhas, críticas, respostas, e a idéia original volta a ser debatida, dissecada, melhorada, enriquecida.

Seguem-se mais alguns anos de tentativas de fazer o filme, que acaba sendo feito, e estréia 25 anos depois do livro original ter saído. O filme passa meio despercebido, mas quem leu o livro corre e vai vê-lo. Isto provoca um novo surto de interesse pela idéia, brotam novos textos, contos, um ou outro romance. Ao mesmo tempo, o filme também chama a atenção de outras pessoas na indústria. Poucos anos depois, um roteirista esperto adota a idéia e bola em cima dela outra história. Atores famosos topam estrelar. O filme é feito, e vira um arrasa-quarteirão. Dois anos depois, há uma dúzia de filmes semelhantes sendo feitos, todos em cima da mesma idéia.

A esta altura, no meio literário ninguém agüenta mais falar naquilo, até porque neste intervalo não pararam de aparecer idéias novas e diferentes. O sucesso de alguns daqueles doze filmes provoca seqüências, paródias, novelizações, quadrinhos. E, logo depois, uma série na TV. Que leva algum tempo para ser produzida, e quando vai ao ar é vista por um adolescente (ou por um adulto meio desligadão) que pensa: “Puxa vida! Um mundo-simulação que pensa que é real! Que idéia maneira! Como é que ninguém pensou nisto antes? Vou escrever uma história!” Meu conselho é: escreva, sim, companheiro. Eu não fiz outra coisa em minha vida senão seguir estes impulsos. Mas – não se iluda. Você vai estar reinventando a pólvora. Mesmo que o que você venha a produzir seja pólvora mesmo, e da boa, você não será nunca o Inventor, será apenas um fabricante a mais de um troço que todo mundo já conhece.

sábado, 19 de setembro de 2009

1272) Borges e “O Justiceiro” (11.4.2007)



Um dos contos mais atuais de Jorge Luís Borges é “Deutsches Requiem” (no livro O Aleph). Nele, o nazismo é mostrado pelo lado de dentro, pelo ponto de vista de um cara que acredita que aquele pesadelo é o futuro do mundo. Otto Dietrich Zur Linde, o narrador, vê com euforia a ascensão do nazismo e sua expansão devastadora pela Europa. No final, quando o resto do mundo se ergue contra Hitler e o esmaga por todos os lados, ele ainda consegue ver nisto uma vitória. Suas palavras finais são: “Ameaça o mundo agora uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno”.

A monstruosidade da ideologia é reforçada, por contraste, pela beleza poética desta última frase, que encerra a mais altruísta das filosofias. Zur Linde exprime aquilo que Borges mais detestava e desprezava, mas o autor cede ao personagem sua melhor inspiração literária. Para quê? Para evitar a caricatura, mostrar que o Nazismo é uma doença mental que pode acometer a qualquer um. O nazismo veio para implantar o terror, a guerra, a loucura à mão armada. Veio para ameaçar o mundo com uma monstruosidade tão absurda e desmedida que para destruí-la, para torná-la inviável, foi preciso criar “um monstro ainda maior, e ainda mais monstro”. E o reino dos monstros começou de fato a imperar sobre a Terra.

Hitler afirmou certa vez: “Quem quiser viver é constrangido a matar. Martelo ou bigorna. Minha intenção é preparar o povo alemão para ser o martelo”. Esta frase estava (me parece óbvio) na memória de Borges quando ele compôs o fecho do seu conto. Zur Linde vai além de Hitler, pois percebe que a função do nazismo era trazer para o mundo A Lei do Martelo e da Bigorna, e para que isto acontecesse era indiferente qual dos dois a Alemanha viria a ser.

