sexta-feira, 11 de setembro de 2009

1258) Resistência Cultural (25.3.2007)




(Monteiro Lobato)


Às vezes me acontece estar numa mesa-redonda ou coisa parecida e alguém me apresentar assim: “E agora vamos passar a palavra a Braulio Tavares, escritor, compositor, um batalhador da resistência cultural nordestina”. Sei que é um elogio, e que se aplica a mim, até certo ponto; mas gostaria de ir agora um pouco além deste “certo ponto”.

“Resistência” lembra a Resistência Francesa, do tempo da ocupação da França pelos nazistas, na II Guerra Mundial. Indivíduos heróicos, agindo na clandestinidade, lutando contra um ocupante poderoso e bem armado, mas conseguindo atingi-lo de vez em quando por meio de táticas de guerrilha. Lembra também a luta atual de alguns grupos de iraquianos contra a presença do exército americano no país. (Nem todos, é claro. Grande parte não passa de gangues religiosas aproveitando o caos da guerra para liquidar os membros das gangues rivais.) A “resistência” é um movimento que cerra fileiras em torno de um território qualquer que está sendo invadido, e tentar rechaçar esta invasão.

Até aí, tudo bem. Se o nosso time está sendo atacado, precisamos de uma zaga eficiente. A questão é que, quando se trata de cultura nordestina, precisamos de muito mais do que meia-dúzia de zagueiros e volantes rebatendo bolas para a lateral. Precisamos de um meio-de-campo que receba essas bolas e as repasse para um ataque. Ou seja: não basta resistir ao lixo cultural que vem de fora, precisamos exportar o nosso Não-Lixo cultural, invadir os espaços alheios, proclamar a alta qualidade do que fazemos. A melhor defesa é o ataque.

Caetano Veloso, numa canção famosa, disse: “Sejamos imperialistas!” Como tudo que o baiano diz, tem uma ambigüidade crítica muito útil. Criticamos o imperialismo cultural que quer invadir nossa cultura, mas precisamos reconhecer que, se tivéssemos o mesmo poderio econômico deles, faríamos a mesma coisa. Então, tentemos fazê-la mesmo sem ter esse poderio. Sejamos imperialistas. Vamos fazer os filmes de Vladimir Carvalho passarem nos shoppings da Califórnia, vamos promover tributos a Jackson do Pandeiro em Paris, vamos obrigar “The New Yorker” a dar matéria de capa sobre Augusto dos Anjos. Como? Não sei, mas se a Bahia e Pernambuco fazem isso com seus figurões, então não é impossível fazê-lo.

Monteiro Lobato também afirmou: "Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir". Lembro isto porque falar apenas de “resistência” acaba tendo uma conotação imobilista, conservadora. Temos que resistir às mudanças impostas de fora, e nesse impulso acabamos resistindo a qualquer mudança, acabamos imobilizando e fossilizando nossa própria cultura. Mas se somos um exército que invade o território alheio não podemos ficar imóveis, temos que nos expor ao imprevisível, ao imponderável, temos que nos adaptar, nos modificar, se quisermos sobreviver. A melhor maneira de resistir à expansão alheia é expandir-se.

1257) É proibido proibir (24.3.2007)



Entre as pichações de paredes de maio de 1968, no movimento estudantil-operário que botou Paris de pernas para o ar, uma das mais famosas é: “É proibido proibir”. Ela deu origem a uma canção de Caetano Veloso (“A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão...”) que levou uma tremenda vaia num festival de TV, não por causa da música em si, mas porque Caetano inventou de interpretá-la no palco vestindo roupas de plástico e acompanhado pelas guitarras elétricas que na época estavam provocando uma polêmica interminável na MPB. Reza a lenda que foi Guilherme Araújo, espertíssimo farejador de modismos (que faleceu dias atrás), quem praticamente obrigou Caetano a compor uma música usando este slogan, que, ele previa, ia pegar mais do que chiclete em cadeira de cinema.

Já vi muita gente questionando esta frase. Um professor de Lógica Formal tentou me demonstrar o quanto ela é absurda, visto ser uma frase que nega a si mesma num “loop” recursivo, equivalente ao de “Esta frase é uma mentira”. Ariano Suassuna se insurgiu, em mais de uma aula-espetáculo, contra a permissividade moral que ela implica: “Então quer dizer que se um sujeito quiser estuprar e matar uma criança nós não podemos proibi-lo? Eu, hein!” Um amigo meu, com vocação para professor de Melancolia, afirmou: “Dizem isto porque têm vinte anos e são radicais. Quando tiverem quarenta, dirão que É Coibido Coibir”.

