sábado, 19 de setembro de 2009

1272) Borges e “O Justiceiro” (11.4.2007)



Um dos contos mais atuais de Jorge Luís Borges é “Deutsches Requiem” (no livro O Aleph). Nele, o nazismo é mostrado pelo lado de dentro, pelo ponto de vista de um cara que acredita que aquele pesadelo é o futuro do mundo. Otto Dietrich Zur Linde, o narrador, vê com euforia a ascensão do nazismo e sua expansão devastadora pela Europa. No final, quando o resto do mundo se ergue contra Hitler e o esmaga por todos os lados, ele ainda consegue ver nisto uma vitória. Suas palavras finais são: “Ameaça o mundo agora uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno”.

A monstruosidade da ideologia é reforçada, por contraste, pela beleza poética desta última frase, que encerra a mais altruísta das filosofias. Zur Linde exprime aquilo que Borges mais detestava e desprezava, mas o autor cede ao personagem sua melhor inspiração literária. Para quê? Para evitar a caricatura, mostrar que o Nazismo é uma doença mental que pode acometer a qualquer um. O nazismo veio para implantar o terror, a guerra, a loucura à mão armada. Veio para ameaçar o mundo com uma monstruosidade tão absurda e desmedida que para destruí-la, para torná-la inviável, foi preciso criar “um monstro ainda maior, e ainda mais monstro”. E o reino dos monstros começou de fato a imperar sobre a Terra.

Hitler afirmou certa vez: “Quem quiser viver é constrangido a matar. Martelo ou bigorna. Minha intenção é preparar o povo alemão para ser o martelo”. Esta frase estava (me parece óbvio) na memória de Borges quando ele compôs o fecho do seu conto. Zur Linde vai além de Hitler, pois percebe que a função do nazismo era trazer para o mundo A Lei do Martelo e da Bigorna, e para que isto acontecesse era indiferente qual dos dois a Alemanha viria a ser.

Na história em quadrinhos O Justiceiro, escrita pelo irlandês Garth Ennis, na última parte do episódio “Nascido para matar”, ambientado na Guerra do Vietnam, lemos a certa altura:

“Há uma grande Besta-Fera à solta no mundo dos homens. Ela despertou em tempos sombrios para enfrentar um terrível inimigo. Percorreu a Europa e o longínquo Pacífico, esmagando o Mal que encontrou pelo caminho. No entanto, quando foi vitoriosa, quando a perversidade da Cruz Gamada e do Sol Nascente teve fim, os guardiões da Besta-Fera julgaram por bem não devolvê-la ao seu sono. A Fera tem muitas cabeças, cada qual com um nome escrito: Lockheed, Bell, Monsanto, Dow, Grumman, Colt e muitos mais. E elas são muito famintas. Por isso, a Fera deve se alimentar... e, a cada geração, nosso país vai à guerra pra garantir seu sustento”. A Fera que nos livrou de Hitler está à solta, mas quem vai nos livrar da Fera?

1271) A escada do poder (10.4.2007)



(Wilson Mizner)

Sou um grande aprendedor, ou, na feliz expressão de Jessier Quirino, um “prestador de atenção”. Dou ouvidos a todo mundo e nunca me arrependi disto. 

Uma das pessoas a quem dou ouvidos de vez em quando (vemo-nos uma ou duas vezes por ano, se tanto) é um conhecido meu a quem chamarei ficticiamente Ascenso Seguro. Conheci-o no Baixo Leblon, por entre chopes cremosos e pizzas no palito. 

Ascenso tinha uma atuação incessante na área cultural, foi nomeado para um cargo qualquer do quinto escalão, projetou-se, apareceu na mídia, fez amizades, entrou na política, e hoje pontifica num escalão que aos meus olhos leigos deve ser segundo ou terceiro. 

Ascenso é solícito, é infatigável, e tem uma qualidade que o distingue em nosso ambiente cultural: está de bem com todo mundo, fala bem de todo mundo. Num meio famoso pela maledicência-pelas-costas, nunca o vi dizer que Fulano é burro ou que Fulana é feia. É o tipo do cara que ajudaria a levar o cavalo de madeira para dentro de Tróia, e que, depois de fechado o portão, contaria tudo aos troianos. 