Na história em quadrinhos O Justiceiro, escrita pelo irlandês Garth Ennis, na última parte do episódio “Nascido para matar”, ambientado na Guerra do Vietnam, lemos a certa altura:

“Há uma grande Besta-Fera à solta no mundo dos homens. Ela despertou em tempos sombrios para enfrentar um terrível inimigo. Percorreu a Europa e o longínquo Pacífico, esmagando o Mal que encontrou pelo caminho. No entanto, quando foi vitoriosa, quando a perversidade da Cruz Gamada e do Sol Nascente teve fim, os guardiões da Besta-Fera julgaram por bem não devolvê-la ao seu sono. A Fera tem muitas cabeças, cada qual com um nome escrito: Lockheed, Bell, Monsanto, Dow, Grumman, Colt e muitos mais. E elas são muito famintas. Por isso, a Fera deve se alimentar... e, a cada geração, nosso país vai à guerra pra garantir seu sustento”. A Fera que nos livrou de Hitler está à solta, mas quem vai nos livrar da Fera?

1271) A escada do poder (10.4.2007)



(Wilson Mizner)

Sou um grande aprendedor, ou, na feliz expressão de Jessier Quirino, um “prestador de atenção”. Dou ouvidos a todo mundo e nunca me arrependi disto. 

Uma das pessoas a quem dou ouvidos de vez em quando (vemo-nos uma ou duas vezes por ano, se tanto) é um conhecido meu a quem chamarei ficticiamente Ascenso Seguro. Conheci-o no Baixo Leblon, por entre chopes cremosos e pizzas no palito. 

Ascenso tinha uma atuação incessante na área cultural, foi nomeado para um cargo qualquer do quinto escalão, projetou-se, apareceu na mídia, fez amizades, entrou na política, e hoje pontifica num escalão que aos meus olhos leigos deve ser segundo ou terceiro. 

Ascenso é solícito, é infatigável, e tem uma qualidade que o distingue em nosso ambiente cultural: está de bem com todo mundo, fala bem de todo mundo. Num meio famoso pela maledicência-pelas-costas, nunca o vi dizer que Fulano é burro ou que Fulana é feia. É o tipo do cara que ajudaria a levar o cavalo de madeira para dentro de Tróia, e que, depois de fechado o portão, contaria tudo aos troianos. 

“O segredo,” confidenciou-me ele meses atrás, numa madrugada repleta do Nova Capela, durante um cabrito-com-brócolis, “é imagem. O que você é, é problema seu, mas o que as pessoas vêem em você é problema da comunidade. É como no futebol. Quando um técnico lhe escala, não é porque gosta de você ou acha que você é um cara legal. É porque precisa de alguém para cobrir os avanços do lateral esquerdo, ou porque precisa de alguém para triangular na ponta e cruzar bolas na área”. 

“Ah, entendi,” falei eu. “A imagem da gente tem que passar duas coisas: potencial, e disponibilidade”. 

Ele retrucou: “Cara, você é muito inteligente, já podia estar em Brasília. Pois é isso mesmo. Mas tem outra coisa: você precisa olhar os dois lados da escada, o de cima e o de baixo. O grande erro dos caras é que eles só olham para cima, para os caras que estão nos degraus superiores, e que podem lhes dar uma chance. Tem que olhar para os degraus de baixo também. A humanidade se divide em dois grupos: os Figurões e os Figurantes. Não adianta de nada você estar de bem com os Figurões e ter uma multidão de Figurantes querendo botar terra no teu motor”. 

Vai daí que Ascenso Seguro tem uma atuação social irrepreensível. Todo dia no Natal e no meu aniversário recebo um cartão personalizado com abraços efusivos, e deduzo que o mesmo acontece com outras mil pessoas. 

Ascenso recorda os nomes dos meus filhos, os títulos de meus livros (pelo menos de alguns deles), e – devo ser justo – me trata com cortesia irrepreensível e uma simpatia sincera. Talvez porque tenha sido eu quem, num desses papos de mesa de bar, citou-lhe a frase de Wilson Mizner, famoso alpinista social norte-americano: “Trate bem as pessoas quando estiver subindo na vida, porque você vai encontrá-las de novo quando estiver descendo”. 