Eu vejo a frase de um modo diferente. Levá-la ao pé da letra, claro, nem pensar. O verdadeiro libertário é contra as proibições, mas sabe que alguma coisa pode ser proibida. O que a frase significava para os rapazes e moças daquele tempo era “Você não pode me proibir todas essas coisas que vive me proibindo”. O “você” em alguns casos eram os pais, em outros casos o governo, e por extensão quem quer que tentasse nos impor uma proibição que sabíamos injusta. Não só injusta como eticamente comprometida. Pais que enchiam diariamente a cara de uísque proibiam os filhos de beber ou de experimentar maconha. A frase tinha então como subtexto: “Você não pode me proibir uma coisa que permite a si mesmo”. Claro que mesmo assim o pai poderia ter seus argumentos para justificar a proibição, mas naquele tempo a maioria dos pais não argumentava com os filhos. “Tá proibido e tamos conversados”. Se o filho recalcitrasse, tome bofete. Por isto, haja barricada nos bulevares, haja carro incendiado e paralelepípedo na testa dos gendarmes.

“É proibido proibir” é uma dessas frases que não exprimem uma verdade lógica. Exprime o dilaceramento emocional de quem experimenta uma situação-limite da qual só consegue se evadir pela ruptura de conceitos, pelo estilhaçamento da razão, pela violentação da lógica, pela afirmação paradoxal e contraditória de uma coisa impossível. Uma afirmação que traz em si uma crispação emocional de revolta e inconformismo, imediatamente reconhecível a quem já tenha se sentido vítima de uma injustiça.

1256) Ern Malley (23.3.2007)



Desde que assisti Verdades e Mentiras de Orson Welles (“F for Fake”), há quase trinta anos, passei a encarar de maneira diferente o falsificador de obras de arte. Ele difere do mero plagiário (que tenta fazer passar como sua a obra de alguém) ou o copista (que reproduz um quadro alheio e tenta vendê-lo como original). Naquele filme, Welles nos apresentava Elmyr de Hory, um sujeito capaz de pintar um Modigliani inexistente tão bem quanto Modigliani o teria feito. Isto é crime? É arte? É metacrítica? Cartas para a redação.

A fraude literária é um capítulo desse fascinante romance. Ela ocorre quando alguém inventa um autor inexistente, escreve obras e as divulga, atribuindo-as ao “fantasma”. Um caso famoso ocorreu na Austrália em 1943, em torno do escritor imaginário Ern Malley. Um belo dia, o editor da revista literária “Angry Penguins” recebeu alguns poemas enviados por uma leitora. Os poemas, meio vanguardistas, tinham sido escritos pelo irmão dela, falecido aos 25 anos. Max Harris, o editor, adorou os poemas e fez com eles uma edição especial da revista. Acabou sendo processado e preso porque alguns poemas tinham conteúdo obsceno. Mas o pior foi quando descobriu que “Ern Malley”, o falecido poeta, não existia, bem como sua “irmã”. Tudo era uma fraude concebida por dois desafetos literários seus, James McAuley e Harold Stewart.

Li uma resenha do livro (The Ern Malley Affair, de Michael Heyward) em que o episódio é reconstituído. É uma história de fofocas e picuinhas, típica da feira de vaidades que cerca a Poesia, país onde não circula dinheiro e onde a única moeda é o prestígio. Ou talvez fosse melhor dizer que a Poesia é um país onde não há dinheiro e cada poema é um cheque, que vale pela assinatura de quem o oferece. Cabe ao interlocutor decidir, pela assinatura, se o cara tem saldo na conta ou não.

Alguns episódios colaterais do caso são instrutivos. Numa universidade um professor de literatura colocou, lado a lado, um poema de “Ern Malley” e um do respeitado poeta inglês Geoffrey Hill, perguntando qual dos dois era a fraude. Deu meio a meio. Outro aspecto interessante destacado na resenha é que o livro de Hayward traz longos relatos das discussões, no tribunal, em que respeitáveis juristas analisavam os poemas de “Ern Malley” para que a Corte decidisse se eram obscenos ou não, e se eram autênticos ou não. Segundo o resenhador, “é uma redução-ao-absurdo da desconstrução literária”. Fiquei com vontade de encomendar o livro só para ler esta parte.