“O segredo,” confidenciou-me ele meses atrás, numa madrugada repleta do Nova Capela, durante um cabrito-com-brócolis, “é imagem. O que você é, é problema seu, mas o que as pessoas vêem em você é problema da comunidade. É como no futebol. Quando um técnico lhe escala, não é porque gosta de você ou acha que você é um cara legal. É porque precisa de alguém para cobrir os avanços do lateral esquerdo, ou porque precisa de alguém para triangular na ponta e cruzar bolas na área”. 

“Ah, entendi,” falei eu. “A imagem da gente tem que passar duas coisas: potencial, e disponibilidade”. 

Ele retrucou: “Cara, você é muito inteligente, já podia estar em Brasília. Pois é isso mesmo. Mas tem outra coisa: você precisa olhar os dois lados da escada, o de cima e o de baixo. O grande erro dos caras é que eles só olham para cima, para os caras que estão nos degraus superiores, e que podem lhes dar uma chance. Tem que olhar para os degraus de baixo também. A humanidade se divide em dois grupos: os Figurões e os Figurantes. Não adianta de nada você estar de bem com os Figurões e ter uma multidão de Figurantes querendo botar terra no teu motor”. 

Vai daí que Ascenso Seguro tem uma atuação social irrepreensível. Todo dia no Natal e no meu aniversário recebo um cartão personalizado com abraços efusivos, e deduzo que o mesmo acontece com outras mil pessoas. 

Ascenso recorda os nomes dos meus filhos, os títulos de meus livros (pelo menos de alguns deles), e – devo ser justo – me trata com cortesia irrepreensível e uma simpatia sincera. Talvez porque tenha sido eu quem, num desses papos de mesa de bar, citou-lhe a frase de Wilson Mizner, famoso alpinista social norte-americano: “Trate bem as pessoas quando estiver subindo na vida, porque você vai encontrá-las de novo quando estiver descendo”. 

Ascenso gravou este dito a-ferro-em-brasa na memória, e desde então passou a me tratar melhor ainda.




1270) Poluição visual (8.4.2007)



Conversando com amigos paulistanos fiquei sabendo de uma façanha recente da prefeitura local. Estou vendendo pelo preço da fatura, portanto, se me equivocar em algum detalhe peço desculpas antecipadas ao burgomestre. Ao que parece, a administração municipal está trabalhando para reduzir a poluição visual na cidade. Ação que, em tese, eu subscrevo inteiramente. Hoje em dia a gente não pode andar na rua sem ser assaltado por uma profusão indescritível de placas, cartazes, displays, letreiros pintados, letreiros modelados, out-doors, o escambau. Marquises, fachadas, muros, paredes, postes, calçadas, onde quer que haja meio metro de espaço livre vai alguém e enche de “reclames”: ‘CHAVEIRO ENCANADOR ELETRICISTA 24 HS” – “ALISA-SE CABELO E FAZ ESCOVA” – ‘LANCHONETE NOSSA SENHORA APARECIDA XISBURGUER XISTUDO E PÃO NA CHAPA” – e assim por diante. Dá um livro.

Por que tanta propaganda? Principalmente pelo fato de que o brasileiro vive do pequeno comércio, dos pequenos serviços. Com o quê, aliás, eu simpatizo, porque detesto mercados monopolizados por meia-dúzia de companhias gigantescas. Já pensou se somente o MacDonald’s e o Bob’s tivessem licença para vender xistudo? O brasileiro é descolado, ativo, tem iniciativa, adora não ter patrão e fazer as coisas por si próprio. Vai daí, surge essa proliferação da mini-economia. O problema é que, quanto menor a bodega, maior a placa que ela precisa afixar para mostrar que existe. E não só maior, como pintada em tinta acrílica, com letras vermelhas e azuis sobre fundo amarelo berrante.

Proibir? Nem pensar. Padronizar tudo num só tipo de placa? Errado: parece coisa stalinista para facilitar a vida dos burocratas e deixar os usuários unanimemente invisíveis naquela mar de monotonia. Estabelecer critérios máximos de tamanho, colocação, etc.? Talvez, porque Dona Fulana tem direito de avisar aos passantes que faz bolos e tortas por encomenda, mas não precisa de seis metros de muro para dizer isto.