Ascenso gravou este dito a-ferro-em-brasa na memória, e desde então passou a me tratar melhor ainda.




1270) Poluição visual (8.4.2007)



Conversando com amigos paulistanos fiquei sabendo de uma façanha recente da prefeitura local. Estou vendendo pelo preço da fatura, portanto, se me equivocar em algum detalhe peço desculpas antecipadas ao burgomestre. Ao que parece, a administração municipal está trabalhando para reduzir a poluição visual na cidade. Ação que, em tese, eu subscrevo inteiramente. Hoje em dia a gente não pode andar na rua sem ser assaltado por uma profusão indescritível de placas, cartazes, displays, letreiros pintados, letreiros modelados, out-doors, o escambau. Marquises, fachadas, muros, paredes, postes, calçadas, onde quer que haja meio metro de espaço livre vai alguém e enche de “reclames”: ‘CHAVEIRO ENCANADOR ELETRICISTA 24 HS” – “ALISA-SE CABELO E FAZ ESCOVA” – ‘LANCHONETE NOSSA SENHORA APARECIDA XISBURGUER XISTUDO E PÃO NA CHAPA” – e assim por diante. Dá um livro.

Por que tanta propaganda? Principalmente pelo fato de que o brasileiro vive do pequeno comércio, dos pequenos serviços. Com o quê, aliás, eu simpatizo, porque detesto mercados monopolizados por meia-dúzia de companhias gigantescas. Já pensou se somente o MacDonald’s e o Bob’s tivessem licença para vender xistudo? O brasileiro é descolado, ativo, tem iniciativa, adora não ter patrão e fazer as coisas por si próprio. Vai daí, surge essa proliferação da mini-economia. O problema é que, quanto menor a bodega, maior a placa que ela precisa afixar para mostrar que existe. E não só maior, como pintada em tinta acrílica, com letras vermelhas e azuis sobre fundo amarelo berrante.

Proibir? Nem pensar. Padronizar tudo num só tipo de placa? Errado: parece coisa stalinista para facilitar a vida dos burocratas e deixar os usuários unanimemente invisíveis naquela mar de monotonia. Estabelecer critérios máximos de tamanho, colocação, etc.? Talvez, porque Dona Fulana tem direito de avisar aos passantes que faz bolos e tortas por encomenda, mas não precisa de seis metros de muro para dizer isto.

Enfim – soluções existem, basta haver inteligência, bom senso e boa vontade de parte a parte. (Por outro lado, pense em três coisas difíceis de se encontrar hoje em dia!) Mas o prefeito paulistano inventou uma solução radical: mandou proibir placas de qualquer natureza, inclusive as placas e cartazes nas portas do teatro. E a classe teatral está se insurgindo contra esta medida estapafúrdia. Porque uma coisa é a Pirelli ou a Ambev ocupar 150 outdoors pela cidade afora anunciando seus produtos, e outra coisa é um teatro, que só funciona ali naquele ponto, colocar em sua própria porta os cartazes das peças que estão ou estarão sendo em breve oferecidas ao público. A coisa mais difícil do mundo é administrar interesses conflitantes. Ser síndico é mais difícil do que reger uma ópera. Tiro meu chapéu para quem encara uma tarefa tão difícil, mas será que não dá para resolver essas coisas sem recorrer à Solução Herodes?

1269) Estatização vs. Privatização (7.4.2007)



Não vou entrar no mérito desta questão, porque não é muito a minha praia, assim como não é a praia de 99% dos brasileiros. Ouço o barulho da briga, mas como ocorre no andar de cima fica difícil de escolher por quem torcer, até porque tudo que a gente escuta são os insultos que cada um dispara na direção do outro. Já percebi que em questões altamente polêmicas cada um dos oponentes não está discutindo com o outro, mas com a Caricatura do Outro. Está olhando para o outro e enxergando apenas aquela meia-dúzia de traços característicos do outro, exagerados desproporcionalmente, inchados, deformados, criando uma figura ao mesmo tempo muito parecida e muito diferente da verdadeira fisionomia do Outro.