Quem decide se um verso é Poesia ou não? Se um verso de alguém é atribuído a outra pessoa isto pode torná-lo melhor, ou pior? Qual é a diferença entre uma fraude e um heterônimo? Um verso medíocre pode ser lido diferentemente, se descobrirmos que foi Drummond quem o escreveu? O monólogo de Hamlet torna-se literariamente inferior quando descobrimos que quem o escreveu foi um tal de Shakespeare? Cartas para a redação.

1255) “Menino de Engenho” (22.3.2007)



Menino de Engenho é o romance rural que me revelou, como a muitos brasileiros urbanóides, o cheiro doce-azedo dos canaviais, os bois mortos descendo na enxurrada da cheia, o estralejar do fogo nas taquaras, a senzala abafadiça com suas avós centenárias, o carneirinho arreado e selado para o sinhôzinho cavalgar, o escravo gemendo no tronco, Antonio Silvino de pé no terreiro com o bando perfilado às suas costas, as crueldades e as doçuras das sinhás da Casa Grande, as safadezas dos meninos com as negrotas pelo meio do mato. Devemos lembrar, também, que a adaptação de Walter Lima Jr. foi um dos filmes mais equilibrados e autênticos do Cinema Novo, e só não foi mais valorizado na época porque não era um filme sobre a Revolução, sobre o levante armado dos camponeses, e não se parecia em nada com o cinema de vanguarda europeu. (Na melhor das hipóteses, parecia um roteiro memorialista de Fellini filmado por Kurosawa.)

Dizem os críticos que quem revolucionou a cabeça do jornalista Zé Lins foi seu encontro com Gilberto Freyre. Este o convenceu de que era possível fazer romance sem pensar na literatura européia, usando apenas duas armas: a língua brasileira e a vida brasileira. Bastava isto para criar uma Literatura, e o romance regionalista da década de 1930 foi a melhor prova. Muita gente achou, depois do sucesso de Zé Lins, que tinha de escrever como ele e tinha que recordar coisas parecidas com as que ele recordava. Equívoco mais comum do que se pensa. Hoje está cheio de gente achando que para ser bom escritor tem que escrever como Jorge Luís Borges ou Guimarães Rosa. Zé Lins descobriu que já tinha em si todo o necessário para fazer grande literatura, que bastava olhar para dentro e narrar para fora. Daí em diante, foi um livro por ano, cada qual melhor do que o outro. Pelo menos metade de sua longa obra é de nível muito alto, ainda hoje.

Menino de Engenho, curiosamente, começa com uma cena de melodrama urbano (marido ciumento mata a mulher a tiros) e esta tragédia não tem prosseguimento na narrativa. O filho único é mandado para morar com o avô, e aos poucos ficamos sabendo que o pai era mentalmente instável e estava agora num manicômio. Como é de se esperar, ninguém fala as coisas às claras para o menino, e toda sua infância se passa cobrindo com camadas e mais camadas de experiências novas e explicações novas este fato central misterioso, cuja única justificativa é mais misteriosa ainda: a Loucura.

Não fosse esse núcleo doloroso, Menino de Engenho talvez fosse apenas um romance bucólico de exaltação às simplicidades e encantos do mundo rural. Do jeito que é, é uma história sofrida, onde cada experiência nova faz atrito na sensibilidade exposta do garoto, que tem um olho infalível para as violências, as crueldades, as coisas que ninguém explica. É um narrador de romance psicológico contracenando com personagens e ambientes de um romance de costumes regionalistas

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

1254) O poço artesiano (21.3.2007)




(Luzes da Cidade)

Reza a lenda que, durante as filmagens de Luzes da Cidade, Charles Chaplin empancou num detalhe não previsto no roteiro. A história tinha que aproximar o Vagabundo, seu clássico personagem, de uma florista cega, que deveria confundi-lo com um sujeito rico. Chaplin foi filmando até chegar à cena do primeiro encontro dos dois, e aí parou. 

Como fazer (ainda mais num filme mudo) com que a cega confundisse o Vagabundo com um ricaço? Todo dia a equipe ia para o estúdio e ficava esperando. Em vez de filmar as cenas seguintes, como se faria hoje, o diretor decidiu que a filmagem só continuaria depois que aquela cena específica fosse feita.