Enfim – soluções existem, basta haver inteligência, bom senso e boa vontade de parte a parte. (Por outro lado, pense em três coisas difíceis de se encontrar hoje em dia!) Mas o prefeito paulistano inventou uma solução radical: mandou proibir placas de qualquer natureza, inclusive as placas e cartazes nas portas do teatro. E a classe teatral está se insurgindo contra esta medida estapafúrdia. Porque uma coisa é a Pirelli ou a Ambev ocupar 150 outdoors pela cidade afora anunciando seus produtos, e outra coisa é um teatro, que só funciona ali naquele ponto, colocar em sua própria porta os cartazes das peças que estão ou estarão sendo em breve oferecidas ao público. A coisa mais difícil do mundo é administrar interesses conflitantes. Ser síndico é mais difícil do que reger uma ópera. Tiro meu chapéu para quem encara uma tarefa tão difícil, mas será que não dá para resolver essas coisas sem recorrer à Solução Herodes?

1269) Estatização vs. Privatização (7.4.2007)



Não vou entrar no mérito desta questão, porque não é muito a minha praia, assim como não é a praia de 99% dos brasileiros. Ouço o barulho da briga, mas como ocorre no andar de cima fica difícil de escolher por quem torcer, até porque tudo que a gente escuta são os insultos que cada um dispara na direção do outro. Já percebi que em questões altamente polêmicas cada um dos oponentes não está discutindo com o outro, mas com a Caricatura do Outro. Está olhando para o outro e enxergando apenas aquela meia-dúzia de traços característicos do outro, exagerados desproporcionalmente, inchados, deformados, criando uma figura ao mesmo tempo muito parecida e muito diferente da verdadeira fisionomia do Outro.

É isso que acontece, por causa de nosso arrebatamento emocional e de nossa formação intelectual precária, quando vamos discutir qualquer questão um pouco mais complexa. Evolucionismo vc. Criacionismo. Brecht vs. Stanislawski. Poesia Praxis vs. Poesia Concreta. Armorialismo vs. Tropicalismo. Estou colocando apenas algumas polêmicas famosas que ocorreram ou ainda ocorrem em diversos campos, e, mais uma vez, não entro do mérito de quem está certo ou quem está errado. O que percebo é a retórica que acompanha todas as discussões.

Para os partidários da Privatização, o Estado é um polvo gigante e obeso que oprime o cidadão, tiraniza seu cotidiano, restringe sua liberdade, impõe-lhe produtos padronizados e de má qualidade, é incapaz de gerir com competência os milhares de negócios que arrebatou às mãos indefesas da iniciativa privada, gasta tudo que tem para sustentar uma burocracia proliferante e ociosa, abre mil canais clandestinos para corrupção, desvio de verbas e suborno, aumenta impostos sem dar nada em troca, suga todas as riquezas do País como um sumidouro sem fundo.

Para os partidários da Estatização, a iniciativa privada, ou o Mercado, é uma selva sem lei, onde só vence o mais forte, mais rico ou mais desonesto, um cassino desenfreado de enriquecimento às custas do consumidor, uma luta desleal em que as grandes redes e os monopólios esmagam as pequenas iniciativas individuais, um jogo de cartas marcadas em que o país é loteado entre meia dúzia de tubarões insaciáveis, uma disputa feroz que, sem a mediação do Estado, nada mais é do que uma guerra de gangues para ver quem enriquece mais rapidamente e sai correndo para os paraísos fiscais, deixando a conta para ser paga por quem vier depois.

Isto é o que cada um diz do outro. Isto é o que escuto nos balões de diálogo no andar de cima, por entre trompaços, pescoções, derrubada de mobília, quebra-quebra de pratos. Qual dos dois tem razão? Qual dos dois tem razão em qualquer briga, em qualquer polêmica? Difícil de dizer, porque eles mesmos não sabem. Não estão brigando com o Outro. Estão brigando com a Caricatura do Outro, como o Monstro do Outro, com o medo que sentem do Outro.

1268) “Fernando e Isaura” (6.4.2007)



O primeiro romance de Ariano Suassuna, de 1956, só foi publicado 38 anos depois. O autor o considerou um “exercício de juventude”, um afiar de lâminas para a batalha mais séria que viria a seguir, o Romance d’A Pedra do Reino, elaborado entre 1958 e 1970. Comparado a este, Fernando e Isaura é um trabalho menor, uma noveleta sem a profundidade ou a amplitude do outro livro, o qual, escrito depois, foi publicado primeiro, e tornou-se o termo de comparação para tudo que o autor viesse a publicar em seguida.