É isso que acontece, por causa de nosso arrebatamento emocional e de nossa formação intelectual precária, quando vamos discutir qualquer questão um pouco mais complexa. Evolucionismo vc. Criacionismo. Brecht vs. Stanislawski. Poesia Praxis vs. Poesia Concreta. Armorialismo vs. Tropicalismo. Estou colocando apenas algumas polêmicas famosas que ocorreram ou ainda ocorrem em diversos campos, e, mais uma vez, não entro do mérito de quem está certo ou quem está errado. O que percebo é a retórica que acompanha todas as discussões.

Para os partidários da Privatização, o Estado é um polvo gigante e obeso que oprime o cidadão, tiraniza seu cotidiano, restringe sua liberdade, impõe-lhe produtos padronizados e de má qualidade, é incapaz de gerir com competência os milhares de negócios que arrebatou às mãos indefesas da iniciativa privada, gasta tudo que tem para sustentar uma burocracia proliferante e ociosa, abre mil canais clandestinos para corrupção, desvio de verbas e suborno, aumenta impostos sem dar nada em troca, suga todas as riquezas do País como um sumidouro sem fundo.

Para os partidários da Estatização, a iniciativa privada, ou o Mercado, é uma selva sem lei, onde só vence o mais forte, mais rico ou mais desonesto, um cassino desenfreado de enriquecimento às custas do consumidor, uma luta desleal em que as grandes redes e os monopólios esmagam as pequenas iniciativas individuais, um jogo de cartas marcadas em que o país é loteado entre meia dúzia de tubarões insaciáveis, uma disputa feroz que, sem a mediação do Estado, nada mais é do que uma guerra de gangues para ver quem enriquece mais rapidamente e sai correndo para os paraísos fiscais, deixando a conta para ser paga por quem vier depois.

Isto é o que cada um diz do outro. Isto é o que escuto nos balões de diálogo no andar de cima, por entre trompaços, pescoções, derrubada de mobília, quebra-quebra de pratos. Qual dos dois tem razão? Qual dos dois tem razão em qualquer briga, em qualquer polêmica? Difícil de dizer, porque eles mesmos não sabem. Não estão brigando com o Outro. Estão brigando com a Caricatura do Outro, como o Monstro do Outro, com o medo que sentem do Outro.

1268) “Fernando e Isaura” (6.4.2007)



O primeiro romance de Ariano Suassuna, de 1956, só foi publicado 38 anos depois. O autor o considerou um “exercício de juventude”, um afiar de lâminas para a batalha mais séria que viria a seguir, o Romance d’A Pedra do Reino, elaborado entre 1958 e 1970. Comparado a este, Fernando e Isaura é um trabalho menor, uma noveleta sem a profundidade ou a amplitude do outro livro, o qual, escrito depois, foi publicado primeiro, e tornou-se o termo de comparação para tudo que o autor viesse a publicar em seguida.

Fernando e Isaura é um conto de amor impossível, amor fadado à tragédia desde o começo. A ação se passa entre Alagoas e Pernambuco. Fernando é um rapaz órfão, criado pelo tio, Marcos, um fazendeiro viúvo. Um dia, numa viagem, ele se mete numa briga, é ferido e passa dois dias com febre, delirando. Quem ajuda a cuidar dele é uma moça dessa cidade, Isaura. Algum tempo depois, é justamente esta Isaura que Marcos pede em casamento, e como não pode ir pessoalmente, encarrega o sobrinho, que ele ama como um filho, de fazer o casamento em seu lugar, por procuração. Dias antes da data do casamento, Marcos encontra por acaso Isaura, numa cidade próxima. Ele não sabe que ela é a noiva do tio, e apaixona-se por ela. Ela não sabe quem é ele, apenas reconhece o rapaz de quem tratara, e por quem se apaixonara desde então. Os dois são fulminados por uma fatídica paixão à primeira vista. Só depois que passam uma noite juntos descobrem suas verdadeiras identidades, e se desesperam.