Acabou sendo, depois de semanas de espera e milhares de dólares gastos em vão. Chaplin pensou num engarrafamento de trânsito. O Vagabundo, para chegar à calçada passaria por dentro de uma limusine cujo banco traseiro estava vazio. Ele abria a porta, entrava, passava por dentro do carro, saía do lado oposto, batia a porta e chegava à calçada. 

A florista cega percebia apenas que aquele homem de voz macia que conversava com ela tinha saltado de dentro de um carro elegante. (Podemos supor que a cega sabe distinguir, pelo barulho, uma limusine de uma fubica).

O que quero comentar não é a cena em si, mas durante quanto tempo podemos bater numa mesma tecla, à espera da solução de um problema. Isso é discutido muitas vezes em Administração com a metáfora do poço artesiano. Você sabe que existe água naquela área. Perfura cinco metros, e nada. Perfura dez metros, e nada. Vinte, e nada. O que é mais sensato: continuar perfurando ali, ou começar outro poço um pouco mais adiante? 

Isto se liga ao que discuti recentemente no artigo “A morte quântica de James Kim” (13 de dezembro), em que um sujeito, preso com a família numa tempestade de neve, não sabia se ficava abrigado no carro ou se saía em busca de socorro. Saiu, morreu de frio, e o socorro encontrou o carro, salvando a família. Mas como ele poderia saber? Estava cavando no escuro.

No caso de Chaplin, tudo tem a ver com a teimosia do diretor e a fortuna de que o estúdio dispõe. Alguns empreendimentos artísticos estão dando prejuízo até hoje, como o disco do Guns’n’Roses Chinese Democracy, no qual já se gastaram milhões de dólares, e que já passou para a história como O Disco Mais Caro do Rock – e nunca foi lançado, porque até hoje (2007) não ficou pronto. Os músicos brigam entre si, brigam com os produtores, os produtores com o estúdio, o estúdio com a imprensa, os dólares continuam fluindo para o ralo, e o disco só deve ficar pronto, profeticamente, quando a China se tornar de fato uma democracia. 

O disco do Guns é o exemplo mais claro de um poço artesiano que já vai com quilômetros de fundura sem encontrar água. Claro que seus engenheiros têm todo o direito de supor que o lençol freático deve estar situado nos próximos metros, e acham melhor continuar apostando no sucesso final do que dar por perdido todo o investimento feito até agora.






1253) O prostiturismo (20.3.2007)


Millôr Fernandes situou a problemática do turismo numa frase, como sempre, brutalmente veraz: “Transformar sua cidade em atração turística é como colocar sua mãe na Zona”. Precisa dizer mais? Existem dualidades conflitantes nesse negócio de turismo. O turista alemão, louro e obeso, tem pela nossa cidade um interesse muito maior do que temos pela pessoa dele. Ele só nos interessa porque dispõe de dólares para espalhar à mão-cheia. Queremos os turistas em nossos shoppings, nossas lojas, nossos restaurantes. Se viessem aqui sem um tostão, apenas para andar na rua e fazer perguntas sobre nossa cidade, nossas vidas, nossos planos para o futuro, nossa opinião sobre a existência de Deus ou sobre o formato do Universo, nós os correríamos daqui a vassouradas. Não queremos o interesse espiritual deles. Queremos a grana, não é mesmo?

Aí, quando eles tentam estabelecer conosco uma relação prostitucional, ficamos ressentidos. Mas o modo como o turismo se organiza (“nós oferecemos as belezas naturais, vocês oferecem as riquezas artificiais”) conduz fatalmente a isto. Nem todos os turistas vêm pensando apenas em pegar nossas mulatinhas impúberes e conduzi-las ao motel mais próximo. Mas desde que se estabelece um interesse prioritário pelo dinheiro que deixarão aqui, qualquer um que tenha dinheiro se sente no direito de trocar esse dinheiro pelo que mais lhe interessa. Não importa se o que ele vem visitar são igrejas barrocas ou mulatas boazudas; o dinheiro que deixam aqui tem o mesmíssimo valor. Se não é isso que queremos, então vai ser preciso fazer muita força. Cuba foi o bordel dos EUA durante muitos anos; fizeram uma Revolução Socialista para acabar com isto (entre outras coisas) e hoje, meio século depois, Cuba voltou a ser bordel (pelo que me contam; nunca estive lá).