Fernando e Isaura é um conto de amor impossível, amor fadado à tragédia desde o começo. A ação se passa entre Alagoas e Pernambuco. Fernando é um rapaz órfão, criado pelo tio, Marcos, um fazendeiro viúvo. Um dia, numa viagem, ele se mete numa briga, é ferido e passa dois dias com febre, delirando. Quem ajuda a cuidar dele é uma moça dessa cidade, Isaura. Algum tempo depois, é justamente esta Isaura que Marcos pede em casamento, e como não pode ir pessoalmente, encarrega o sobrinho, que ele ama como um filho, de fazer o casamento em seu lugar, por procuração. Dias antes da data do casamento, Marcos encontra por acaso Isaura, numa cidade próxima. Ele não sabe que ela é a noiva do tio, e apaixona-se por ela. Ela não sabe quem é ele, apenas reconhece o rapaz de quem tratara, e por quem se apaixonara desde então. Os dois são fulminados por uma fatídica paixão à primeira vista. Só depois que passam uma noite juntos descobrem suas verdadeiras identidades, e se desesperam.

Seguem-se outras peripécias, que não revelarei para não estragar a leitura (o livro foi publicado pelas Edições Bagaço, de Recife). Como as histórias baseadas nas lendas medievais, o Acaso e o Destino têm um papel importante na ação. As coincidências e os equívocos de identidade acontecem de maneira tão inesperada que aquilo, pensa o leitor, não pode deixar de ser manobrado por alguma Força Cósmica. Estamos aqui diante de um dos principais mecanismos do melodrama, um mecanismo tão poderoso que é usado, nem sempre de maneira sábia, há trezentos anos.

Na “Advertência” escrita para publicação, em 1994, o Autor confessa-se meio constrangido por oferecer ao público de hoje, principalmente aos jovens, uma história “tão fora de moda”. Ele não diz isto por achar que os sentimentos expressos no livro estão superados, mas por considerar que “os conflitos que, por causa da paixão, atormentam, aqui, os personagens, provavelmente não serão nem sequer entendidos pela geração formada por educadores que procuram fechar os olhos até para a realidade monstruosa do crime, contanto que não sejam forçados a admitir a verdade de qualquer norma moral.” E acha também que uma história tão apaixonada será esnobada “neste tempo de autores frios, lúcidos e impiedosos”. O autor é pessimista demais; “Fernando e Isaura” tem o carisma das grandes tragédias, e, com meia dúzia de bons atores, daria um excelente média-metragem.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

1267) As capas de Rosa (5.4.2007)



Estive folheando edições antigas dos livros de Guimarães Rosa em busca de ilustrações para um trabalho, e me dei conta do quanto a obra do escritor mineiro foi graficamente malbaratada nos últimos anos. Desde logo quero fazer a ressalva de que em 2006, ano do cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, e do sessentenário de Sagarana, a editora Nova Fronteira produziu edições de luxo caprichadíssimas, que ainda não adquiri por estar esperando um câmbio favorável. Espero que signifiquem uma espécie de “mea culpa” pelo empobrecimento gráfico que a Editora impôs à obra, depois que adquiriu seus direitos (que pertenciam à José Olympio).

As primeiras edições da Rosa, pela José Olympio, eram cheias de ilustrações feitas por artistas gráficos como Poty ou Luís Jardim, que trabalhavam em parceria com o autor. Desenhista hábil, Rosa fazia esboços das figuras que tinha em mente e as repassava para os artistas. Dava atenção especial a certos símbolos meio cabalísticos, meio astrológicos, que ele não explicava – apenas encomendava, e os artistas reproduziam. Em Primeiras Estórias, Rosa bolou um esquema que, pelo que eu me lembre, não tem similar na nossa literatura: o índice ilustrado, que aparece nas orelhas e no interior do livro. Cada um dos 21 contos do livro recebe uma ilustração horizontal que consta de uma série de pequenas figuras de pessoas animais, paisagens, etc., reproduzindo os aspectos distintivos de cada conto. Variantes destas ilustrações aparecem na capa e na contracapa, uma para cada um dos contos.

Rosa gostava de letras gregas, de símbolos matemáticos: o Grande Sertão: Veredas não se encerra pela palavra “FIM”, mas pelo símbolo gráfico do Infinito, o conhecido “oito deitado”. Tutaméia não tem ilustrações internas, a não ser algumas vinhetas gráficas padronizadas, mas sua capa é feita no mesmo espírito de Primeiras Estórias: uma colagem de pequenas figuras que, com alguma argúcia detetivesca, podemos ir aos poucos identificando como relativas aos contos do livro.