Seguem-se outras peripécias, que não revelarei para não estragar a leitura (o livro foi publicado pelas Edições Bagaço, de Recife). Como as histórias baseadas nas lendas medievais, o Acaso e o Destino têm um papel importante na ação. As coincidências e os equívocos de identidade acontecem de maneira tão inesperada que aquilo, pensa o leitor, não pode deixar de ser manobrado por alguma Força Cósmica. Estamos aqui diante de um dos principais mecanismos do melodrama, um mecanismo tão poderoso que é usado, nem sempre de maneira sábia, há trezentos anos.

Na “Advertência” escrita para publicação, em 1994, o Autor confessa-se meio constrangido por oferecer ao público de hoje, principalmente aos jovens, uma história “tão fora de moda”. Ele não diz isto por achar que os sentimentos expressos no livro estão superados, mas por considerar que “os conflitos que, por causa da paixão, atormentam, aqui, os personagens, provavelmente não serão nem sequer entendidos pela geração formada por educadores que procuram fechar os olhos até para a realidade monstruosa do crime, contanto que não sejam forçados a admitir a verdade de qualquer norma moral.” E acha também que uma história tão apaixonada será esnobada “neste tempo de autores frios, lúcidos e impiedosos”. O autor é pessimista demais; “Fernando e Isaura” tem o carisma das grandes tragédias, e, com meia dúzia de bons atores, daria um excelente média-metragem.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

1267) As capas de Rosa (5.4.2007)



Estive folheando edições antigas dos livros de Guimarães Rosa em busca de ilustrações para um trabalho, e me dei conta do quanto a obra do escritor mineiro foi graficamente malbaratada nos últimos anos. Desde logo quero fazer a ressalva de que em 2006, ano do cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, e do sessentenário de Sagarana, a editora Nova Fronteira produziu edições de luxo caprichadíssimas, que ainda não adquiri por estar esperando um câmbio favorável. Espero que signifiquem uma espécie de “mea culpa” pelo empobrecimento gráfico que a Editora impôs à obra, depois que adquiriu seus direitos (que pertenciam à José Olympio).

As primeiras edições da Rosa, pela José Olympio, eram cheias de ilustrações feitas por artistas gráficos como Poty ou Luís Jardim, que trabalhavam em parceria com o autor. Desenhista hábil, Rosa fazia esboços das figuras que tinha em mente e as repassava para os artistas. Dava atenção especial a certos símbolos meio cabalísticos, meio astrológicos, que ele não explicava – apenas encomendava, e os artistas reproduziam. Em Primeiras Estórias, Rosa bolou um esquema que, pelo que eu me lembre, não tem similar na nossa literatura: o índice ilustrado, que aparece nas orelhas e no interior do livro. Cada um dos 21 contos do livro recebe uma ilustração horizontal que consta de uma série de pequenas figuras de pessoas animais, paisagens, etc., reproduzindo os aspectos distintivos de cada conto. Variantes destas ilustrações aparecem na capa e na contracapa, uma para cada um dos contos.

Rosa gostava de letras gregas, de símbolos matemáticos: o Grande Sertão: Veredas não se encerra pela palavra “FIM”, mas pelo símbolo gráfico do Infinito, o conhecido “oito deitado”. Tutaméia não tem ilustrações internas, a não ser algumas vinhetas gráficas padronizadas, mas sua capa é feita no mesmo espírito de Primeiras Estórias: uma colagem de pequenas figuras que, com alguma argúcia detetivesca, podemos ir aos poucos identificando como relativas aos contos do livro.