Existem outras formas de fazer turismo? Eu, pelo menos, sempre fiz turismo por outras razões. Existe o turismo da fantasia simbólica, que faz um brasileiro abestalhado sair daqui até Liverpool (como ainda pretendo sair um dia) só para tirar uma foto junto a uma placa onde está escrito “Penny Lane”, ou cruzar metade do mundo (como ainda farei) para ver em Hiroshima a abóbada que sobreviveu à explosão da bomba. Por que as pessoas fazem isto? Porque se sentem intimamente ligadas, por questões espirituais ou artísticas ou literárias ou religiosas ou políticas – ou seja, por questões culturais – a lugares distantes. Um amigo alemão quase me estrangula uma vez porque afirmei que mesmo morando no Rio não sabia onde ficava o Museu Carmen Miranda. Já recebi em Campina Grande jornalistas que queriam conhecer a casa onde morreu o cangaceiro Antonio Silvino (não existe mais; ficava na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Podem ser motivos meio bobos para se fazer turismo, mas são motivos verdadeiros. Quem visita Veneza, o Cairo, Praga, Ouro Preto, o Lago Ness, Waterloo, Cordisburgo, Graceland, não vai atrás das menininhas locais.

1252) O roteirista e o diretor (18.3.2007)



(Guillermo Arriaga)

A imprensa tem debatido o recente arranca-rabo entre o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu e o seu roteirista Guillermo Arriaga. A dupla fez três filmes em parceria: Amores Brutos (que vi e achei excelente), 21 gramas e Babel. Ao que parece, romperam porque Iñarritu achou que o roteirista estava aparecendo demais, dizendo-se co-autor dos filmes, etc. e tal.

Já vi este filme antes. Foi escrito pelo mesmo roteirista, que se chama “Vanity Fair”. É a mesma pinimba que separou Hitchcock do ótimo e hoje esquecido John Michael Hayes, que em apenas três anos de parceria escreveu para o mestre Janela Indiscreta, Ladrão de Casaca, O Terceiro Tiro e O Homem que Sabia Demais, Hayes não era o autor das histórias originais (todos os filmes foram adaptados de contos ou romances alheios). Mas conhecia a cabeça e o método de trabalho de Hitchcock, e colocava no papel coisas que certamente deixavam o diretor “se coçando” para entrar no estúdio e começar a rodar.

Para mim, um filme é do diretor, para o bem ou para o mal. É ele quem faz o filme prestar ou não. No chamado “cinema de autor”, que foi entronizado nos anos 1960, o roteirista era apenas um talento a mais contribuindo para concretizar a visão do diretor. Não lembro de casos, no chamado “cinema de arte”, de roteiristas que impusessem sua “visão” a um diretor, de diretores que se limitassem a cumprir obedientemente o que o roteirista tinha escrito. Essa obediência do diretor ocorria, ironicamente, dentro do esquema industrial de Hollywood, em que muitos diretores filmavam de forma escrupulosa e burocrática o que tinha sido colocado no papel, sem ousar mexer uma linha de diálogo. Isto significava uma ditadura dos roteiristas? De jeito nenhum: os próprios roteiristas trabalhavam com o Produtor, este sim, o chefão onipresente, olhando por cima do seu ombro. É o chamado “cinema de produtor”, em que o dono do filme contrata A para escrever, contrata B para dirigir, e quem não o fizer de acordo com sua vontade é substituído.

No cinema de autor, o roteirista levanta a bola para o diretor cortar. Dá o passe. Faz a assistência. Como no esporte, sua função é essencial; mas quem faz a jogada decisiva é o outro. Roteirista algum pode prever e redigir tudo que aparece na imagem, tudo que acontece num filme. Desempenho dos atores, jogos de luz e cores da fotografia, adequação de cenários e figurinos... Ele pode sugerir, mas não cria. Cabe a ele a primeira, mais humilde e mais essencial das funções: contar uma boa história. Cabe ao diretor filmar imagens que, além do valor-em-si que terão como imagens, consigam contar a mesma história que o roteirista contou em palavras. O melhor roteirista não é o cara que escreve bem, não é o bom escritor. O melhor roteirista é o cara que pensa em forma de imagens luminosas em movimento, mas não sabe ou não consegue filmá-las. O melhor roteirista é o diretor frustrado.