Depois que a obra de Rosa foi para a Nova Fronteira, o nível caiu assustadoramente. Preocupada em torná-la mais acessível aos leitores jovens (aos quais, invariavelmente, se atribui uma combinação de desinformação e amor ao clichê), os livros de Rosa adquiriram uma programação gráfica padronizada: capa branca, título e nome centralizados, e na parte superior uma foto colorida da paisagem sertaneja, o que faz os livros ficarem parecidos com um Guia 4 Rodas. A família, ao que parece, não reclamou, porque as vendas aumentaram. Mas se você achar num sebo, caro leitor, exemplares das edições da José Olympio, com as ilustrações de Poty ou Luís Jardim, entesoure-as. Elas representam pontos altos de nossa inventividade literária na direção de uma integração real entre texto e imagem, algo que poucos escritores tentaram – somente Rosa, Suassuna, Valêncio Xavier, e meia dúzia de outros.

1266) Grandes árvores do mundo (4.4.2007)


(Ténéré, 1961)

Sou um admirador da Natureza, mais com olhos de cientista do que de poeta. “Que belo crepúsculo!” exclamam as pessoas, com os olhos marejados de romantismo; e eu concordo. Como não ficar comovido? Fico pensando na quantidade de refrações e de sub-refrações que aqueles raios luminosos estão realizando entre camadas sucessivas de nuvens, de vapor rarefeito, de poluição atmosférica. É impossível que aquela combinação peculiar de obstáculos ópticos ocorra outra vez. Aquele crepúsculo que estou vendo jamais se repetirá.

O saite “As Dez Árvores Mais Magníficas do Mundo” (http://www.neatorama.com/2007/03/21/10-most-magnificent-trees-in-the-world/) produz uma sensação parecida. Se admiramos obras da engenharia (pirâmides, muralhas, templos) como não admirar uma coisa bela que brotou sozinha, sem prancheta, sem mestre-de-obras, sem licitação pública? Neste saite vemos fotografias de árvores como a sequóia “General Sherman” na Califórnia, a árvore mais volumosa do mundo (cerca de 1.500 metros cúbicos, 6 mil toneladas). Curiosamente, mais volumosa do que ela parece ser (mas não é, por não ser tão alta) a “Árbol del Tule”, um cipreste em Oaxaca (México) que parece (desculpem-me o antropocentrismo) um projeto a quatro mãos entre Gaudí e Santiago Calatrava. Também curioso é o “Gigante Trêmulo do Utah”, um único organismo vegetal composto de 47 mil caules muito finos que se espalham por 107 acres de terra; a foto em preto-e-branco, sob a neve, é de emoldurar e pendurar na parede.

Está aqui a famosa sequóia com uma abertura na base de seu tronco por onde passa um automóvel (na verdade, há quatro árvores assim na Califórnia). Tem a árvore-igreja de Allouville-Bellefosse, na França, em que uma capela foi construída num carvalho oco em 1669. A árvore foi morrendo aos poucos e as partes mortas sendo substituídas por próteses de madeira, a tal ponto que hoje não se sabe mais o que é natural ou artificial.

Não há limite para os prodígios da Natureza – nem para a estupidez humana. Em 1964 um estudante estava extraindo amostras de uma árvore, nos EUA, quando a sua broca quebrou dentro do tronco. Ele pediu autorização ao Serviço Florestal para cortar a árvore e recuperar a peça. Fê-lo. E aí descobriram, pelo exame dos anéis internos do tronco, que a árvore tinha 5 mil anos, e era provavelmente, naquela época, a árvore mais velha do mundo. E há o caso da “Árvore Solitária de Ténéré”, uma acácia situada no Saara nigeriano, que sobrevivia solitária na areia (a foto é impressionante) graças a raízes com 36 metros de extensão. Era a única árvore numa área de 400 km, e possuía dois troncos paralelos. Em 1959, um deles foi destruído pela colisão de um veículo, deixando apenas um toco; em 1973, um motorista líbio, embriagado, derrubou o tronco restante, que foi levado para o Museu Nacional da Nigéria, e substituído no local de origem por uma escultura em metal. Não precisa muito mais para desmoralizar a Humanidade.