Depois que a obra de Rosa foi para a Nova Fronteira, o nível caiu assustadoramente. Preocupada em torná-la mais acessível aos leitores jovens (aos quais, invariavelmente, se atribui uma combinação de desinformação e amor ao clichê), os livros de Rosa adquiriram uma programação gráfica padronizada: capa branca, título e nome centralizados, e na parte superior uma foto colorida da paisagem sertaneja, o que faz os livros ficarem parecidos com um Guia 4 Rodas. A família, ao que parece, não reclamou, porque as vendas aumentaram. Mas se você achar num sebo, caro leitor, exemplares das edições da José Olympio, com as ilustrações de Poty ou Luís Jardim, entesoure-as. Elas representam pontos altos de nossa inventividade literária na direção de uma integração real entre texto e imagem, algo que poucos escritores tentaram – somente Rosa, Suassuna, Valêncio Xavier, e meia dúzia de outros.

1266) Grandes árvores do mundo (4.4.2007)


(Ténéré, 1961)

Sou um admirador da Natureza, mais com olhos de cientista do que de poeta. “Que belo crepúsculo!” exclamam as pessoas, com os olhos marejados de romantismo; e eu concordo. Como não ficar comovido? Fico pensando na quantidade de refrações e de sub-refrações que aqueles raios luminosos estão realizando entre camadas sucessivas de nuvens, de vapor rarefeito, de poluição atmosférica. É impossível que aquela combinação peculiar de obstáculos ópticos ocorra outra vez. Aquele crepúsculo que estou vendo jamais se repetirá.

O saite “As Dez Árvores Mais Magníficas do Mundo” (http://www.neatorama.com/2007/03/21/10-most-magnificent-trees-in-the-world/) produz uma sensação parecida. Se admiramos obras da engenharia (pirâmides, muralhas, templos) como não admirar uma coisa bela que brotou sozinha, sem prancheta, sem mestre-de-obras, sem licitação pública? Neste saite vemos fotografias de árvores como a sequóia “General Sherman” na Califórnia, a árvore mais volumosa do mundo (cerca de 1.500 metros cúbicos, 6 mil toneladas). Curiosamente, mais volumosa do que ela parece ser (mas não é, por não ser tão alta) a “Árbol del Tule”, um cipreste em Oaxaca (México) que parece (desculpem-me o antropocentrismo) um projeto a quatro mãos entre Gaudí e Santiago Calatrava. Também curioso é o “Gigante Trêmulo do Utah”, um único organismo vegetal composto de 47 mil caules muito finos que se espalham por 107 acres de terra; a foto em preto-e-branco, sob a neve, é de emoldurar e pendurar na parede.

Está aqui a famosa sequóia com uma abertura na base de seu tronco por onde passa um automóvel (na verdade, há quatro árvores assim na Califórnia). Tem a árvore-igreja de Allouville-Bellefosse, na França, em que uma capela foi construída num carvalho oco em 1669. A árvore foi morrendo aos poucos e as partes mortas sendo substituídas por próteses de madeira, a tal ponto que hoje não se sabe mais o que é natural ou artificial.

Não há limite para os prodígios da Natureza – nem para a estupidez humana. Em 1964 um estudante estava extraindo amostras de uma árvore, nos EUA, quando a sua broca quebrou dentro do tronco. Ele pediu autorização ao Serviço Florestal para cortar a árvore e recuperar a peça. Fê-lo. E aí descobriram, pelo exame dos anéis internos do tronco, que a árvore tinha 5 mil anos, e era provavelmente, naquela época, a árvore mais velha do mundo. E há o caso da “Árvore Solitária de Ténéré”, uma acácia situada no Saara nigeriano, que sobrevivia solitária na areia (a foto é impressionante) graças a raízes com 36 metros de extensão. Era a única árvore numa área de 400 km, e possuía dois troncos paralelos. Em 1959, um deles foi destruído pela colisão de um veículo, deixando apenas um toco; em 1973, um motorista líbio, embriagado, derrubou o tronco restante, que foi levado para o Museu Nacional da Nigéria, e substituído no local de origem por uma escultura em metal. Não precisa muito mais para desmoralizar a Humanidade.