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

1251) “Os Sertões” (17.3.2007)



Reli, ao longo de cinco noites, o romance-reportagem de Euclides da Cunha, que eu tinha lido por volta dos 25 anos. É outro livro, porque já é outro leitor. Por mais que a gente recorde o desenho geral da obra, os episódios mais vívidos, as frases mais tonitruantes, a releitura é feita agora à luz do que aprendemos no intervalo. As comparações, as associações de idéias, são outras. O Brasil é outro. Quando li Os Sertões o país estava sob uma ditadura militar, o Exército era o Inimigo, e podíamos imaginar Canudos como um esboço de Socialismo Sertanejo. Hoje mudou tudo.

Há 110 anos, a cidade, através de suas Forças Armadas, invadiu Canudos. Hoje, Canudos invadiu a cidade: para onde a gente olhe vê a Favela, o casario, as trincheiras, escuta o espoucar dos tiros e sente o silvar das balas perdidas. O tiroteio de Canudos deixou para trás o sertão bruto de Cocorobó e Jeremoabo, pegou ônibus, pegou misto, pegou pau-de-arara, desembarcou no Rio e se instalou na Rocinha, no Alemão, na Providência, no Vidigal. Quando o Exército voltou triunfante, brandindo a cabeça de Antonio Conselheiro como uma garantia de que a República não seria derrubada, esqueceu-se de olhar para trás e ver os milhões de jagunços que o seguiam a pé e de foice em punho.

Estou sendo melodramático, mas é o jeito. Melodrama é tragédia diluída em sentimento. O livro de Euclides é tragédia pura, é a história de uma situação-limite vivida por um País, em vez de por um simples grupo de indivíduos. É de uma verdade e uma intensidade insuportáveis, se nos dedicarmos a pensar sobre ela e conduzir estes pensamentos até as últimas conseqüências – entre as quais está a constatação de que a situação cem anos depois é cem vezes mais grave, e que nem toda a evolução tecnológica do nosso Exército pode fazê-lo ganhar esta segunda batalha que se desenha. Porque, mais uma vez, trata-se de uma guerra que não é guerra, não faz parte das guerras estudadas nos manuais militares.

Os sitiados de Canudos colocavam o olho na frincha da janela e, de lá do seu vale rodeado de colinas, viam a linha implacável dos batalhões que os cercavam, e que nos três últimos meses de campanha vieram “comendo pelas beiras” seu povoado, casebre a casebre, cadáver a cadáver. Hoje somos nós que quando saímos à rua ou vamos à praia olhamos para o alto e vemos os morros cobertos dos casebres que nos invadem. Por enquanto, ainda são nossos. Não se enganem: 95% dos favelados cariocas são tão pacíficos e trabalhadores quanto eu e você, caro leitor. São os 5% restantes que não param de crescer. Há comboios de suprimentos (dinheiro, armas, drogas) que não param de chegar às suas mãos, para fortalecer-lhes o cerco. É um Canudos-Bizarro, uma contrafação, uma caricatura grotesca daquele povoado ingênuo onde os sinos tocavam a Ave-Maria toda tarde, com ou sem bombardeio. É um Canudos do Mal. Tivemos 110 anos para evitar que surgisse, e se não o fizemos não foi por falta de um Livro.

1250) Treze 0x2 Corinthians (16.3.2007)



Vi o jogo de anteontem pela Bandeirantes (a Globo do Rio estava exibindo Paraná x Flamengo). Sei que o Treze não anda bem das pernas. Ver que o quadrangular decisivo do primeiro turno está sendo disputado entre o Campinense e Os Três Irmãos Sertanejos é brincadeira... Mas, torcer é acreditar no impossível. Plantei-me diante da TV e cruzei os dedos. O Corinthians está em franca decadência. O time está tão ruim que eu só penso que é complô dos jogadores para derrubar Leão. Mas jogou em ritmo de treino e tirou o Galo logo no primeiro jogo. O Treze até que teve alguns acessos no primeiro tempo. Chutou umas bolas perigosas, perdeu os habituais gols-feitos, e teve um pênalte não marcado a seu favor, mas numa jogada tão confusa e rápida que não dava mesmo para o juiz ter visto.