1265) Do cangaceiro ao traficante (3.4.2007)



Vi na TV uma entrevista com MV Bill, “rapper” que realizou documentários em vídeo como Falcão: Meninos do Tráfico, o qual foi exibido no “Fantástico” e provocou grande polêmica. A certa altura, Bill tocou no problema do que ele chama de “invisibilidade” do adolescente negro e pobre. Numa época em que os garotos começam a tornar-se homens, a definir sua personalidade, eles percebem que não existem. Ninguém olha para eles, ninguém se dá conta de sua presença – porque eles são negros e pobres. Só perdem essa invisibilidade (segundo Bill) quando pegam numa arma Um sujeito com um arma na mão todo mundo enxerga, todo mundo respeita.

Isto me lembrou um trecho do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, no Folheto LXXIX, “O Emissário do Cordão Encarnado”, no qual Quaderna presencia o debate político-ideológico entre Adalberto Coura, o esquerdista romântico, e Arésio Garcia-Barretto, o individualista cínico e violento. Diz Adalberto que os rapazes sertanejos entram para o Cangaço sabendo que irão morrer muito cedo, mas achando que é preferível uma vida intensa com uma morte prematura do que uma vida longa mas cheia de humilhações, e sem sentido.

Diz Adalberto: “Por isso, não se importa de viver perseguido como um cachorro mordido. Sabe que esse é o preço que terá que pagar para poder possuir mulheres com as quais, antes, não poderia nem sonhar, as filhas de gente poderosa, lindas e orgulhosas, que passeavam os olhos por ele sem nem ao menos o avistarem, como se ele não existisse, e que agora o vêem, com espanto, terror e perturbação, vestido com sua Armadura de couro e com as insígnias de prata de sua realeza, aparecendo diante delas não mais como um ser ignorado e desprezado, mas como o temeroso Senhor de sua honra e de seu destino, o Emissário de uma vida cruel, selvagem, errante e guerreira, fascinadora e terrificante”.

Não pode haver descrição melhor para o que acontece com esses garotos de Morro que aos dezesseis anos já estão cobertos de colares de ouro e roupas importadas, com duas pistolas enfiadas no cinto e um AR-15 a tiracolo, desfilando no interior da favela como se fossem Reis. Sabem que vão viver pouco, mas não ligam. Estão vivendo muito.

Aqui no Nordeste celebramos e endeusamos os Cangaceiros porque eles são para nós os símbolos de uma vida livre e guerreira, de uma ruptura e de um inconformismo que, mesmo não tendo pretensões revolucionárias de mudar a sociedade (que algumas obras de arte lhes atribuem, projetando neles uma ideologia que é só do autor), romperam com a vida de servilismo e exploração, revoltaram-se contra um destino que lhes era imposto. O que admiramos neles não são os atos que praticam, é a coragem de terem deixado de praticar o que praticavam antes, e que, apesar de humilhante, era mais seguro. Como podemos, então, estranhar que algumas pessoas das favelas (não todas, nem muitas) façam desses novos cangaceiros os seus ídolos?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

1264) Ariano Suassuna e Ray Bradbury (1.4.2007)




Não é brincadeira minha. Existe algo em comum entre o paraibano nascido em 1927 e o norte-americano nascido em 1920. Ambos criaram uma paisagem espaço-temporal própria que se identifica com sua própria infância, e ambientaram nela a parte mais emotiva e autobiográfica de sua obra. Nenhum dos dois é um saudosista que viva do Passado; ambos, apesar da idade, são hoje indivíduos ativos, lúcidos, e mergulhados nas lutas culturais e políticas do momento presente, em seus respectivos países. Mas na obra de ambos a infância e a memória têm uma importância crucial.

Bradbury passou a infância, nos anos da Grande Depressão, na cidadezinha em que nasceu: Waukegan (Illinois), um vilarejo do Meio Oeste. Quando tinha 14 anos seus pais se mudaram para Los Angeles. Ali ele se tornou escritor profissional e roteirista de Hollywood, mas em seus livros retornaria repetidamente para o ambiente de sua infância, onde situou alguns dos seus livros mais poéticos e imaginativos, como O País de Outubro (1955), O Vinho da Alegria (1957) e Algo sinistro vem por aí (1962). O ambiente da cidadezinha do interior é magicamente reconstituído e poetizado. Lá se misturam a excitação pelas descobertas da adolescência e o terror ao entrar em contato com os perigos do mundo. É de se notar a importância que tem na obra de Bradbury o “carnival”, que não é carnaval: é uma instituição tipicamente norte-americana, uma mistura de circo e de parque-de-diversões ambulante, cheio de brinquedos, prodígios e criaturas extraordinárias.

Ariano passou sua infância em Taperoá, até se mudar para Recife, onde mora. Foi numa Taperoá mítica, poetizada, que ele situou suas obras mais importantes, entre elas A Pedra do Reino. O Circo tem uma grande importância na formação da visão-do-mundo do autor e de seus personagens, como Quaderna. E nos folhetins em que a infância deste é recontada (O Rei Degolado e As Infâncias de Quaderna), a descoberta das belezas da vida (as caçadas, os cantadores, os folhetos de cordel, o teatro de mamulengos, as cavalhadas sertanejas) se dá juntamente com a descoberta da violência humana (as guerras políticas da Paraíba) e da tragédia cósmica (a Morte Caetana, mulher que se transfigura em Onça quando chega a hora de arrebatar as vidas humanas).

O romance mais importante de Bradbury, Fahrenheit 451 (1953) é, involuntariamente, uma homenagem ao Romanceiro Popular Nordestino, que Ariano sempre defendeu e sempre cultivou. Numa sociedade totalitária do futuro, onde a TV é obrigatória, os bombeiros são encarregados de queimar todos os livros. Os subversivos desse tempo são indivíduos que, para não serem presos por possuirem esses objetos proibidos, resolvem decorá-los, preservá-los na memória. (Nesse mundo, talvez Bradbury quisesse decorar Moby Dick e Ariano Os Sertões.) Não pode haver homenagem mais poética aos poetas da Tradição, ao Romanceiro, às cantigas antigas, às Literaturas da Voz.


1263) Nós, os paulistas (31.3.2007)




Em seu saboroso e enriquecedor livro Tropicalista Lenta Luta Tom Zé afirma a certa altura uma coisa que sempre me deixou, se não de cabelo em pé, pelo menos com a pulga atrás da orelha. Diz ele à pag. 97: 

“Outro paulista, Pedro Taques, historiador, hoje nome de estrada enganjenta, disse em Nobiliarquia Paulista que o caboclo nordestino descende dos primeiros bandeirantes de São Paulo, que chegaram ao Nordeste e preservaram a fibra e a vigilância moral justamente graças a esta solidão desamparada de migrantes. Ao contrário dos que, cá no Sul, degeneraram em ‘cruzamentos’ e maus costumes de uma vida cortesã”.

Apesar de ser basicamente um elogio, sempre li isto meio com o pé atrás. Parece coisa de baiano, dizer que nós paraibanos somos, no fundo, um bando de paulistas. 

Foi necessária a intervenção do carioca Euclides da Cunha (nascido, para ser escrupuloso, em Cantagalo) para confirmar esta teoria migratória em “O Homem”, a parte intermédia de Os Sertões, onde a certa altura ele diz:

“Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamelucos audazes. O paulista – e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das Bandeiras...”

A verdade é que o Rio São Francisco foi a vagarosa avenida que ao longo de séculos fez o escoamento destes aventureiros rumo ao Nordeste. Uns vinham em busca de ouro ou esmeraldas. Outros, mais afeitos aos livros de aventuras, vinham em busca de cidades como o Eldorado. Outros queriam apenas o que tanta gente prefere ter: uma vida livre, sem prestar contas a Seu Ninguém, e nas horas de aperto contando apenas consigo mesmo. 

Foram se fixando no vale do São Francisco, subiram, cruzaram o rio, cruzaram a fictícia fronteira entre o noroeste da Bahia e o sul do Piauí, derivaram na direção dos altos sertões do Cariri cearense, e dos extremos da Paraíba e de Pernambuco.

Criaram aqui uma civilização inteira, erigiram fazendas, mataram índios e onças. Um belo dia, parou à sua porta uma charrete e dela desceu um senhor de terno preto com uma pasta na mão. Era o fiscal do Governo, que vinha cobrar os impostos. “Governo? Que Governo?” exclamaram os “paulistas”. “Quem inventou isto aqui foi a gente”. 

Uma das principais tarefas civilizatórias do Brasil para o século 21 será integrar estas duas civilizações: a que veio por fora, em navios, atracando no porto e fundando capitais de Estado, e a que veio por dentro, desbravando o mato a facão, plantando algodão e criando gado. Todos são brasileiros. Problema vai ser achar um Brasil que atenda a todos.