O Corinthians fez um gol impecável de contra-ataque, bola cruzada na cabeça e testada de cima para baixo. Logo após, perdeu um gol com a barra escancarada e permitiu que o Galo continuasse vivo. No segundo tempo, fez o gol que o Treze tentou fazer várias vezes no primeiro: falta na quina esquerda da área, bola cruzada no segundo pau, e um “thierry henry” aparecendo não se sabe de onde para tocar para dentro. O jogo acabou nesse lance. O resto foi aquele cerca-lourenço no meio de campo, o time que se considerava pequeno atacando meio às cegas, e o time que já foi grande recuado, chutando bolas pro mato. Vi as arquibancadas do Amigão repletas, e só lamento que o jogo não tivesse sido um pouco melhor, para animar a galera a vir de novo. Muito torcedor bissexto fica anos sem ir ao campo porque no dia que vai acontece uma derrota, uma pelada, ou as duas coisas juntas.

Curiosamente, foi um jogo com quatro expulsões mas não foi um jogo violento. O número de faltas é que foi alto, e no segundo tempo já estava todo mundo com cartão amarelo. Mas violência, felizmente, não houve. Para evitar passarmos de novo o constrangimento que tivemos em 2005 quando perdemos nos pênaltis para o Fluminense e os inconformados fizeram uma série de besteiras, motivando a interdição do Amigão. Tivemos que fazer uns jogos de portões fechados na Série C e acabamos nos dando mal.

A Copa do Brasil é a competição ideal para times medianos como os da Paraíba, os quais, se souberem se preparar, têm tudo para enfrentar de igual os tais times grandes daqui. Infelizmente, o Treze também teve uma decadência visível de 2005 para cá. O futebol que mostrou quarta-feira foi esforçado, correto, mas sem brilho, sem vibração. É a síndrome do time pequeno contra o time grande: entra em campo achando que só o fato de estar jogando aquele jogo já é honroso o bastante, e se dispensa de tentar ganhar. É uma pena, porque a Copa do Brasil pode ser conquistada numa série de 6 ou 7 disputas mata-mata. Não existe título mais acessível para os times pequenos que não conseguem manter uma continuidade de resultados ao longo dos 40 jogos de um Campeonato Brasileiro.

1249) O lobisomem (15.3.2007)


Diz a Antropologia que a Magia é concreta, e a Religião é abstrata. Com o passar dos milênios as religiões foram ficando cada vez menos antropomórficas e mais abstratas. As mitologias grega, nórdica, etc., eram uma espécie de telenovela melodramática em que os deuses não eram muito diferentes dos seres humanos, em suas paixões, vinganças, amores e ódios. O Judaísmo ainda é antropomórfico: o Deus do Velho Testamento se parece com as divindades mitológicas antigas. O Cristianismo, com o Novo Testamento, tem um humanismo fraterno que foi sua grande contribuição à humanidade, mas ainda é antropomórfico, com suas imagens, santos, etc. O Protestantismo fez uma ruptura na direção de uma abstração maior, eliminando por exemplo, a adoração às imagens (como o Islã aboliu a representação da figura humana, embora tenha permanecido antropocêntrico em seus valores e em sua legislação). Eu diria que a mais refinada das religiões é o Taoísmo, este sim, plenamente abstrato, relativizando sempre as contingências humanas e absorto na tentativa de entendimento das forças essenciais que movem o Universo.

A Magia, por outro lado, é o terreno do dia-a-dia, da nossa experiência voltada para a fisicalidade do mundo, dos seres e das coisas. A Religião, quanto mais evolui e se abstrai, mais exige de nossa capacidade intelectual de abstrair, generalizar e sintetizar. A Magia se baseia naquilo que Lévi-Strauss chamou de “a ciência do concreto”, uma sabedoria baseada no contato íntimo e intenso com as coisas que nos cercam.

Ainda não pude ver o filme que Vladimir Carvalho fez sobre José Lins do Rego, mas tenho relido algumas coisas do mestre, e em Menino de Engenho me deparo com este trecho, que não apareceria mal num livro de Lévi-Strauss, Mircea Eliade ou outro pesquisador das religiões e magias. Carlinhos, o narrador, está se referindo a José Cutia, um sujeito esquisitão e pálido que é suspeito de ser lobisomem porque precisava “corar com o sangue dos outros”:

“Eles me contavam estas histórias dando detalhe por detalhe, que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão perto da gente, ali na Mata do Rolo, com as suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! Deus fizera o mundo somente. Era distante dos nossos medos, e nós não o víamos como a José Cutia com o seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era o mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma idéia vaga de sua pessoa. Um homem bom, com um céu para os justos e um inferno para a gente ruim como a velha Sinhazinha, com caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isso depois que o sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva. Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e encontrá-lo.”